Janeiro maiano

No céu, frondosas cristas
De velocidade indeterminada
janeiro passa a pequenas surpresas
caixas pretas recuperadas
risadas reprimidas a bala
fortes ondas de calor e frio
gente "inocente" voltando aos umbrais
gente "truculenta" pondo pontos finais
Nova santa ganha "asas"
redações inconsistentes
sambas-enredo nas quadras
as baterias improvisadas
e abrem-se as portas dos estádios
No coração, um leve desassossego
há nuvens sobre o Parnaso
e o mar, povoado de fractais
cria desenhos de aliens viajores
em mergulhos irreverentes
O olho vai em busca de novidade
e encontra a estampa mal prensada
a saia mal cortada
os tecidos mesclados a pele de bicho
renda e flores de alguma floresta tropical
enganosa e mormacenta
ninguém sorri e todos comem chocolates
As selfies pululam aqui e ali.
os planos em porcelanato
dão alguma trégua
ao poeta perneta
Morrem os homens. Parece que nasceu alguém.
A mão toca a tez da mesa
buscando outra que não está.
A memória libera um riso gostoso
e a água escorre
suja
do forro ao chão.
Na ânsia de dizer saudades,
o poeta deixa suspensa a pena.
O mês de janeiro estaca, a espera.


19 de janeiro

 "E um incêndio amarelo e provisório consumia o coração. E começou a procurar pelas fogueiras lentamente, e o seu coração já não temia as chamas do inferno e das trevas sem fim. Haveria de chegar o amor." Água e Vinho
Egberto Gismonti. O músico da minha juventude. Já falei isso num programa de TV do qual participei. Gismonti é, para mim, a escuta que abre meus poros musicais. Ao escutá-lo eu canto. A poesia flui dos meus dedos e os encadeamentos melódicos florescem para mim das harmonias inefáveis de Gismonti (eu, músico medievo, penso música horizontalmente, já acompanhada de um baixo modulante pelo menos). Ontem fiquei um tanto triste no Teatro Guaíra, quase chorei, o som não me chegava pleno onde me sentei - e era um encontro musical que merecia tal plenitude, já que a escuta de Gismonti é baseada, no meu caso, em aparelhos Gradiente. A luz, muito baça querendo ser bonita, fez-me ter dificuldades para focar o palco. Fechei os olhos várias vezes, mas a fruição estava comprometida pelo meio acústico meio amplificado, entendo a necessidade de pureza, os problemas da equalização, mas o teatro tem falhas acústicas sérias. Sofri um bocado nesse domingo, musicalmente falando. Apesar do amor que sinto, pelo grande da Música Brasileira e pela gente bonita da orquestra, cujo crescimento musical acompanho de perto, com alguns eu trabalho, muito me apraz tal troca. O Teatro Guaíra precisa de ajustamentos. Urgentemente. Não estou falando de acesso, porque bem ou mal, há. Estou falando de equipagens, de procedimentos acústicos adequados. Desculpem os bem intencionados, mas o Teatro Guaíra está à mingua. Que pena, pena da cultura, das artes, de tanta gente a serviço da Arte sem uma casa de peso para mostrar seus trabalhos.
Perdoem mesmo, mas o meu coração se calou ontem à noite...

A análise mais profunda eu deixo para André Egg e outros, que compreendem melhor a dinâmica cultural da cidade.
Que bom, vi alguns fapeanos na platéia, um ou dois do canto. Pena, depois o diálogo fica difícil. Estabelecer contato, referências, apoios, fica difícil quando não há escuta compartilhada. Atenção jovens alunos, novos e já conhecidos. Precisamos poder conversar para cantar. E a Orquestra à Base de Sopros + Egberto Gismonti é uma combinação excelente para o pontapé inicial aos trabalhos de 2015. Quem não viveu o que eu vivi ontem, jamais viverá.
"Segue o teu caminho, minha Caravela..."

20 de janeiro, São Sebastião

Na atual circunstância da minha vida tenho lembrando reiteradamente da personagem Abraham Simpson, pai do Homer Simpson. Acredito que a “excelsa família americana” ainda seja motivo de riso e distração nos canais da FOX para milhões de fãs. Pois o Abraham é minha referência de manifestação das opiniões daqueles que passaram da idade de cinquenta anos. Ele escreve cartas reclamatórias a todos os órgãos possíveis. Abraham aponta falhas suas e as da sociedade em geral, além de incorporar o famoso “velho rabugento”, aquele que toma os remedinhos e questiona tudo e ainda participa de passeatas, confusões, sem que nada de nobre aconteça. Abrahan é aquele cara que não merece respeito ou respeita alguém. O cara tipicamente descartável, que poderia sair de cena sem deixar saudade. Suas súplicas serão motivo de chacota ligeira e cairão no esquecimento com a rapidez de sua aparição a cada episódio. Não tenho culpa de estar me sentindo assim. Estou e fim.
Como mais um “vovô Simpson”, eu lamento que minha fala sobre o Teatro Guaíra, e hoje a estendo para o Teatro da Reitoria, ao Teatro Paiol – espaços culturais onde comumente trabalho, caia no esquecimento e fique soando como fala da personagem de desenho animado. O problema de acústica a que me referi (sobre o Guaíra), em principio só atinge à ala onde eu me encontrava, plateia da esquerda, última fileira, próxima à mesa de sonorização. Quem sabe o mal estar que passei seja resultado de um “ponto surdo” na plateia, que aflige a lugares específicos da construção. Quem sabe o mal-estar, na idade em que estou, seja consequência do momento em que “aparecem os tiques e as manias”.
Gostaria, contudo, de ir falando sobre a delicadeza da diferença: há várias pessoas que não podem descer as escadas da plateia, a encontrar lugares melhores de ver e ouvir. Não sei como os cadeirantes se viram nos banheiros destes centros de cultura (quero felicitar o Guairá, que mantém o banheiro apertadíssimo muito asseado, o que é reservado aos cadeirantes).
Um querido amigo sugeriu usar sites específicos para proclamar minhas reclamações e solicitações. Aí é que eu me senti o próprio Simpson, com certa dor. Entretanto, não se preocupem aqueles que leem minhas crônicas, vou tentar ser um Simpson simpático, insistente mas simpático. Vamos precisar de muito tempo para retirar da cultura a ideia de que estropiados precisam ficar apartados da sociedade, os diferentões que não fazem diferença, aqueles que se podem contar nos dedos quando se olha a disposição das cadeiras da platéia. Afinal, cerca de 1500 pessoas ficaram satisfeitas com a apresentação da noite de domingo último, é preciso refletir sobre esta perspectiva.


21 de janeiro


No chão morno da sala de moldes improvisada
Meu corpo sem músculos despiu-se e inspirou para permanecer em pé
Nobre corpo surrado, tenso, debilitado
Exausto de tanto esfalfar-se
Nunca satisfeito em nada
Sorriu faceiro o corpo e expirou quando tocou o chão
Deitado, sem prumo, sem viço de mulher
Escutou minha voz a pedir desculpas
Pela absoluta falta de beleza
Eu cantarolava um tema de Estrella Morente, entredentes
Vencida e exposta, semimorta de vergonha, descabida
Meus braços enraivecidos retribuíam a violência com câimbras
E essa agora, novidade escura e pesada
Meu lado direito androide
Que bom se fora, moveria as pernas a controle remoto
E eu teria de volta a beleza do passo
Ledo engano
Desembolsados os quatro mil e quinhentos reais
Resta aguardar a nova gerigonça pesada
Para mais cinco anos de penar.
E a perna esquerda, a que precisa de couros novos
Esta ficou a ver navios, braços nas cadeiras
Sem fala...


22 de janeiro

Soavam, nas coxias, as gretas dos interruptores
A noite friinha, um espanto, um de repente em janeiro
Orvalhava a pele sem casaco
Vento forte, quase maiano, erguia as saias
Informes do vestido saco,
Clemência dos anjos após crise hipertensiva.
Ele era esperado por quem conta
Nidificações
Tinha de si aquele sorriso amplo
Estrelas a lhe preceder o passo
Deus, o Seu pedaço mais bonito, alvorecia nele.
Intocadas palavras, era impossível falar.
A paz cantou loas em derredor e os que passavam
Conspiravam no perímetro estranha alquimia
O olhar não podia demorar-se, amorável.
Não podia causar comoção contrária.
O mundo não condenou tal contrição.


24 de janeiro


O poema, a gente o cose com epidermes
Há que aproximar os dedos, tatear
Para que o verso saia da veste,
Mesmo que tímido
O poema, a gente tange com murmúrios
E chama, que chama e chama
E ele espreita, a ver se temos fibra
Em seu tecer
O poema, a gente se desarma
E ele flui, dos mais estranhos sentimentos
Esses que a gente não pediu
Não viu brotarem
E quando nos damos conta
São missões de espera
O poema, a gente doa
Para aquele descansado diante do mar
A tarde quente já anuncia a lunação
E o melhor seria recolher os galhos
E encetar o fogo
O poema, a gente murmura
Para que atravesse os charcos, a foz
O regato e a marola
Dentro da garrafa verde e chegue
Algo de bom, ao coração.


25 de janeiro, da conversão de São Paulo, louvado seja, bendito seja.

O poema, a gente o coze com sangue
Há que o marinar, a dedo
Às vezes às custas de febre e prostração
Para que do verso brote a varíola
Ave do rosto deformado
O poema, a gente dedilha em solea
E ponteia, que ponteia e ponteia
E ele geme, a ver se temos fibra
Em seu soar
O poema, a gente se esmera
E ele esclarece os mais estranhos sentimentos
E, se a gente não os pediu,
Podem muito bem virar placebo
O poema a gente doa, é certo
Para as gentes todas e sua confusão febril
Para a obra maior a que se destina o humano de nós
O poema a gente diz
Pausadamente
Para que todos saibam que estamos
Em perene vigília
O espanto me atacou pela manhã
O encanto se quebrou
O poema juntou os cacos
Da tal garrafa verde,
Ah, triste acorde final.

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