Contos de Tarantá 10

 




Em cidade pequena não cabe uma cadeia. Oto era o delegado, igualmente advogado e tabelião do distrito. Seu ajudante, Onório, um cadete do exército, recém liberado da caserna e com um concurso para escrevente no currículo. Passavam os dias, os dois, sentados no degrau do pequeno prédio com saleta e cela conjugadas. Ocorrência, só um roubo de galinha em meses, resolvido por uma ação comunitária. A decisão foi dar emprego ao ladrão nos cuidados de um galinheiro; ao lesado, a cidade doou um galo garnisé de boa cepa, que o ladrão pagaria aos poucos, com trabalho. O ladrão trabalhava de dia e pernoitava na cela. 

Menininha entrou em casa voando e movendo as mãos, uma estranheza no rosto que deu medo em Wasi. Contra todos os limites, Estrela apalpou Menininha por todo corpo, a ver se não quebrara um osso, ralara joelho, cotovelo ou algo mais sério. Menininha, sem fugir aos afagos, puxou o avental de Estrela, e tão forte que não houve jeito senão lhe sair ao encalço para dar, ela também, no assombroso movimento do cadáver, suspenso por lençóis e nós. 

Primeiro impulso foi tapar os olhos da menina, mas qual, se ela já se fartara da visão. Parecera um brinquedo em principio; Menininha não demorou muito a perceber que se tratava de um novo inconcebível, que carecia a presença da Avó.

Wasi soergueu Menininha, que pesava pouco, e correu com ela até Seu Oto. Branca como a parede da igreja, a professora descreveu a cena o melhor que pode, colocando os homens em prontidão. Oto saiu correndo, ele também, a chamar Liceu, o jornalista da região. Imbuídos de uma rolleiflex, os cinco homens se dirigiram ao local da ocorrência. Oto achou acertado carregar duas testemunhas: o boticário, que deixou a botica espalancada e também Gelson, cuja relojoaria ficava perto. 

O delegado mapeou muito bem o perímetro, sob o olhar atônito dos outros homens. Liceu usava um velho polyvox além da câmera.  Narrava a cena de forma radiofônica. Oto atentou para detalhes, feito expert, fez anotações, desenhos, tirou medidas e, só após a conclusão das fotos, desfizeram os nós. Com o próprio lençol de lanceara a vida, cobriu-se a jovem, azulada, os lábios enegrecidos. O boletim notificava hora do óbito imprecisa, pelas duas da madrugada, não sem agonia, por sufocação, a designação que acharam mais apropriada. 

O corpo, coberto, pareceu sossegar. Os homens, munidos agora de uma padiola improvisada, feita também dos lençóis que restaram da trama, todos eles bordados com pequenas flores e monograma, se dirigiram ao ambulatório contiguo à botica. Foi ali que Idália, amparada por Gelson, que a havia ido buscar, encontrou o que sobrara da idolatrada filha.

  

 

Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua...

E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio de parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.

Mario Quintana

 

Ao revés todos os prognósticos, Idália surpreendeu a todos: dois dias após o sepultamento de Etelvina, evento acompanhado por apenas cinco pessoas mais o padre, a mãe sem o luto chamou Wasi à sua casa. Era uma temeridade tal encontro. 

A mesa estava posta para dois quando Estrela adentrou a pequena sala. Chá fresco, suco, mangas em calda, biscoitos amanteigados. 

Idália, com um gesto de mão, indicou à visitante uma cadeira. Serviu-lhe chá. Sentou-se a sua frente. O rosto era sereno, o olhar levemente evasivo. Quando falou, Idália foi direta: Quem era Etelvina, Wasi? Você pode me contar? Lágrimas lhe rolaram as faces. Estrela esperou. A pergunta foi repetida: Quem? Quem era Etelvina?

Era preciso um tempo para elaborar a questão. Uma palavra vã, um vacilo, e Estrela perderia a interlocutora para sempre. Eu sonhei com uma filha como ela, Idália. Dócil no aprendizado, bem articulada, plena de ideias e ideais. Talvez sonhadora demais. No principio, parecia uma menina comum, prendada, esforçada, mas comum. Etelvina foi se revelando através da voz de canto, melancólica, para uma menina de vilarejo. Quase nunca falava de si. Atenta aos estudos, tinha pendores maiores para música e literatura, em especial os poetas, mais as mulheres. Suas composições escritas eram idílicas, falavam amiúde sobre o inverno, paisagens glaciais, diferentes das que vivemos. Seus personagens inventados eram cavaleiros desafortunados, caixeiros viajantes, violeiros errantes, vaqueiros com seus berrantes e os olhos de boi manso. Começou a aparecer nas histórias um Cirino, que eu acreditei ser o personagem do livro Inocência. Como me são familiares estes lugares literários, jamais entendi, nos  escritos da menina Etelvina, evocações à vida prática, ou um alerta, pedido de socorro. O desejo da maternidade aparecia também, velado, recalcado, sonho comum a todas nós.

Estrela fez uma longa pausa, a mãe sem luto quieta, imóvel. O chá intacto.

Nos primeiros dias da chegada de Menininha, eu me descuidei um pouco do trabalho, não sei se a senhora pode me perdoar por isso. Os estudantes ficaram por conta e risco durante três semanas, pelo menos. Para os meninos, alívio. Para as meninas, uma delas, um pouco de folga para tantas obrigações. Esta cresceu nos bordados, dominou pontos franceses sozinha. Etelvina repetia ao piano, sem cessar, um tema de compositor brasileiro que fala sobre duas juriti. Na última aula que ela fez, tocou ainda este tema, uma vez mais. E me contou, eufórica, que viajaria em breve, para a América, para estudar, encontrar seu namorado. Como eu não tenho intimidade com a senhora e, no nosso acordo inicial, as matérias das aulas estariam seladas no ambiente do encontro, indo para a casa dos estudantes somente as lições por firmar, escritos, cálculos, leituras, desenhos, trabalhos manuais, abençoados pela supervisão materna, eu estive segura de que tudo se resolveria, por mal ou bem, entre essas paredes. Estrela fez um gesto largo com os braços, abarcando as faces róseas da sala; deixou cair as mãos sobre o colo, como se mais nada houvera a dizer. Etelvina, antes de sair naquele dia, disse esses versos, da poeta Marina Tsvetaeva: por entre o pó das livrarias/disperso por todo canto/e nunca comprados por ninguém/porém similares aos vinhos preciosos/meus versos esperam/Seus tempos virão. Abraçou-me e saiu. Esqueceu no banco do piano este lencinho, disse Estrela, estendendo o tecido à mãe, que somente acompanhou o movimento com um quase sorriso.

 

 

Menininha, enroscada no cesto, segurava um caderno de desenho onde pintara, com Avó, uma história que a deixara cismada. A criança olhava a representação que fizera do pote rachado e do pote bom. Passava o dedo magro pela cicatriz caprichosa, bem como pelos pingos d’agua que vazavam da rachadura. Comprimia a palma da mão sobre as flores, em profusão do lado esquerdo da estradinha rabiscada. Quando Dona Wasi voltou da longa conversa com Idália, encontrou aquela cria de herança assim, meditando. Cinco anos, no máximo, aquele bebê vivera, e já tão compenetrada. 

Com cuidado, toda disponibilidade, Estrela sentou na cadeira de balanço, moveu com vagar a engrenagem para frente, para trás, para frente, para trás. Na mesma pachorra, Menininha estendeu os bracinhos para Avó. Era a primeira vez. Avó. O coração avolumado, quase sem respirar, recolheu a criança com pouco esforço, aninhou aquela chuva de cabelos e vestido floral e pezinhos e mãozinhas de encontro ao ventre e seios e colo, há muito sem povoamento. 

                                                                            

O que sei de mim, realmente? Creio que sei de mim o mesmo que sei do oceano. Eu sou o oceano? A floresta? O Deserto? A Urbe? Polis, se preferir? Sou poeira? Sou corpoalma? Sou fisicoespiritualpsiquicomental? Sou humano? Ao usar cada verbo de ligação existente, mudo o quadro e dou um rumo impar para a prosa. Coisas de tarantá? Um copo d’água no tempo de Eledá.

 

A menina colou a orelha no peito de Wasi. Ficou assim até a noite entrar, inteira, pela sala. Mesmo com o abraço comovente, o ruído da cadeira a balançar, nenhuma das personagens dormiu. Ambas, nos seus contextos, sabiam se tratar de encontro especial, oferta da vida, acalanto de asilados. Era natural quedar assim, na cadência de um coração revisto, um testemunho cheio de literatura.

Dilermando, que percebera o ato novo com curiosa preguiça, demorou um pouco seu olhar lilás sobre o quadro. Distraiu-se com duas revoadas barulhentas, cochilou e voltou a observar. Vendo de fora, era de se saber que o gato ia pouco àquele colo. Talvez porque, antes de Menininha, o contato fosse carente de calor, a manta e saia um tanto úmidas, não convidativas. Olhar de cima dava ao gato um horizonte devassável, sem ser ameaçador. Naquela tarde, porém, o bichinho parecia entender a metamorfose que se operava. Ronronava. Cogitou até, como se pode supor o conjecturar de um gato, que se tratava de esperar uma suculenta e gigante mariposa, nascida daquela pupa.

Era hora de providenciar alimento, higiene, entrar a noite de forma tradicional. Menininha aceitou o ‘vamos lá?’, tinha fome. Sorriu quando, já em seu lugar à mesa, recebeu o fumegante prato de sopa. Wasi lhe perguntou se queria que esfriasse, a menina tomou da colher, molhou na beira e tocou os lábios, sorrindo mais. Recebeu ainda um pequeno pãozinho, em forma de coração. Wasi achara bonito modelar a massa assim. Para Dilermando, uma carninha passada duas vezes no moedor, servida em sua tigela azul.

Terminada a refeição, Dilermando foi ao quintal, correr atrás de pirilampos aos borbotões. Wasi lavou Menininha em uma bacia de estanho, pôs-lhe camisinha de algodão e um pequeno xale nos ombros. As duas ficaram juntas na janela, a olhar a lua, os matizes de escuro do rio e o gato a brincar. Como era um dia de surpresas, Menininha sussurrou: Avó? Para onde foi a alma da Etel? 

 

 

 

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