nas águas mornas de fevereiro






2 de fevereiro

Noite que traz o dia
O dia que anuncia bem cantar
Senhora dos Navegantes,
Senhora dos Navegantes, Odoiá
A garganta arde
São Brás vem cuidar
Ele, voz de catavento
Nos sete mares vem falar
Ouça a maré rugindo
Rindo
A barca do pescador
Deu tucunaré de outra parte
O vento diz que vem do norte
Santo André de Florença é que sonhou
Nasceu da aura dourada
A paz de lua almejada
Vida de aluvião
Eis a métrica quebrada
a rima de contramão
Garatuja inflamada
A Santo Onésimo se pediu perdão
Nem toda coisa bonita tem gosto bom
Tudo tudo é só começo
É melhor que solidão.
Senhora dos Navegantes, Odoiá!



3 de fevereiro

Montei num cavalo de luz
A cantar um sonho
Sonhado quando a manhã era nascida
Entre os dentes do passado
Suas doses de incompostura
E brita e cruz
Meu corpo arrastado amiúde no solo
Se pôs a flanar
Doce sensação.
Ficou leve, pólen flutuador.
Na hora pensei: morri.
Foi o tempo de sobrevoar de perto
Uma copa de árvore
Folhas de espírito santo
Umas verdes, outras avermelhadas
Sinalizando outono
Meu corpo amontoado, búdico
Estendeu a mão para tocar a copa
Antes do suspiro de voltar
Mais um renascer
Meu corpo pousou leve,
Quente e reconfortado
No colchão,
Envolto em eflúvios azuis e brancos.
Obrigada, Mãe do Cristo
Por tal revelação.


6 de fevereiro


Eu me lembro da segunda-feira em que te vi
Verão coado nas vidraças empoeiradas
Cúmulus de beleza extrema
Acumulados, chuvosos, sem chover
Naquele dia eu soube que a vida tinha dentes
E sorria, tímida
Para aqueles que, como eu
São filhos de Maria
Eu ouvi antes tua voz, já sabes.
Daquela experiência ,
Audiação,
Cosi um manto.
Exercitei o cristo do meu nome,
Empalideci, corei, suspirei
Pesei pros e contras
E está, abri meu coração
Para que tu entrasses.
Cantei duas vezes para minhas veias
José, José
A base sólida de qualquer canto a vozes
Nascia ali.
A porta continua aberta,
Embora bata, seca,
atada pelo vento.


13 de fevereiro
Um regalo muriquinho
Vem assim pequenininho
Para te ninar
És meu doce, menininho
Do sorriso engraçadinho
Para me alegrar
O que tenho de ternura
Um amor de fortaleza
É pra te adornar
Meu menino de candura
Eu te dou minha beleza
De azul e mar


15 de fevereiro

Uma chuvinha friinha
Desfila de porta-bandeira
Neste Carnaval.
E cais, e asfalto.
O folião de pano
Abre a boca
E o que canta é superfície
é lago.
A água assim filtrada
Passa ponte
Passa caco de vidro
Paralelepípedo
E coração.
Que não se pode desprezar
O dito em meio a tanta confusão.
Cavalo de pau também vale
Na cidade de nanquim
Tudo passa a tiro de festim.
Um passista da alegria
Leva no pano toda a chuva
Como a pata de uma ave
Sobre um filhote.
Quando uma porta assim
se abre
Acontece o samba enredo
Ilumina-se a passarela
O pano cai
O pierrot chora.


22 de fevereiro

Hoje eu gostaria de encontrar-me com Álvaro de Campos.
Ele deixou-me A Tabacaria como texto mais esclarecido,
mas eu gostaria de lhe pagar um trago,
estender-lhe um cigarro
e esperar que ele escrevesse versos doismilequinzianos.
Hoje eu pagaria para encontrar Álvaro de Campos.
Para sentar a um canto em sua mansarda
fazendo-lhe a incômoda companhia dos nulos
dos largados na vida.
Hoje eu daria tudo pela companhia de Álvaro de Campos.
Como eu explicaria a ele que pretendia trabalhar
já na segunda-feira
e que não posso
porque as massas se mobilizaram
para um movimento que se usa no Brasil
como calça justa, como roupa de segunda mão
que não serve?
Como eu declamaria lamúrias a Alvaro de Campos,
como argumentaria que meu trabalho
carece de gente para cantar
e um teto tosco que segure o som do canto?
Como eu lhe diria que pretendo relembrar aos cantores
a doçura da Grandola
e a simbologia dos cravos
talvez irmanando-me no sentido
de uma tomada de decisão popular?
Como eu diria que me confundem
a ordem das coisas
as turbulências
as inoperâncias
os desmandos de toda sorte
os apelos juvenis tardios
as conclamações setentistas
tão velhas, tão velhas...
Ah, como eu queria a lucidez de Alvaro de Campos
Meu peito está ferido
meu sono não dormido
meu corpo padecido
meu espírito por um tris
Então, sem Álvaro de Campos e sem teto
sorrio eu, sem cigarro e sem o Esteves
que não entrou na história

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