Contos de Tarantá 6


O povoado de Sant’Ana. Ali havia chegado gente sua a partir de 1907. A parentela viu erguer-se a igreja, ajudou caiar sobrados. Viveram, avós, pais, tios, primos, irmãos, vidas sem novidades, sem muitos tostões, sem alarde, todos crentes, todos supersticiosos, muitos analfabetos. Havia histórias de videntes, cartomantes, feiticeiros e também preceptores na linhagem. Gritinhos saudáveis de criança nos quintais e alamedas sombreadas por mangueiras. Muitos partos, muitos abortos. Muitos órfãos. O Passa Três, espaço de todos os piqueniques, todos os estios, sonhos, barcos de navegar para longe, para além do mar. Moças casadas, por casar, muitas, andaram por suas margens, deitaram no rio seus corpos virginais e garrafas com promessas. Solteira, só Dona Wasi. Nada demais, nessa condição ribeira, a não ser um gosto apaixonado pelos livros, pelos saberes populares, pelas filosofias de vida, pela cultura de França, sua devoção. Joana D’Arc, heroína de sua solitude. Dona Wasi contava cinquenta e sete anos de muito trabalho, toda energia criativa posta no ensinar. De compleição suave, cabelos lisos e grisalhos, cortados a la garçone. Às vezes era serena, às vezes parecia um vulcão por dentro. Todos os seus alunos, sem exceção, haviam partido de Uruaçu para o mundo. Estrela educava na própria casa, era preceptora. Ensinava francês, piano, canto, bordado, culinária, latim, grego, história, literatura e caligrafia, muitas vezes tudo isso para um único jovem, rapaz ou moça. Era comum haver movimento constante de entra e sai. Estrela atendia na sala. Uma mesa redonda para quatro lugares, um quadro negro apoiado em cavalete, a cadeira de balanço com o cesto ao lado, o piano de armário muito lustrado, daqueles com lugar para candelabros, sempre aberto, sempre com um método no aparador e livros de partituras sobre o tampo de ébano. Uma estante de parede a parede dava aos estudantes condição de conhecer a história do mundo e do Brasil. Estrela trocava livros. Os alunos faziam empréstimos, bem como emprestavam a ela compêndios que os pais tivessem e ela não conhecesse. Estrela, em sua metodologia, recomendava cópias e memorização, o que criava um intercâmbio poderoso de histórias, partilhadas sempre aos domingos, na varanda, durante o tererê. Os alunos adoravam a mestra. Os pais não. Corria o boato de que filhos educados pela Dona Wasi logo voavam dos ninhos, e se saberia deles só por cartas, que os pais nem sempre sabiam ler. 

 

 

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