março de lenço branco

2 de março

queria visitar uma noite de bloqueio criativo
pensei primeiro em Cecília Meireles...
aquele olhar ameno, a caneta tinteiro
ensimesmada
entre os dedos delicados dela
as bolhas ao lado
flutuando namoradeiras
o guarda-chuva da viúva
pingando atrás da porta
uma confusão de reminiscências
perfume de rosa
um copo com chá
uma noite nem quente
nem fria
nem sei
uma fiandeira
a cantar num descampado longínquo
amoras maduras
num pratinho todo branco
emoções sãs me impedem o choro
e então o bloqueio criativo é só uma coceira vã
o mar está do outro lado da vida
ficar em pé é assunto pra esse tempo também
eu faço  música com gente viva
e só me importa essa gente acordar
Cecília, poeta da doçura
vem olhar por mim nesta noite
que meus dedos dormentes
sem bolhas
sem chuva
sem mar
não tem o que contar
serestas urbanas

10 de março

a confluência dos tons de do maior
embala os sinos de Grijó
sou beneficiária das delicadezas de Romariz
eu que canto vez por outra
os últimos suspiros
a última hora
um adeus tão doce que cala
a Freguesia acena suas casas diamantinas
o céu púrpura anuncia um fim de verão
e eu tamborilo o teclado
ajoelhada, revoando
um repouso, um roçado, uma luz
um tanger a orla no passo
um moço forte como uma palmeira imperial
a dividir a messe de contar história
uma chuva de rosas
cordas concentradas de um violão distinto
inaudito
se irmanam na canção
somos vaso sagrado da saudade
eu, que estou nem alegre nem triste
ouço tudo e espero
ainda há notas de quaresma
ainda há padres confessores
ainda há dores de amores
e véus a desvendar

20 de março

e vem mais um outono
o meu eu acena
de uma ponte pênsil 
é para mim que ele sacode as rosas
brancas, amorinhas
vem, vem, canta ele alegremente
passa, que já vão os dias de chorar
sigamos em frente, ora pois...
minhas vestes, feitas a egos rotos
estão justas
emboladas no ventre
quem sou nesta condição
torna-me incógnita
o caminho de sal
dá o curso à ponte
devo avistar com ele breve
um amigo vem ter comigo
sente meu cheiro
e se vai
as águas, igualmente de rosas
não cobrem o que me vai de temores
caí, não tem muito,
no enredamento do falso seio
e deu-se tamanho estrago
que cantar foi a única solução
solução, não missão
e vem mais um outono
e o que me dê eu
a acenar da ponte pênsil
canta
é o divino riste de um brilho

24 de março



 a alma,  o sono, a ideia, o corpo
pus para lavar

a vida, a escada do Bonfim, a brasilidade
a voz
pus para dançar

a roupa, a lápide, o arroz, a lágrima
pus no colo da mãe

a língua, a foz, o afeto
pus na cauda do cometa

o tempo, a lava, a lavra, a reza
pus na melodia

o verso o que ficou de mim

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