Hospital Casaredo 98
Seis meses
Os primeiros seis meses que acolheram o advogado Giulionni ao Casaredo foram os mesmos seis meses em que Kyle, o ator escocês há algum tempo em coma, mudou seu quadro clínico de forma terminante, de tal forma que não se pode afirmar, tenha estado ele acamado, tenha estado ele presente ao cotidiano do terceiro piso ou da enfermaria, tenha cantado, com o acompanhamento de Te Dan, se A lenda de Bai Suzhen[1], ou a Gaivota[2], se bom fadista, sob a tutela do coração de Gaspare, seu enfermeiro particular, se especialista em Shakespeare, se era autocida moroso, se andava em férias consigo. Sem mais aquelas o ator, mais conhecido como Vera, deu com as luzes mortiças de seu dormitório muito limpo. Dissolveu, feito nuvem, feito pensamento ruim. Giulionni, quando o sinistro aconteceu, não pode encontrar os registros do paciente. Nem Alev, o homem invisível, por mais que se esforçasse. Não houve inquérito, não houve corpo de delito. Não houve quem chorasse pelo ator. Se alguém perguntar por mim, diz que eu fui por ai[3], a última carta bilhete recebida por Gaspare, por posta restante, entregue ao porteiro André.
Os seis meses em tela podem dar conta, também, do desvanecimento sutil das memórias de Madame, é bom que se registre o fenômeno, como se, ao escrever, ela vazasse um tanto de marés. Bom avisar: apesar das ausências, era seu costume ler. Se internalizava o cerne das leituras, não se sabe. Tinha pressa, contudo, expressa no modo urgente com que quebravam as pontas de seu lápis. Alev, o homem invisível, surgia de qualquer parte, sempre com um apontador ou lápis novo. Pedimos desculpas se o leitor não foi ainda informado, junto ao caderno de espiral multicor vinha sempre um livro, em geral com grifos e anotações. Pequenas menções dessas leituras figuram, ao longo dos textos publicados no Dores&Risadas, em notas de rodapé.
E foi, durante estes seis meses frientos, que Madame pôs um possível fim à saga do seu comandante, o José Gaetano, o bem pouco conhecido pirata galego genovês. Parado no convés, feito mastro, dias antes da partida a Portugal, ainda a sentir dores, borboletas de palavras na mente, José sonhou com a cabine da Sor, como se fora Terçanabal. Queria dormir, era noite de lua cheia. Apoiado ao corrimão, pronto para descer, pode escutar o mestre Maden às mesuras. Ele recebia a bordo o músico Pônsio de Luzera. José pasmou, se era para estar do outro lado do Atlântico este gajo. Mudaram de pronto os seus humores, talvez rápido em demasia. Foi logo ter com eles e então soube, o colega viera tocar na Academia do Rio de Janeiro e aproveitava a ocasião para visitar, em Santos, a dama preta do doce de marmelo, a quem apreciava pelos dotes culinários. Pônsio nascera no litoral paulista, tudo ali era familiar. José se deu conta das fortes transformações físicas, éticas impostas ao colega, a vida oferece o que nela é pescado.
Um cético com produções alheias este Pônsio, achava tudo barroco e excessivo em vírgulas. Eis a primeira mudança: auxiliado por um bom vinho do porto, Luzera deu contribuições sensatas aos textos de José. Costumava ler argumentos, libretos, roteiros, apresentações e discursos. Ao tomar ciência das recentes histórias escritas pelo bucaneiro, o músico retirou do alforje um fagote e desenhou profunda melodia, onde cabia um bordão móvel, a ser dedilhado pelo santur. José respirou, havia conteúdo em meio aos tremores das mãos. Pôs-se então a declamar, à maneira dos bardos. Quando concluíram aquele encontro, testemunhado por um Maden em êxtase, estava esboçada a ideia de um recital.
O palco, oferecido pela dama preta do doce de marmelo, foi a casa de ilustre dama da corte portuguesa, em férias na baia. Saíram, os dois músicos, a passeio pela barra santista e encontraram, de surpresa, o acordeão de Jesiel Lúcio, a guitarra de Abrunhol, o saltério d’arco de Antonino, os adufes do risonho Afrodique a tocar em um quiosque. Essa trupe já havia estado com Luzera quando ele viera ao Brasil, de outra feita. Sempre sonharam, todos, com turnê pela Europa. Lisboa lhes pareceu um sonho. Contavam com o apadrinhamento desta dama para quem ofertariam o sarau.
José, voz e santur, teve permissão para acrescentar outros cantos à récita em maturação, outro parágrafo de sua composição, intitulada Cabrália, E do meio da mata surgiu o caboclo, cariboca, carijó, cafuzo, tapuio, caipora. Cantar cê era sua sina. Contar história, causo, notícia, boato, zum zum zum, mentira, anedota. Com olhar eçá verdadeiro etá, cantava a dor caci e também o amor angá. O caboclo pegou na viola, experimentou com ela a força da fibra que se apega, cipó. Não largou mais. Fez pacto com o tinhoso para tocar melhor e o medonho lhe deu logo vinte dedos, casco de tartaruga e tripa de ovelha. O pinheiral era um perder de vista de curitibanos. O tempo passando e a ciranda empurrando as entradas, bandeiras, a corrida da madeira, do ouro, diamante, cana-de açúcar, café, látex, boi, outros minérios, fontes de energia, terras e casamentos arranjados. E os cantos e a viola de arame não cessavam. Os povos do Brasil, agora vindos dos quatro pontos cardeais, enterraram seus mortos por toda parte, para a alegria dos paleontólogos. E cantaram incelenças. Esta ciranda ainda gira por rio, estrada de ferro, caminhão, carroça, estrada de pé no chão, combi, cavalo, jumento, facão na cinta, berrante na mão e saia arrepanhada nos joelhos, cria às costas. E canta acalantos de filhos que não são seus. O fotógrafo que faz o zoom encontra o tacape, a borduna e a flecha, o rabo de arraia, a estrela e o cafuné. E um livro de reza. A seresta, a viola de arame, o violão e o adufe e “reza braba” se acumulam nos cantis. Flauta e rabeca também se encontram pelos interiores, pelo litoral. Os caiporas animam as festas e os velórios daqui e dali, do sertão à pororoca, da mata densa à Mantiqueira. O tutu, kitutu, tutu Marambaia, tutu cambê, tutu gombê, tutu quiba, saci Pererê, tutu marambá, bicho papão, sinhá velha, pavão, murucututu, todo um roseiral de seres espantosos povoam os cantos, enquanto se acalanta tanta migração. Soaram, em noite de lua minguante, memórias do Alentejo. Também Morley e Dowland, Des Prés, Janequin, Gillaume de Machaut, Martin Codax, num total de vinte e um temas. Para finalizar, curiosamente, trocaram o Corta Jaca[4] pelo Coração Triste[5]. Os músicos mantiveram a atenção dos convivas por longas horas, sem os estouvar com euforias. Iluminado pela oportunidade de tocar e cantar, José dividiu com os colegas sua fina sensibilidade musical. Tudo agradável no sarau, um toque melancólico, o último trabalho em público para José.
Noite alta, músicos sonolentos, há doze horas do embarque para a Europa, irrompeu na sala da dama portuguesa antigo desafeto da classe, escocês um tanto excedido no rum, empunhava seu fidle.
Pônsio de Luzera, nem de longe moço, tinha por bem manter acordo de cavalheiro com colegas de ofício, não se sabia de um revide dele para com alguém. Desentendimentos sim, rupturas, difícil. Jamais se ouviria dele altercações ou bradares, embora fosse mordaz nas reprimendas e tivesse uma ou outra carta na manga a desferir, se necessário fosse. Portanto, permitiu que o pretenso oponente se sentasse e tocasse com o grupo. O desafeto, óbvio, não se encaixou, viera mesmo tomar satisfação. Lá pelas tantas, o senhor do arco procurou resolver a pugna com um bofete. Luzera tomou a ofensiva em silêncio e convidou-o a contenda pela manhã, quando estivessem refeitos pelo sono. Um pajem da Armada Santista, que se divertia com uma saloia no sarau, acostumado a situações como aquela, veio em socorro do grupo, ofereceu vinho encorpado e alguns pastéis, como também umas fumaradas suspeitas. Os componentes do grupo teatralizaram o consumo e saíram ilesos. Em pouco tempo, o homem do fidle ressonava num divã e a dama portuguesa deu por encerrada a tertúlia, aliviada. A Sor zarparia com o raiar do dia, Luzera e os músicos à bordo, com bem menos apoio monetário do que esperavam.
O mar deixou ver um horizonte gris, a viagem transcorreu como que encantada. José Gaetano demarcou novamente o trajeto rumo ao Mediterrâneo, após uma récita do grupo de Luzera em Lisboa, da qual não tomou parte. Deixou o colega a caminho dos Pirineus, as mãos em agitado tremor. Quem sabe se haveria outro encontro.
Em Gênova, José negociou com o filho do meio do Conde de La Fambula. Não queria viajar em esquadra, aceitou buscar objetos raros vindos do Marrocos, o que lhe renderia um décimo do que se pagava para capitanear sete embarcações, dentre elas o navio mais visado por piratas, o Bujarronas. Para José, soldo não impulsionava ou despertava cobiça, antes o deixava de sobreaviso. O bucaneiro, em geral livre de financiamentos, haveria de encerrar a carreira marítima em breve e nem pouso tinha. A musical, ele a concluiu no último verso de Nepomuceno.
Vem, ó, Sol, vem, assume o trono teu na altura
Vê se podes fundir o meu triste coração
A jornada de José fora suficiente? Para que? Viajar sozinho não tornava a rota mais suave e mesmo assim, ele se sentia mais seguro em solitude. Ao menos, nessa viagem a Gênova, cuidava de si e da tripulação de meninotes, sem a agonia de outras naus em seu encalço, perdendo-se e extraviando, amotinando-se. Quanto aos piratas, não pensava neles. Talvez a viagem fosse derradeira. Dela, apenas cogitava retornar são, para onde, não sabia. Morrer no mar não lhe parecia consolo. Como precaução montou, na proa, nova e potente carranca. A Medusa, cujas serpentes jade e olhos ametista fascinavam, estava apta a conter altas ondas e tornar oponentes em pedra.
Uma nova manhã recebeu o comandante com dores de cabeça. Ele sorvera um vinho de bons taninos, combinado a um caldo de açafrão que a Cesária preparou. Tomou a ceia na cabine da Sor, exagerou no pão. Não demorou, após lavar-se, a vir ao convés, precisava de ares limpos.
Contrariando a todos os mitos, Cesária integrava a tripulação como cozinheira. Destemida e desbocada feito papagaio, a mulher almejava experiência profissional como grumete, estava cansada de viver sozinha na praia. Combinara com a dama preta do doce de marmelo e mais uma comadre tomarem conta da pousada, dividirem os lucros por três e lhe mandarem alguns cobres a Lisboa, em nome de Rosália Santana, pela posta restante. Cesária disse que voltaria breve, talvez casada. Mestre Maden e ela andavam de charme, discretos. Ficariam por uns tempos na herdade do rapaz, caso tudo estivesse de pé por lá, a mãe dele com saúde. Mulher forte, cada vez mais amorenada de sol, Cesária era a loucura da tripulação mirim, especialmente à hora das rações. Cozia pratos saborosos com um mínimo de provisões. Cesária dançava bonito nas cantorias à noite, uma mistura de maxixe e carimbó. Maden, carismático e companheiro, se portava de um modo que todos respeitavam. Não havia perigos para a dama ou para ele. Meninos promissores como tripulantes, os que foram recrutados dariam bons marujos, José Gaetano lhes ofereceria arrimo. Pelo sim pelo não, o comandante aumentou o contingente com mais quatro mulheres livres no porto em Cabo Verde, disponíveis elas para trabalhos de lide, também para namoro, consórcio ou aventura de temporada. Todas muito asseadas. Era uma oportunidade para lapidar temperamentos tacanhos e contar com algum conflito a bordo. Se já fora tido como paneleiro um dia, agora, a cada porto, perdia de vez a compostura o José Gaetano, um pai ia se tornando.
Transforma o frio inverno a água em pedra dura
Mas torna a pedra em água um raio de verão
Ao adaptar a Medusa à Sor, o corsário empreendeu algumas melhorias no compartimento de carga, que contava com tonéis novos. Redimensionou as acomodações dos viajores. Reformou também sua cabine que lembrava, de longe, um lugar de pesquisa e sono. Havia um pouco mais de higiene e convívio equilibrado, assim se ousava crer. Entre as mulheres, que passaram então a compor o plantel, subiu a bordo uma, que se soube depois, era parteira. Outra, conhecedora de ervas e poções, com um baú desses produtos e uma engenhoca de transformar água do mar em beberagem, água para banho e asseio de pertences e roupas, foi um achado para a viagem. Outra dama despertou imediatamente os sentidos de José, mas o fogo apagou como fósforo. A mulher veio com carta de referência, trabalharia para uma dama da corte lisboeta.
Em Santorini, José topou com o Donis. Ficou confuso, aluado, como um caneco de vinho avinagrado. A vida os empurrava em sentidos opostos. Nada havia a ser feito sobre o fato. Era deixar fluir, era o mar. Lembrar que os filhos de Poseidon eram contraventores. José e Alois eram de Zeus.
Como a escura montanha, esguia e pavorosa
Faz, quando o Sol descamba, o vale enoitecer
Esta montanha da alma, a tristeza amorosa
Também de ignota sombra enche todo o meu ser
Os sentimentos de José para com Alois permaneciam intocados, resignados, melhor dizer. José Gaetano estava bem para lá dos cinquenta anos e as tempestades interiores deixaram de ser persistentes, as meditações substituíram o grito dos alísios.
O encontro com o capitão-mor flagrou José a reformar sua biblioteca. Ele doava objetos e livros no cais, vendia manuscritos por bagatela, doava. Quando reconheceu Alois, sentiu os pés inchados e novas dores de cabeça. Eres agua en el desierto ai ai[6], logo cantou, para afugentar dor maior. Ao olhar para o amado, aquele olhar noturno, nem soube o que dizer. Era uma representação onírica de Henrique, o de Sagres, era um ameaço de península. Terçanabal. Alois bateu a mão no casco da Sor, como a alisar um cão. A conversa, pouca vibração e novidade, durou menos que os dedos de uma mão. Para Alois um novo tempo, novos interesses, novas bandeiras, uma frota de navios a conduzir. Para José, bem, para ele era a Medusa e suas serpentes a cricrilar.
No arvoredo sussurra o vendaval do outono
Deita as folhas à terra, onde não há florir
E eu contemplo sem pena esse triste abandono
Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair
José Gaetano tornou a bordo após as despedidas – sabia, de alguma forma, viriam outras -, andou de um lado a outro no convés, a grande cicatriz das costas à mostra e incomodativa. Um silêncio desconfortável em seu sobrado interior. Distraiu-se com memórias anchas, refletiu sobre quantas vezes repetia esta ou aquela palavra em suas narrativas, no tanto de parágrafos sem nexo que produziu. Estava feito, doara aos marinheiros seus textos com erros e rasuras. Ainda lutava com tempos verbais. Com ontem, há três dias e amanhã. Com o formato dos capítulos, quais ideias aproximar, quais separar, quais mudar de lugar na página. Usava termos como gozo, apego, dor, raramente escrevia amor. Andava às turras com estigmas enormes e impossíveis de consolar. Tudo no texto carecia plano e revisão. Alea jacta est.
Custou a crer, o coração triste de José, que não havia cura para si na jornada. Ainda não conhecia sobre o poder de criar a própria doença. Acreditava que seus sentimentos eram verdadeiros. Talvez fossem. Não era possível avaliar o rastro que ele deixara de destruição, ele jamais daria conta, ser tempestade para a vida de alguém. Temia, mais que qualquer coisa, deixar de cumprir o prometido com o mar. O que ele prometera ao oceano? Para onde ia o oceano, afinal? Os diários que o comandante escrevera davam-lhe pistas de seguir adiante. Talvez encontrar alguém, para trocar ideias, impressões, talvez um afago, não mais, alguém sensível, talvez isso ajudasse. Quem, se aquele de quem gostava não podia parar?
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