Vértebra 29
S5, piramutaba ou a humildade
A gente tem que carregar muita flecha envenenada que desferiu mundo afora. Guerreiros, unidos como colmeia. Temidos como varíola. Canoeiros Yorimã. Tupã dera a eles valentia, lealdade, desejos de Ilha de Marajó. A paz, impressa em verde oliva, cantava profundo no olho que podia ver. Havia o outro, o olho que vagava. Havia tudo para todos. Esse querer sem medida e que não é a fúria fez tanta gente cair, adoecer, enlouquecer. E virar peixe.
Há um colapso entre homem virar peixe e peixe virar gente. Peixe que come peixe. Barbilhões e penacho. Flechas, couro. Regalo nas mesas finas. Assim passou-se o dia, no rancho do velho Selim. Não era hora de despedida. Era conversar apartado, de causar formigas loucas e aquela ciumarada habitual.
O velho Selim contou causos de guerreiros Goitacazes, que caçavam cervos e tubarões a unha. Tudo para falar da abobé que veio dar na palafita, trazida pelo filho, de alcunha Tijuca. Ele a achara já velha, encostada em uma árvore para morrer, próximo a São João da Barra. Decidiu que era sua mãe. E por ela desvirou-se. Tijuca é Yorimã. Foi deixado para trás em uma batalha. Desceu da Ilha de Marajó até o norte fluminense, uma flecha na coxa. Não morreu pois é piramutaba. O histórico dele era o mais feio que pode acumular um guerreiro: ferir e matar mulheres, depois de as cobrir. Um olho cego do índio, revirado na mata, traído pelo seu povo. Assim ele pensava. Quando entrou na tribo de Curuatinga, quis as cristas de flecha. Da menina que lhe serviu ali, não guardava o nome ou a cara. Se visse hoje, era mais uma. Todos conhecem a perfídia, Tijuca contra doze guerreiros, Curuatinga no chão, cabeça enterrada com formigas cortadeiras. Os outros onze ele foi pendurando nas árvores, um a um. Um dia embestou, deixou a mãe adoentada na palafita e foi até a Serra Pelada, onde garimpou a pedra bruta que não cabia na palma. Quando voltou a Eirunepé, decidiu andar nu como o Yorimã. Quebrou a professora primária, dona Tem, quebrou aqueles bicho-pau que o apoquentavam, os da vizinha de palafita, a Cândida. Depois o rio encheu e o levou sem dizer adeus. O velho Selim contou que Tijuca esteve em Tayona. Marcou mulheres nos parques, praias, ruinas. Deixou rastros na Colômbia. Sempre pagava em diamantes, é o que diziam. E corria também que uma pedra que não cabia na palma da mão era a vida do índio e estava perdida.
Xaxim Verdadeiro escutou a historia enquanto movia os bilros. Se aprendeu algo é que a discrição encurta ou alonga, depende de como se aplica. Tinha parte com esse peixe, até em demasia. Salgar-lhe a memória era seu desvelo. O Yorimã ainda lhe assombrava os sonhos. Para a índia, era chamar logo a Mãe-do-Raio, que desferia a carga letal. O magnetismo da subjugação sofria leve rachadura, que logo se costurava com um arrulho de Isi’po. A menina era o cordame mais poderoso com quem se podia conviver. Seus cinco anos, completados na última lua, ofereciam sustentação e liberdade. A mãe tratava de aliviar a filha, oferecendo-lhe os atributos de ife. Parece que o Tamõi imunizara a uyra contra as grandes prostrações. Criança grácil, leve, doce, amorável. Um passarinho da ordem dos gaviões, aliado de Byr.
Em alguns momentos, doía em Xaxim Verdadeiro o ílio, dos tempos da puca que gestou Isi'po. A dor irradiava para a bacia. Era erguer-se, esticar-se e esquecer. Hora de ir. O velho Selim, que já tivera seu quinhão de consolo um dia, ao saber da decisão da índia, pôs os braços em volta daquela cintura e afundou sua cabeça nas solfas da saia. Ficou assim somente o tempo de inspirar e exalar o ar. Então soltou aquele colo, aquelas ancas, sem olhar para cima. Xaxim Verdadeiro pôs a mão na cabeça do homem. Ele dormiu.
Na cozinha, Conceição lalarilava o Cuitelinho, a canção preferida do filho. Há mais de um mês o menino não tomava aulas, estava triste. Jovino avivava um pouco quando a mãe lhe preparava tapioca recheada. Legumes e uns pedaços de piramutaba que sobraram do ensopado, Conceição dava voltas na existência do filho assim, pelo coração. Tinha historia esta mulher, e era historia quarada. Conceição não se queixava, ao contrário, bendizia o menino do rio que Xangô lhe dera. Rapazito, Jovino rodava pião no quintal. A viola descansava no suporte. O padrinho lhe equipara com o de melhor para músicos: estante, caderno, métodos, encordamento, até um banquinho para apoiar o pé. Mandara vir a viola de um luthier paulista. O velho Selim pedia a Allah que curasse logo aquele luto, para que o menino quisesse tocar com a vida que tinha. Já perguntara algumas vezes se o afilhado estudaria em Manaus, com patrocínio. Jovino não respondia, não se imaginava sem a mãe. As cantigas que aprendera eram dela.
Catira, a governanta do rancho, ficava amuada a um canto, perdera-se em senilidades e não era tão entrada nos anos. Andava esquecida, irritadiça, tudo amolava, encalorava. Era grata pela presença das moças, das crianças. Quase fazia de conta que eram família. A não ser quando se punha a pensar na cria do seu ventre, muda há quase cinco anos. Nem telegrama. Poderia ao menos telefonar. Nada. Catira desconhecia o uso da máquina que estava na sala, um rádio amador, tampouco do computador que chegara tinha algum tempo. Quando Xaxim Verdadeiro colocou a mão em seu ombro, naquela manhã de decisão, Catira tomou outro daqueles choques que a descompunham, mas acabou por melhorar-lhe o moral. Teresa não dá noticias há muito tempo, fia, choramingou. Essa coisa de saudade amarrota as entranhas da gente.
Fia. Xaxim Verdadeiro gostou daquele som. Quando lhe perguntassem o nome durante a viagem, diria Fia. A índia se pôs a escutar a história de Teresa, a moça que se fizera em Manaus. Foi descoberta na palafita de Dona Tem aos doze anos, por uma agência de modelos que procurava locação para um desfile. O pai de Teresa, amargurado com a obesidade da mulher, decidiu partir e levou a filha para a capital. Lá, a moça fez fama com comerciais de kombucha e margarina. Ao quinze anos, o pai a casou com o filho de um fazendeiro de soja do Mato Grosso. O casal novo foi viver em São Paulo. Teresa, ainda ofuscada pela fama, fez tudo sem reclamar. Sua cabeça era cheia de vergonhas das raízes. Dessa forma, negou a existência da mãe, não tinha por que lhe telefonar.
Tudo isso, Catira sabia porque sabia. Naquele momento do choque, sentiu que a filha estava morrendo em algum lugar. Para a distrair, Xaxim Verdadeiro perguntou se a senhora gostaria de visitar a cantora, Mayara, no hospital. O novo morador da travessa, o Canota, possuía uma caminhonete, levaria as duas com gosto. Jovino se juntou a elas, ia comprar um regalo para a mãe.
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