Contos de Tarantá 12





Mais uma primavera. Nini, como agora Uruaçu inteira a chamava, crescera dois centímetros. Tagarelava mais para dentro que para fora, esse som passarinheiro que deixava a todos encantados. Por razões de composição genética, os cabelos haviam escurecido, bem acastanhados estavam agora, uns fios queimados de tanto sol. Dona Wasi os tratava a óleo de oliva, para que não embaraçassem e provocassem aquele choro manso toda vez que a escova penetrava a selva de cachos.

A iniciativa partiu de Nini, em uma manhã muito quieta, armada para chuva, aquela suspenção de tudo, que dá arrepios. A menina tinha uma banqueta, feita pelo Girimum, para escovar os dentes diante do espelho do banheiro. Com a tesoura de costura pesando na mão pequena, Nini fez o primeiro movimento, começando pela esquerda. Abriu a brenha, próxima à orelha. Ficou olhando o trabalho, como se o temporal fosse lhe cair em cima. Perdeu a coragem. A cava iniciada pedia continuação. No entanto Nini, a tesoura pesada, titubeou. 

Jamais Estrela precisara repreender Nini com energia. Orientava apenas, e o cotidiano seguia harmonioso, alegre. E não seria diferente dessa vez. Nini, tesoura na mão, algumas mexas do cabelo ainda esparramadas pelo vestido, desceu da banqueta, sem alarde. Sabia que correr com tesoura  fazia xixi em mão de criança. 

Quando chegou na sala, o susto de Nini foi grande. Estrela estava estatelada perto do piano, um fio de sangue escapando pela testa, uma porção de terra esparramada em volta, o vaso caprichoso sustentado pela mão que ficara sobre o ventre. A menina, zonza mas intensa, voou porta afora, tesoura na mão. 

Anjos estão sempre de plantão. Girimum rodava as bolinhas de gude na calçada, seu posto de comando. Valdislei, outro menino, recém chegado de Belém, espiava o novo amigo, absorvendo as instruções para entrar na brincadeira. Nini gritou o nome de Girimum o melhor que pode. Seu tom era um alerta de morte. Girimum olhou a tesoura na mão. Sem demora, correu à botica. Seu Otávio estava ocupado com uma poção, mas largou tudo e foi atrás do menino, que disparara na frente. Quando Otávio entrou, Estrela já voltara a si. Não sabia explicar o que estava acontecendo. Disse apenas que tudo ficara preto de repente.

Não tinha outro jeito. Era Hospital de Uruaçu. Por aqueles dias, circulou a notícia de que o prefeito decretara revitalização da estrutura, que a casa de saúde poderia, afinal, socorrer a muitos municípios vizinhos, sem a necessidade de deslocamento para Goiânia. Estrela, presa por forte dor de cabeça, aceitou ser levada pela ambulância. 

Nini, ainda de tesoura em punho, ficou parada no meio da sala, os cabelos cortados se espalhando pelo piso. Girimum, com muito jeito, foi-se chegando, devagar, como quem cerca um gato. A propósito, na confusão Dilermando sumira pela janela. Gumercindo, já com treze anos, segurou o pulso de Nini, carinhoso. Foi arengando, lento, grave, rouco está tudo bem está tudo bem está tudo bem. Tirou a tesoura da mão da criança. Com Nini assim, um tanto aérea, o próximo movimento de Gumercindo foi caminhar com ela. Fez sinal para Valdislei, que os acompanhasse.

Quando os três chegaram à relojoaria, Quiné já baixava a grade diante da entrada. Olhou para as três crianças intrigado, bem como para o tufo de cabelo que faltava em Nini. Quiné sentou com os meninos no meio fio, a ver se entendia a história gaguejada. A voz de Gumercindo andava entubada, muito grave, com acentos agudos sem importância. Não soava bem ao menino, que tentava engolir a expressão, o pescoço dobrado contra o peito, envergonhado. Um pouco de esforço e Quiné compreendeu a questão.

Caminharam, os três homens. Nini permitiu ser levada no braço de Quiné, que era magro e altíssimo, parecia um louva-a-deus. Forte contudo, eucalipto. Até cheirava como um. O fim de tarde que não choveu deu lugar a um vento morno, com jeito de fluido. Contrariando aos bons costumes antes da janta, Quiné comprou sorvetes. Pararam, os quatro, na praça. Perto dali era o Serra da Mesa. A brisa que soprava agora vinha de lá, úmida. Conversar não era uma boa opção, então Nini e Quiné dividiram um banco, ela aconchegada ao peito do gentil senhor e os meninos armaram no chão o búrico. Não podiam se demorar muito naquele ocaso poético. A tertúlia sossegada durou uma meia hora. A primeira estrela apontou no céu. Foi Nini quem mostrou, o dedinho tímido. Quiné lhe contou a história de um grão de areia, enamorado de uma estrela pequenina. Estrela brasileira Quiné a chamou. Mais um pouco e Quiné avisou hora de ir p’ra casa. A afirmação soou como selo para uma amizade que duraria por muito tempo.

Quiné morava em cima da relojoaria. Um quartinho muito asseado, com claraboia. Estava ali há mais de vinte anos. Decidiu apequenar seu espaço depois que a mulher saiu de casa. Seu mundo era povoado por relógios. Quem olhasse sem cuidar, entenderia se tratar de um velho esquisito, solitário, maníaco. Quiné, Joaquim Manoel Capistrano na certidão, era só Quiné. Simples, engraxado como uma máquina de bom funcionamento. Coração de cristal. Relógio de boa calibragem. Dera para arritmar, depois do episódio com o cuco no peitoril de sua vitrine. Antes talvez, no dia em que aqueles olhos chorosos puseram o relógio avariado sobre a bancada. 

Os colóquios, cada vez mais frequentes com Estrela, colocaram Quiné em estado de prontidão. Era difícil para ele pensar em sentimentos, envolvimentos. Fato é que enredara-se, nas páginas daqueles livros todos, nas teclas do piano, na música do rádio valvulado, nos cabelos da menina, nos olhos estelares de Avó.

A casa de Estrela tinha ficado escancarada. Dilermando era dois faróis amarelo violeta sobre a estante. Fulminou Quiné quando este entrou, Nini no braço, adormecida. Foi necessário afugentar os mosquitos com um tufo de fumaça. Quiné colocou a criança na cama de Avó, mesmo sobre a colcha, puxando uma manta leve por sobre o corpinho. Os pés de Nini estavam sujos, mas o homem entendeu que era melhor que ela dormisse agora, amanhã veriam como melhorar as coisas.

Quiné teve fome. Na cozinha encontrou um potinho com carne. Surpreendeu o gato, aproximou o potinho das fuças do bichono. Para troça de Dilermando, que se fosse gente teria rido, Quiné lhe disse uns versinhos tolos sobre um gatinho chamado Cetim. Com o rabo em riste, Dilermando, cara amuada, optou por acompanhar o potinho que se afastava e foi parar sobre a cama de Avó, aos pés de Nini. Para si, Quiné aprontou pão, queijo de cabra, uma banana. Um copo de leite e o homem sossegou. Na sala, ainda havia rastros de terra e um pouco de sangue próximo ao banco do piano. Amanhã veria tudo isso. Fechou a vidraça, para o caso de uma chuva ventosa. A do quarto ficou a meio pau. Dilermando dormia, ao lado do potinho vazio. Havia, entre a cama e o armário de Avó, um espaço justo para a cadeira de balanço. Tomou-a com gentileza, para que não batesse em nada e instalou-se ao lado de Nini. Afastou os cabelos da menina, o lado intacto. Como ela ressonava calma, na mesma posição em que fora acomodada, Quiné torceu para que a cabeleira não emaranhasse.  Havia um livro no criado mudo. O abajur estava aceso e assim permaneceria. Um copo d’água do tempo de Eledá. Esse era o título inscrito na folha de rosto, envolto por suaves iluminuras a aquarela. Já na primeira página, percebeu que se tratava de uma história virgem. Páginas, todas elas, virgens. Folheou uma a uma, povoando-as com sonetos e redondilhas que desejava escrever. Dormiu com um olho aberto, o livro em branco na mão, sem caber direito na cadeira.

                                                

 

Wasi despertou às três. Madrugada quieta, a não ser pelo barulho do soro. Ela custou a entender onde estava. A enfermaria era sóbria, estava levemente iluminada. Havia alguns leitos enfileirados, poucos ocupados. Um enfermeiro observava um homem, tomou seu pulso e colocou a mão sobre a testa sem o tocar. O gesto foi rápido e intenso. Quando chegou à sua cama, sorriu ao vê-la desperta. A dona sente bem, Dona Vasi? A dona fez leve movimento com os olhos, a cabeça ainda doía, mas ela não falou. Antonio fez com ela a mesma dança testemunhada no leito anterior. A dor amenizou em breve. Estrela voltou a dormir.

                                                

 

Pela manhã, o desejo veio forte: eu preciso, preciso de testemunhas. A ideia martelava, bem no lugar em que a testa estava ferida. O rosto de Estrela denunciava um hematoma, talvez um molar estivesse quebrado com a pancada contra o piso. Eu preciso de testemunhas. Começou a repetir a frase como uma prece e um suor frio molhou seu corpo. Antonio estava concluindo seu turno, mas ainda veio vê-la. Observou o suor a empapar as roupas e fez rápido a tarefa: virou-a de lado, embolou o lençol, colocou outro, virou-a novamente; fez o mesmo com a camisola. Uma bandeja ao pé da cama continha bacia com água e Antonio umedeceu uma pequena toalha, apertando levemente contra o rosto ferido, pescoço, colo, braços. Dessa vez, o movimento das mãos foi feito nas solas dos pés. Wasi relaxou. Eu preciso de testemunhas, Antonio escutou. Olhou para Estrela e ela lhe contou, de forma entrecortada porém coerente, a história de Menininha. Contou também que tivera um sonho, onde o Juizado de Menores lhe tirava a criança. Não te ‘poquente, Dona Vasi. A dona não sozinha. Tem aqui benfeitor; avisa acertos vem, dona aquieta coração’. 

O sotaque de Antonio era carregado, ele viera há pouco do Haiti. De olhar manso e tez brilhante, imenso, maior que Quiné e mais encorpado, parecia uma torre de ébano. Antonio contou a Estrela sobre Porto Príncipe, como era morar lá. Não tivera vida fácil, mas alegre, por ele poder fazer o que amava, curar as pessoas. Explicou que não teve dinheiro suficiente para a Medicina. Um mentor o ajudou com o curso de Enfermagem. A especialidade dele, contudo, não havia sido treinada na escola. E disso ele preferiu não falar. Observadora e esclarecida, Wasi  percebeu as energias que Antonio manipulara com o paciente ao lado. Entendera. 

                                               

 

Quiné saiu cedo. Gumercindo já aparecera, sob os protestos da mãe. A única mulher que acolheria Quiné no que era preciso, fazer a higiene de Menininha, era Idália. Ele esperou até às 6h. Então bateu várias vezes com o dorso da mão. Idália tinha sono leve e mesmo já estava de pé. Convidou-o a tomar um café que ele acolheu. Depois, foram juntos para a casa de Wasi, sem nada dizer.

Idália aprendera a controlar as emoções rápido, até demais. Viu o estado da sala e logo providenciou a limpeza. Discreta, devolveu o lenço de Etelvina a um dos métodos Junqueira, fechando o  volume. Enquanto isso, Quiné devolveu a cadeira ao lugar de costume. Dilermando veio até a sala, o rabo erguido, os faróis diurnos atentos. Os movimentos da casa despertaram Menininha, que veio correndo, chamando por Avó. Quando viu Idália, despencou e se pôs em posição de guarda, só que agora os cabelos não lhe escondiam totalmente. Foi desse lado desguarnecido que Gurmercindo se acercou, cantarolando vai ficar tudo bem vai ficar tudo bem vai ficar tudo bem. Nem teve dúvidas, envolveu a criança e a ergueu do chão sem esforço. Sentou-se ao banco do piano e a embalou por algum tempo. Cadê a Avó? Ainda está no hospital, logo vamos lá ver ela, tá bem? Agora você precisa tomar banho, comer, que está sem se alimentar desde o sorvete, lembra?

Menininha, sempre compreensiva, permitiu que Idália lhe desse banho, aceitou o vestidinho de flor, os sapatos cor-de-rosa. E o cabelo? Bem, Idália ajeitou uma fita do lado que não havia sido cortado, o que deu à criança uma aparência jovial. Ao se mirar no espelho, Menininha balbuciou parece Alice.

Um taxi os esperava na porta. Quiné se sentou ao lado de Menininha, no banco de trás, e ela lhe segurou a mão.

Eu me sinto usando uma roupa de número bem maior (já disse o contrário, no meio da crise pós separação). Tropeço na barra, as mãos se embaralham nos babados da manga, a gola é alta demais, cheira meio que mofo e perfume muito doce. Assim falava Wasi com a enfermeira Irene. Ao ver Menininha, sua luz se acendeu e imediatamente apagou. Irene a socorreu e Wasi logo retornou, um tanto envergonhada. Quiné suspendeu a criança, que pode ver Avó deitada. Menininha estendeu os braços para Avó mas logo os recolheu. Quiné a sentou na beirada da cama. Custou um pouco, mas Menininha tocou de leve o dedo da mão que descansava com o fio de soro. 

Wasi sorriu. Eu já estou melhorando Nini. Logo iremos para casa. Ficaram quietos todos, por um período. Quiné colocou uma cadeira sob os pés de Menininha, caso ela decidisse descer. E foi encontrar o Dr. Adalberto no corredor. 

Fizemos uma tomografia e um encefalograma. Afastamos a hipótese de tumor ou acidente vascular. Creio que temos um quadro de crise de ansiedade.

Ao voltar, Quiné compreendeu o que acontecia. Wasi narrou-lhe o sonho que teve. Menininha arregalou os olhos, um pavor estampado nas faces. Eu preciso de testemunhas Quiné. 

                                          

 

Quatro dias mais tarde, foi Menininha quem trouxe a solução. Entrou ligeiro na sala, uma folha de jornal na mão. Esperou um instante, Avó cochilava na cadeira. Quando despertou, Nini se achegou e entregou-lhe a folha. Era o Jornal do Commércio, de Manaus. Quase ao pé da página, uma foto 15X10 anunciava uma récita do barítono Leôncio Ernandés no Teatro Amazonas. É o pai, apontou Menininha.

Na mesma tarde, Wasi embarcou rumo a Manaus, no aeroporto de Goiânia, na companhia de Quiné e da menina.

 

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