contos de tarantá 5


 Em outros tempos se diria ranzinza, hoje apenas gris. Parece fim, mas é começo. Muitos começos, posto que há cálculos - muitas dimensões, muito mais de três. O risco de repetir o já pensado é de um para vinte e seis, no mínimo.  Há muitas histórias com um personagem relojoeiro. E marinheiro. Médico. Menina enroscada a um portão de casa de solteira, cuco, borboleta, cabelo cor de ouro. Há amarguras relatadas, doçuras, descrição de pragas de gafanhotos, beijos sob caramanchões, caminhadas pelos charcos, barcos livraria, submarinos, imagens de mar de tirar o fôlego, incêndios, emergências, imersões, escândalos, batalhas, aparições, cartas, cabeças que caem, aracnídeos perdendo seu almoço, lobos, cães, salamandras, toda sorte de voos, de padre, de heroína, de malandro, de viagens, de riquezas de toda espécie, de quem as arrebata, furta, de quem destrói a vida por conta delas. Relacionamentos, dos mais tóxicos aos sublimes. Histórias de achados, de desenhos em grutas há muito esquecidas, de segredos de alcova, de fugas espetaculares, do avanço das tropas, da mais bela Diana, em que a lua rosa faz clarão, em que o sol aquece o orvalho para que vire chuva, em que a semente revela o tanto de frutos de que vai dispor. Mensagens incríveis, de imemoriais baús. De buracos de minhoca no espaço, que é fluido e não vazio. Afirmações, as mais audazes, as peculiares, as exóticas, misóginas, sagradas, proscritas, um esforço hercúleo no entendimento das leis, o que dizer de cumpri-las. Tratados sobre a evolução dos mundos, sobre geometria e álgebra, sobre o cuidado com as plantas aromáticas, sobre a manutenção do fogo, sobre como retirar o sal da água, como colher amoras, observar os pássaros, viver as estações, sobre dançar, cantar, representar, desenhar. Métodos de toda sorte, desde tocar o alaúde e caiar uma parede. Guias de como obter matizes de azul e tecer tapetes, aparadores, botins. Partos que não se poderia descrever sem tê-los vivido, partidas bruscas, toscas, dolorosas, mansas como um suspiro. Surgimento de cometas, enxames, de um anel perdido. Falando em vinte e seis, era esse o tanto de dias das trocas de olhares e silêncios entre a menina, Dona Wasi, o gato e o hipnótico cuco, que cantava as horas cheias, a modo de fazer sorrir a criança. Pois não era somente o cuco, mas o coro desaforado da vizinhança, feito de assovios, impropérios zombosos, interjeições curiosas, preces e valha-me Deus e, mais que isso, o griteiro das maritaquinhas, que esperavam nas mangueiras da rua, carregadas, estas, de manga ainda verde. Afinada com a máquina, poucos instantes antes de cada evento, a menina arrastava seu pano de mufa com uma mão, a almofada do gato com outra e se sentava, diante do imenso relógio negro, à espera. O gato, cor de pérola, gola alaranjada e olhos de ametista, chegava n’um salto leve, preciso, tirando da menina um cricrilo. E ficavam os dois quietos, atentos. Dona Wasi, estrelada, sempre com a colher de pau em punho, cruzava os braços e acompanhava a cena. Hora de sorrir, pensava ela. 

 

 

 

 

 

 

 

 

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