contos de tarantá 1





Era fim de tarde em Bernardo Sayão. Dona Wasi saiu  pra buscar meia dúzia de pregos na venda do Zaqueu. A fama da Dona Wasi não era muito boa, todo mundo conhecia a língua solta dela, então ela não era muito bem-vinda nos lugares. Naquele dia a dona estava particularmente tagarela, não fazia nem ponto nem virgula, de tanto que falava, sozinha mesmo.  Comprou os pregos e também um martelo, falando pelos cotovelos, umas frases compridas e espetaculosas. Como o Zaqueu não deu trela, Wasi logo foi-se embora, gesticulando muito, que era pra falar cada frase duas vezes ao mesmo tempo. As passadas da dona, largas umas, mais apertadas outras, davam o tom e o pulso da falação, que era cheia de agudos bem pontudos nos meios das frases ou em qualquer outro lugar que pudesse causar espanto.  A voz da mulher soava bombinhas de São João. Quando Wasi ia chegando no portão da casa dela, viu abaixadinha, enroladinha feito uma centopeia, uma menina muito da bonitinha, mas muito bonitinha mesmo. Pelo menos nos cabelos era. Que cê ta fazendo aí agachada, minina!!! A menina nem se mexeu. Mas que cafife! Que cê tá fazendo assim, atrapalhando minha passagem, vamo, paassafora!! A menina estreitou seu casulo cabeloso, encolhendo ainda mais os bracinhos muito magros, apertados aos joelhos. A cabeleira era da cor de cabelo de milho, muito volumosa, cheia de cachos. Não dava pra ver o rosto da criança, nada. Só se notava que era muito miúda e assustadiça. Ia passando Dona Idália, que tinha verdadeiro pavor da Wasi e não atendeu ao chamado então, empinando o nariz e seguindo seu caminho. Do outro lado da rua ia Seu Tenório. Mais manso, ele pelo menos olhou a dona e a menina, mas deu de ombros e partiu em passo lento, apertando o chapéu entre as mãos. Uma garoa bem fina e bem molhada começou a cair. Se algo não fosse feito logo, ficariam, a menina e Dona Wasi, ensopadas. Já era meio de outono, tempo nevoento. Seu Otávio, de braço com a mulher, foi obrigado a mudar de calçada e ai dele se olhasse para trás. Todo mundo pode estar pensando que Dona Wasi falava mal dos outros, mas não se trata disso. Ela era educadora, estava agora aposentada, mas continuava dando aulas todo tempo. Para tudo ela tinha um ensinamento. Ensinamento demais cansa. Um piazote cujo apelido era Girimum rodava um pião na esquina, a mãe berrando da janela pra ele sair do sereno, ir jantar. Dona Wasi, pouco habituada com pequenos, chegou-se ao Girimum. Contrariando as expectativas, o menino olhou pra dona e sorriu. O sorriso desarmou Dona Wasi, que olhou demorado pra menina, olhou outra vez o Girimum e mais uma vez a menina. É que o pai dela foi-se embora, Dona Wasi. A mãe é morta. Um silêncio maior que a chuvinha, que engrossava, pairou na rua inteira. Wasi aquietou, concluiu a aula sobre gestação de ideias que vinha dando desde que saiu pra comprar os pregos. Balançou a cabeça pra Girimum, em entendimento e, com o rabo do olho, apontou pro menino a mãe dele, que parara a três passos da cena, a chinela na mão. Girimum olhou Wasi e disse cuida dela, ela não tem mais com quem contar. A chuva tava virando prego quando Wasi se abaixou, abriu a mão e mostrou os que tinha na palma. Custou, mas a menina levantou um pouquinho a cabeça, para confirmar a boniteza e a dor estampada nuns olhos muitos azuis.

Comentários

Postagens mais visitadas