contos de tarantá 2




Naquele dia, o ofício não tinha rendido. Gelson era relojoeiro, também lidava com ouro. O homem, já meio século mais uns anos a contar-lhe histórias, podia-se dizer dourador, embora sem escola, só de ver fazer, o que era aprendizado poderoso. Na bancada, muito aparelhada e limpa, repousava um relógio cuco centenário, desmontado. Uma caixa, com inúmeros compartimentos, continha balanços de mola, ponteiros, trens de rodagem, de engrenagem, rebites, parafusos de vários tamanhos, argolas de corda, cristais de rocha. Faltava ao relojoeiro um balanço de mola adequado ao modelo, que caíra da parede, tanto tempo de serviço impecável e um toque que irritava aos vizinhos da quadra inteira. As demais engrenagens estavam dispostas ordenadamente, todas em bom estado.  A senhora que trouxera a máquina para reparo, muito silenciosa, tinha os olhos avermelhados. Chorara, e não fora pouco. Gelson entendeu logo: objeto de grande valor afetivo. O mais grave da situação era a falta do cuco, que a dona não trouxera. Essa peça, esculpida a mão, não poderia ser substituída. A senhora havia perguntado com o olhar se haveria remédio. Chances, sempre as há, o relojoeiro acenou com um aperto no canto dos lábios. Indecisa entre ir e ficar a senhora, que mais tarde se saberia, era Dona Wasi, sentou-se e levantou várias vezes. Partiu por fim, sem preencher a ficha do cliente. Por tantas circunstâncias vividas, Gelson adotara para esses casos um código, um pássaro de cobre, do tamanho de um botão de camisa, que ele afixava nas costas da peça. Se a dona voltasse, ele mostraria o artefato que, por não danificar em nada o material, poderia ser mantido ou retirado. Caso não voltasse, o objeto ia para a vitrine após noventa dias abrigado na loja. Uma lista de contatos dormia em uma gaveta. Eram dezessete e dez, logo o expediente se concluiria. Gelson havia ligado, durante o período, para colegas da região, porém ninguém tinha um cuco. Tampouco o balanço. Encafifado, ele permanecia apoiado pelas palmas das mãos na bancada, olhando o conjunto de coisas curvas, o pé esquerdo apoiado na panturrilha direita. Dali ele podia ver a rua através da vidraça. O movimento foi rápido. Uma confusão de cabelos, da cor de palha do milho, soltos pelas costas. Uma mão pequenina apoiou o objeto no beiral da vitrine e os cabelos saíram voando. Uma cena pouco usual, chamou a atenção de Gelson. Ele foi à calçada, a ver se ainda avistava aquela figura desgrenhada. Ele voltou-se para o beiral e estava ali, inteiro, exceto pela falta do bico, o cuco, vivo e sangrando.

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