Vértebra 28





S4, ty ou a simplicidade

 

Olhe, vocês cometem os mesmos erros ainda. E a gente, candiru nesse rio, fica a mercê de uma lança... Não tem mãe que possa ajudar, louvaaado seja. Lembra, seu moço que não, não somos largados nos mundos. Há sempre esperanças com relação a nós. Que possamos ter esperanças também. Louvaaado seja. E chorava esse aaa do louvado, a maneira de saudação. Curvava o corpo levemente, ao pronunciar a rogativa.  Era dessa maneira professoral, salmodiada, que o garimpeiro Simeão tratava com o frei Aín naquela tarde quente. O ex religioso enredado, bêbado como um gambá, emborcado sobre a bancada de madeira do quiosque, diante da caneca de alguma beberagem antiga, mais forte do que ele poderia suportar. Fazia dias que o moço melancólico, sem vintém, matava o tempo por ali, quase às margens da BR364, em uma pequena aldeia de negociantes de tudo e mais um pouco. O garimpeiro ao seu lado filosofava, meio alto ele também e Aín cochilava, desses sonos letárgicos, aflitos. Dera para dormir, mais que vigiar. Deu no que deu. Sonhava reiteradmente com uma boca sangrenta, cheia de pequenos dentes triangulares, que lhe cuspia, todo emporcalhado, em uma panela de óleo quente. O que mais doía era a zomba dos homens ao redor do seu corpo, que cozia devagar. Há quatro dias, o frei se alimentava de alguma fruta colhida em beira de rincão, a barriga muito virada, inchada. Um boticário, apiedado do seu estado, lhe dera um vidro de licor de cacau. Aín teve medo de usar, não sabia o que poderia parir.

 

Olha seu moço, é tudo muito simples, continuou engrolando o colega de bebedeira. Tupã está no comando. Somos fauna dele, estamos aqui para cumprir o que quer que nos caiba. Não somos mais que o lobo guará ou a jararaca, não pense seu moço. Tudo no mesmo nível, tudo para harmonizar com o céu. A gente acha que é dono de pedaços de terra, pedaços de pedra, de cão, de mulher, de filho, de estrada, ancinho, caçamba, látex, do número da carteira de identidade. Mas não é mais que candiru sem chapéu, já estou me repetindo. Nem do corpo que nos veste somos donos. Daqui a pouco ele não presta mais e temos que devolver na terra. Bom saber que Tupã vai lamentar os tempos que perdemos. E esses tempos perdidos não podem ser restabelecidos. Consumiram-se. As chuvaradas que caem são o luto pelo tempo. Uns homens tem cabeça, outros só sentido, outros sentimento. Difícil encontrar um que tenha as três coisas no mesmo ser. Eu, pelo menos, não conheço. Outros homens andam em circulo como as formigas legionárias, outros sobem e descem peneira pra que, outros só veem borrão onde a mata é verde e barulhenta, outros bebem água de pântano. Simeão tomou mais um gole e começou a cantar uma toada de boi junto com a Rádio Difusora, que soava aos gaguejos no quiosque. O garimpeiro teve saudade de Porto Velho, quis seguir seu rumo.

 

Aín, delirante, escapou do óleo fervente e foi ficar metade enterrado em água pútrida, iluminado por fogo fátuo, cinco homens a enfiar-lhe os diamantes goela abaixo, pedra que não acabava mais, uma enorme, do tamanho de sua mão. Uma mulher de vestido azul céu aparecia às vezes, de longe, acenava e ia embora, assim como veio. O dono do quiosque despediu Simeão, que saiu cambaleante, chapéu na mão, engrolando uma toada ribeira. Aín foi atirado no lixão ao lado, sem piedade. Ainda recebeu uma cusparada e as costas do barista como cumprimento. 

 

O frei só foi dar por si coberto de besouros quando Uraci esquentou. Sentia coceira por toda parte e um incrível desejo de colaborar com os materiais que os bichos transformavam em bolota. Mais fundura que essa, Aín não previra. E nada de falar com seus botões, obituários, lembranças, nada de rezar. Estava vazio. Olhou em volta, sentiu a pestilência. Tonto, pode se firmar sobre as pernas e vagou, sem direção. Foi dar à margem do Rio Moa, onde mergulhou feito tarrafa. Ficou junto à beira, agarrado em alguma raiz. Não dormiu, água gelada, corredeira. Afundava a cabeça vez ou outra, como se refizesse o batismo. Não matutou sobre isso. Era vaso vazio. Toda pena de si escoou das entranhas, pela pele, pelos olhos, pela boca, pelos buracos todos. Um rosário de lombrigas foi junto. As duas horas que Aín dedicou ao exercício lhe deram alguma calma. Depois, estendeu-se na beira, escoltado por uma andiroba. Secou no corpo as roupas que a abobé lhe dera tão na confiança, era santinho afinal, naquele tempo era. Pelo menos não fedia agora, apesar de precisar de muito sabão.

 

A sacola de juta, vazia. As botas, chapéu, a lata com os diamantes, tudo perdido. Só ficara a cabeça raspada, cheia de redemoinho. A pança agitada. Os pés com bolhas. Os olhos abarcaram o pedaço do Moa que podiam engolir. No bolso da calça de tencel, um canivete enferrujado. Como não armava mais, Aín atirou no capão. Algum instinto lhe mandou ir para a rodoviária. Pedinte como se afigurava, e este fora o comum da sua existência, seguiu pela trilha maior, perguntando lá e cá como chegar. O fim da tarde o encontrou sentado em um banco, diante do ônibus para Palmas, Rodoviária de Mâncio Lima, muitas baldeações até o Tocantins. Por motivos que só cabem em reformas íntimas, o motorista deixou o mendigo sem vintém primeiro viajar nos degraus da porta. Quando a noite chegou, permitiu que Aín se esticasse no banco do copiloto, que só seria ocupado em Sucuruina, Campo Novo do Parecis. Outra coisa aconteceu. O motorista, de nome Gervásio, na primeira parada para banho e refeição, deu ao frei desvalido camisa e calça do uniforme, velhinhas as peças, usáveis. Limpas. Deu também sabonete e uma toalha puída. O frei careca aceitou o asseio, remoçou. Agradeceu quando foi convidado a uma média e pão com manteiga, mas não lhe pararia nada no estômago, confessou. Gervásio  deu ainda umas moedas, caso mudasse de ideia sobre alimentar-se. Aín leu a placa, Autoposto Sá. Disse que ficava ali. Saudou o motorista. Gervásio entendeu que tinha feito o que podia.

 

No Juruá, tudo novo na travessa, na parte devastada. As sete palafitas de pé. O vento, a cor das águas, o cheiro do pântano, calmaria. Até quem não foi lesado pelos tiros e estragos recebeu algum benefício. Na dúvida, após tanto horror por conta de boatos sobre os diamentes enterrados, os moradores que tinham forças cavoucaram todo o lugar, enquanto reparavam as moradias. Alguém safo, conhecedor da alma humana, inspirado pelo Ubiratã, arrepanhou nas saias o que quer que cheirasse a tesouro. Atirou tudo do barco de pesca, fundo assim.  Para tosquiar o rio, só com escafandro. Gaetano e Donis, que ainda não haviam recebido missão ou vivente para proteger, ficaram na margem, como a marcar a localização. Gostavam daquela paisagem e do povo congregado ali. Quem sabe pudessem fazer festa, apoiar o rapazote da viola, ou as familias dos irmãos capangas, ou o menino sem nome. Aguardavam orientação da Mãe da Lua. Conseguiam ver as muitas pedras luzentes em determinado ponto da navegação. A primeira tarefa que lhes coube foi convocar patrulhas de correnteiros para soterrar fundo o motivo de tanto barulho e cobiça. Logo, as pedras sumiram. Outra coisa que fizeram os dois patrulheiros foi soprar diferentes histórias, diz-que-diz-que símbolicos e pistas ardilosas, serviriam para confundir quem se metesse a Ali Baba. Se se aventurassem, teriam amparo de Tupã para correr mundo. Os ladinos, esses... 

 

Xaxim Verdadeiro olhava rio acima e pensava em Ipixuna, no hospital escola. Seriam duzentos e seis quilômetros de bicicleta. Ela e a filha. A roupa do corpo, o baú. Não falara com ninguém sobre a empreitada. Somente ao velho Selim contaria. Naquela tarde de novembro, a brisa escaldante convidava a viver. Os livros que dona Dona Tem lhe dera voltariam para casa, seriam úteis, agora que a professora não tinha mais nenhum. Também ficariam os que foram presentes de Maverick. A índia  lera um artigo sobre linha do tempo, os eventos que se modificavam através dela, marcos e passos que seguiam adiante, sempre. Enxergou a sua linha, as sobreposições sobre a água do rio. Uma partitura de Mayara a fez encantar-se. Assimilou o papel pautado, margeado pelo elegante S à esquerda, pontilhado pelos signos que representavam sons e valores de tempo. Assim, naquele pentagrama, identificou os postos por onde pararia quando partisse. Ainda não sabia do que precisava, quais as carências da filha pequenina. Forças da natureza que eram, habituadas a mesclar verdes, as duas passariam bem, Xaxim Verdadeiro esperava pelo defecho vitorioso. Ao invés de se embrenharem na mata e andar, elas seguiriam de bicicleta pelas estradas secundárias, irmanadas com as correntes, fundidas com os rios. O Ubiratã recebeu instruções para tornar o caminho de mãe e filha leve, discreto, seguro. Soprou os ventos.

 

Foi na prosa com o velho Selim que tudo se sacramentou. O Amerê instruiu o patrono em sonho, contou-lhe a historia da puca dos vestidos. Era para Xaxim Verdadeiro cortar os cabelos com tigela, manter a faixa de urucum sobre os olhos e um detalhe a mais, usar roupas de pescador. 

Comentários

Postagens mais visitadas