Vértebra 27
S3, aninga de várzea ou a sensibilidade
Tupã sempre sabe, tudo sabe. Tudo orquestrado por sua força inexplicável. Nem todo céu, nem toda terra, todo mar, nem o ar que não se toca podem explicar. Expande, contrai, desacelera, constrange, perfila, passa, amassa, fura, torce, alisa. Faz brotar aninga de várzea. Para o tempo, corre. Atravessa. Chove, chora. Rilha. Apruma. Grita. Espanta. Alarma. Canta. Luz.
Quando Xaxim Verdadeiro subiu a travessa com Isi’po a tiracolo, pausada, suspensa no dedão, imaginou o tufão a arrancar raízes, deformar troncos, esgaçar, escoicear, laborar de modo a revolver as almas, descobrir as mazelas, desentoca-las. Apenas cinco humanos de um lado, um do outro, provocaram tamanho estrago em terra de mulheres desfavorecidas que seria preciso algum tempo para reerguer o lugar. O rio, povoado de destroços e lixeiros aquosos. Para os urubus não havia refeição, a não ser a placenta dos meninos nascidos. Oferta de Tupã. Um tanto de respeito e pesar da parte dos pássaros roncadores.
As perdas humanas, não era possível consolar. Não no momento. Antônia uivava, abraçada a Heloana. Maria embalava o neto, Betinho, que aguardava socorro médico. Mayara ninava o menino sem nome que tinha fome e a Indiara permanecia rio sobre o jirau. Isi’po subiu, deitou sobre, enlaçada ao corpo desfeito. Byr deixou. Foi tratar de recolher Maverick, amparada pelos corsários, mais Benavente y Cela. As sete primeiras palafitas, do cabeço para baixo, todas no chão. Treze pessoas sem teto e sem vintém. Alimentos desperdiçados, roupas, apetrechos de cozer, fogareiros, remédios. Perdidos. Mulheres revoltadas. Velhos tremendo. Nada de tesouros e brilhantes. Dona Tem, seviciada por esporte, desacordada. Os livros, todos no rio.
Todo lo toma, todo lo carga /el lomo santo de la Tierra:
lo que camina, lo que duerme, /lo que retoza y lo que pena;
y lleva vivos y muertos /el tambor indio de la Tierra.[1]
Logo que Byr subiu, foi a vez de Catira. Ficara junto ao velho Selim, que naquela noite tivera falta de ar. Ela o deixou a dormir. Jesus do Iguape faria companhia enquanto a senhora foi estender a mão, ver como poderia ajudar. Os primeiros que atendeu foram o doutor Silva, ferido de raspão na panturrilha esquerda e Sá Ana, que chorava todo o mar pela primeira vez, atrapalhada com a gaze que pegou na valise para limpar o sangue da Indiara morta.
Perto do igarapé havia uma clareira. Uma imagem de Francisco de Assis repousava no galho do parapará. Foi ali que Jedair, dono da funerária, firmou os aparadores para os ninhos de Heloana e da Indiara. A lua brilhava com tal fulgor que todos os lúcidos acharam por bem não acender tocha ou vela. O castigo já tinha sido contumaz. Na falta de mortalhas, Catira presenteou as mães com duas das mais lindas toalhas de bilro que cosera. Ubiratã soprou lençóis. Poderiam leiloar as rendas na quermesse e arrecadar fundos para a travessa. As mulheres, mesmo abaladas, concordaram entre si e foram buscar o que tinham em casa para enfeitar os ninhos. Era pouco, simples, mas o arranjo ficou bonito. Para a Indiara, Byr cedeu seu vestido azul, o mais novo dos dois que possuía. Heloana tinha um branco, da primeira comunhão.
Para Isi’po, uma noite febril. Amerê recolheu o serzinho em sonho e cantou até o baque passar. Selim, também sonhador, pediu a Amerê para finalmente voltar a Teyuna. O homem ébano murmurou que ainda não chegara o tempo. Isi’po, delirante, queria ir ver a macuxi que andava nas costas do naurú.
Foram passando de mão em mão as cumbucas de farinha d’água com murupi e alfavaca. A iguaria era comida com os dedos e aqueceu aquela hora dorida. Um gole de cachaça foi partilhado na bilha. O ninho do amoriquí só chegaria perto do cortejo, não havia tamanho que o suportasse. Deitaram-lhe o corpo no relvado, com a camisa e calça que usara na luta. Ele perdera uma alpargata. Repousava descalço. O lençol sobre o corpo era um abraço para o olhar. Xaxim Verdadeiro amarrou com jeito um lenço branco para proteger o tiro. Triste, não poder escrever o que foi feito dos cinco outros, filhos de Tupã eles também.
Ninguém esperava uma visita como aquela na madrugada de velar. A árvore que anda[2] colhia ideias para nova performance. Chegara naquela manhã de Manaus. Viera de avião. Ouviu na rádio comunitária o burburinho à beira do Juruá. Uma tia sua morava por lá. Tratou de assuntar. Quando deu com a falência toda, ligou para seu agente, a saber com o que poderiam colaborar. O homem sugeriu arte. Uma exposição na festa do padroeiro renderia algumas doações. Ao menos as necessidades básicas do bairro seriam supridas. O agente contatou também outros dois artistas visuais da Amazônia, que de imediato enviaram duas telas representativas para leilão.
À décima sexta hora, os corpos se uniram à terra no cemitério municipal. Mayara com o menino ficaram ali até o anoitecer. Somente Xaxim Verdadeiro pode demover a avó e leva-los para o hospital. Conseguira lá doações de leite materno e socorro. Para sua alegria, o menino mamou com voracidade. Ao segurar a criança, sentiu que era aquele o menino a quem teria de criar. Mais alguns dias e entenderia.
Das coisas que a palafita da abobé lhe emprestara, para Xaxim Verdadeiro ficou intacto somente o baú. Revirado, porém os pertences dentro. Os brinquedos de madeira e as toalhinhas de renda que tecera. A água de cheiro. O caderno, os lápis, o diário. Os livros, que eram cinco. No mais, tudo quebrado, destruído. O espelho, que ficava no balaio, foi levado. Assim também a escova dos cabelos. O antúrio estava repisado, porém não cavaram naquele ponto. Os facões, Xaxim Verdadeiro os encontrou perto do pântano. A rede e a vara de pesca, inviabilizados. Por sorte, os peixes que pescara na manhã anterior, ela os dera todos. Daqui e dali, era para o Dia do Padroeiro que viriam alimentos de troca. Xaxim Verdadeiro estava, pois, mais uma das famílias desguarnecidas.
O Ubiratã apareceu perto do meio dia. Isi’po estava com Sá Ana. Xaxim Verdadeiro, sentada à beira do rio, escutava a mata. O índio ficou do lado, a espera. Quando finalmente a índia deu por ele, sorriu. Era algo de bom que a Natureza punha no caminho. Falaram com calma e longamente. Havia várias opções. Uma casinha no salgado paraense. Chiribiquete. Manaus. Uma vaga como enfermeira aprendiz no posto dos Médicos Sem Fronteira. Próximo a Ipixuna. Quando se despediram, o Ubiratã disse que viria dali a sete dias.
Xaxim Verdadeiro, apesar do aperto no peito, sabia que não era só por conta dos pedrilhos aquela turbulência. No entanto, já possuía elementos para entender que a vida leva rio abaixo, demove, suscita. Ficara quatro anos e mais um tanto no Juruá. Era questão de desbravar. Seu povo assim fizera. Qual o seu povo? O seu chão? O seu idioma? O rio a trazia para a fronteira, como o fizera com tantas nações. A árvore que anda, na imobilidade que constituiu para embelezar a Festa de São Francisco, falou de expressividade com Xaxim Verdadeiro. Falou de arrebatamento. Da ação do arrebatamento, que move tudo, que faz progredir. Eram sentidos palpáveis para a índia. O convite foi para que ela, com seu dom, impusesse as mãos adiante do mundo, eletrizasse o cipoal, construísse um caminho para si, para a filha e quantos mais pudesse tocar.
No terceiro dia após a conversa com o Ubiratã, Xaxim Verdadeiro havia tomado a decisão. Os elos que ligavam Isi’po àquela parte do rio estavam fluidos, visitavam em sonho. Nada deixariam para trás. Ameaças, haveria muitas, em todo lugar. Uma quase inocência abrigava mãe e filha na paliçada junto ao rio, onde costumavam banhar a Indiara. No dia da decisão, dormiram ali mesmo. A uirazinha entendia muitas coisas em sua meninice. O tempo lhe crescera nos cabelos encipoados.
Com os recursos que angariaram na festa, com a benção do Padre Camilo, o impulso do velho Selim, aos poucos as mulheres armariam suas palafitas. As mães sem filhos fariam outros, adotariam. O rio correria para o mar. Catira posava de patronesse e fazia bem este papel. Alguns dias mais, as serrarias e outras casas de construção trouxeram os primeiros materiais para o refazimento da travessa. Homens voluntários vieram, em mutirão. Das sete palafitas avariadas, quatro precisavam de reparos imediatos. As outras, sem moradores, seriam alinhadas por quem viesse habitar, depois. A prefeitura também colaborou com algum recurso, de alimentação e pronto socorro principalmente.
Havia Mayara e o menino sem nome. Ambos em cuidado ambulatorial. A cantora era metade do que fora há seis dias. Sá Ana fazia companhia, pernoitava na enfermaria. Enquanto a parteira permanecia no hospital, para olhar também por Dona Tem e Betinho, as outras mulheres sem teto se arranjavam na palafita de Mayara, na de Conceição.
Selim havia guardado os materiais de música que pode salvar no rancho, com a ajuda de Jovino. Rapaz bravo se revelou este. Chorara os amigos, mas acima de tudo esteve para a mãe, como guerreiro. Selim falava muito com ele, aconselhava. Pedia, acima de tudo, que jamais fosse procurar seu pai, suas histórias. A música salvaria Jovino, o velho dizia. Jovino, teso e triste, dedilhava a viola em alguns momentos. Tinha aprendido o tema do Cuitelinho[3], era nele que se esquecia. Sabia também afinar a viola em rio abaixo, soava melancólico. O velho turco pedira a mãe e filho que ficassem com ele, o rancho era grande. Eram companhia e Conceição tiraria um pouco o peso da vida de Catira. Além disso, estariam protegidos. Afeita a ciumadas, Catira acabou sentindo na mudança excelente arranjo. Era como se a filha casada tivesse voltado e trazido o neto.
Por aqueles dias, chegaram à beira do rio três irmãos. Os mulatos Tinho, Duda e Canota. Vinham eles e as mulheres, Geisa, Filó e Patativa. Ficaram com as três palafitas por subir. Logo se espalhou que eram seguranças, da parte de Selim e da polícia. Se era boato ou não, ninguém desmentiu e Selim fez ouvidos moucos. As três mulheres, poderosas, não demoraram a dar o tom à travessa. A primeira coisa de demonstraram foi como se defender, de tudo. Elas foram lavar roupa com Conceição no igarapé. E cantaram para Oxum, o que fez a Iara chorar. Não passou um dia, uma cachoeirinha se formou.
O menino sem nome, cujos prognósticos não eram bons, ganhava brilho apenas quando Xaxim Verdadeiro chegava. Há algum tempo, a índia aprendera a andar de bicicleta e o veículo lhe fazia bem. Usava uma trilha para atravessar do bairro até o hospital, às vezes Isi’po no balaio instalado no guidão.
O Ubiratã não tinha história para contar, mas a índia sabia. No sétimo dia, ele chegou com o sol. Mãe e filha lavavam os cabelos no rio. O índio ficou um tempo a admirar a raça, o aguadouro, a manhã nascida. Não havia pressa. Haveria o período de amoldamento natural, como acontecia repetidas vezes. O instrutor até poderia dizer à mãe pode ficar, fincar palafita outra vez. Era missão, contudo, com ramificações, com viagens pelo mundo, com avanço e muito benefício coletivo. No final, quem fecharia questão seria Xaxim Verdadeiro, naquele momento ele era apenas mensageiro.
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