contos de tarantá 11




Uns diziam se tratar de uma quaresmeira. Para Gelson, extremosa ou resedá. Idália, agora mais próxima de todos, tocada na alma por alguma flor, dizia que era buganvília. Até o delegado e seu escrevente apostavam: cerejeira, ipê rosa. Menininha apontou no livro, castanheira de sapucaia. Wasi sonhou, na noite do conversê, com bahuiria purpurea. 

O fato, comentado naquela tarde com todo tipo de espanto, narrava o feito de Tenó, jardineiro local. Ele desfilara pela cidade toda, abraçado a uma árvore, que arrancara pela raiz. A calçada ficava por demais suja, argumentou o senhor ranzinza que a mandara arrancar. O homem já não mais aguentava os insultos da mulher. Aos berros, dia após dia, lá ia o destratado, no serviço inútil de catar folhas, no pátio, na rua. Seu Tenó, penalizado com a árvore frondosa, cumprira o trato, por um punhado de moedas que lhe dariam a farinha da semana. 

Tenó peleou com as lajotas de cimento da calçada, deformadas é fato, mas nada que um pouco de atenção, desvio de uma roda de bicicleta um pouco para a direita, ou empinar o carrinho de feira na mesma direção. Carrinho de bebê só pela rua, mas era tão pacata, que se podia andar pelo meio, caso fosse uma mãe prestimosa e cobrisse o toldo com uma fralda, por conta do mormaço. 

Logo que a árvore fez meneios de tombar, Tenó a abraçou. Sentiu nela arrepios de mulher sofrida como certas damas, arrancadas a seus lares por almas vis. Tenó não quis posar de vilão. Cochichou no ouvido da árvore, algo que só os dois compreenderam. Largou o estrago esparramado em frente a casa de seu empregador e saiu, naquele abraço estranho e intenso, a caminhar firme, primeiro sem rumo, como a escolher um bom sitio. 

Finalmente encontrou. A uns dez passou da árvore que balançara Etelvina. Sim, ali, a fazer um agrado simbólico àquele local, onde misteriosamente acorriam namorados, para nada além de rezar. 

                                             

                                           

Wasi sabia de onde tirara a história. Fruto do cotidiano de um recife. Era um outro tipo de peixes palhaço, o branco de listras pretas, contou. Eles habitam, de fato, em anêmonas, com ‘troca de gentilezas’. Wasi embalava Menininha na noite sem luz. A criança dera para pesadelos e se agarrava à avó, ainda trêmula. O mais interessante, Menininha, foi o jeito de arranjar o ninho: primeiro, uma concha; estava habitada por um caranguejo. Depois, uma garrafa plástica amassada. Muito leve, a correnteza levaria os ovinhos. Então, meia casca de coco. O peixe pai não conseguia empurrá-la sozinho para perto da anêmona, a peixe mãe, toda grávida, veio ajudar. Sobre a casca se depositaram as ovas. Bonito de ver, aqueles pontos pretinhos, com um olho saltitando dentro. Bonito, mesmo. Ah, e não eram só três, mas centenas de tubarões, no aguardo de alimentação, lá no paredão. Wasi já ia contar sobre as garoupas, mas a menina dormia. Estrela ainda cantarolou. Tem recifes na Indonésia. 

                                                                                                                                      

                                             

 

Esses dias, cortei meu cabelo pela segunda vez. Tinha tudo para dar muito errado. A tesoura de costura me lembra a de cortar grama. Meu cabelo, grama e trevos. Nessa segunda vez, pude limpar os fios caídos no espaço com mais facilidade, primeiro com a ajuda do espanador. Uma experiência de fazer a feiura escorrer por dentro. Quem sente isso tem que sobreviver aos hormônios da mulherice. Ao menos, o pescoço respirava, leve. A feiura escorrendo. 

 

Após concluir os cuidados consigo, Wasi sentou-se na mesa das lições. Leu novamente aquele enigmático lembrete: Um copo d’água do tempo de Eledá.

Os cadernos de anotações de tantos anos. A dona começara a registrar pensamentos desde o dia em que se descobriu naquele estado. E agora? As primeiras palavras, numa caligrafia infantil. Em seguida um nome: Aisó. Uma intuição. Seria formosa, teria cabelos claros, como os dele. Nada sabia, de nada. Sua tia nada contara, mulher de bigodes. Estrela pressentia. Deitar-se naquela tarde, na beira do Passa Três, fechar os olhos e permitir, e gostar muito e ir para o céu quatro vezes, aquilo poderia ser tão passageiro quanto um voo de biguá indo para o sul. Tal e qual. Ficou sozinha minutos depois, as saias amarrotadas, as tranças desfeitas, um úmido novo. 

Só após banhar-se na bacia de estanho, mês e meio depois, notou que faltava o caminho natural do sangramento. Foi abrir um livro de ciências para certificar-se. Aisó. Nada disse, a ninguém. Conforme o ventre avolumava, ela o apertava, muito firme, com faixas de algodão. No dia das dores, caminhou com vagar para o arvoredo. Escutava as folhas das árvores silvando. Acocorou-se e logo surgiu Aisó, toda untada e com rosto em formato de joelho. Foi como uma flechada. Nas faixas, Estrela enrolou a cria, que só foi chorar de volta a casa. Tudo fora providencial, triste, mas providencial. A tia falecera dois meses antes. Wasi estava só no sobrado antigo. O cuco chamava a cada hora, testemunha ocular daquela nena. Os peitos fartos. Um alento. O cuco e o jacaré, os que viram quando Aisó chegou. O cuco, o que viu quando Formosa faleceu.

 

           

 

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