Vértebra 6





C6 - A alegria ou o riso macuxi

 

Expressar-se na floresta era como odor: envolvia tudo com desvelo, exigia diligência, perícia. Eirunepé havia alagado por aqueles dias, carecia cura. Dengue e malária flanavam no ar, a engendrar torpor e desalento. Uma moléstia nova, de designação cifrada, uma possibilidade de des transformar tabu, apavorava tudo. Gente à deriva, ilhada, muito cão sem dono. Muito vai e vem de canoa onde antes era rua.

 

Frei Aín, antecipando a chegada da pequena família, entrava nas taperas para levar alguma compaixão a quem era destituído de nada. Ele era bem vindo ou ignorado. Não havia muito de comer nem de beber. Nem remédio ou perspectiva. Já não chovia. Bodes e burros largados, apoiados sobre ripas, exército a espera de livramento. E mosca, e ratos. Leishmaniose. E moleques sagui, a abrir gaiolas. Um mutirão de botijões, incompreensível. 

 

O hábito vermelho era mais um trapo, cobria o centro do corpo. Quase como viera ao mundo, Frei Aín era aparição. Mão eletromagnética, tocava as frontes e encaminhava, para ficar ou para seguir. Seus rezos eram mui particulares, umas ladainhas espanholadas com um pouco de guarani. Ele evocava ternamente o padroeiro, Francisco. A branca santa clarissa era bem vinda igual. Juan de la Cruz, mentor de alma. Santa Sara Kali o mantinha sempre amável, distante. Teresa D’Ávila, a preferida. 

 

Frei Aín falava com o alto através de Antônio, a quem entendia irmão consanguíneo. Sentia-se pouco para estreitar laços com santidades. Afora esses legendários, o frei possuía afeição por seres marinhos, riacheiros, de pequenos monturos, protetores de formigas fantasmas, ingazeiras. O trasno que ia com ele era sócio desde os tempos de menino, desde os tempos de Europa. Havia também a Alcayaga, Benavente y Cela,  conselheiros que lhe segredavam verdadeiras joias, para um dia as registrar em papel, ou talvez por remessa eletrônica. 

 

Em palafita de um dos sete bairros eirunepenses, com água parada até os joelhos, Aín encontrou uma goitacás velhíssima, pele e ossos, instalada no jirau. Impôs as mãos. Antes de seguir, a abobé apontou, em um prego na parede, camisa e calça. Sobre uma prateleira vizinha ao sapé, botas de couro, quase novas. Frei Aín acarinhou a testa da abobé em agradecimento. Não pode saber sua graça. Foi o tempo de completar o gesto e a abobé sorriu, suspirou, partiu. Do corpo da anciã evolou um cheiro bom de uaimaré, presságio de boniteza. A camisa e a calça entraram fácil no corpo afilado do frei. Os pés sofreriam com as botinas. Em outra parede, um saco de juta continha um  embrulho que ele desfez. A alegria macuxi o encontrou desprevenido. Era uma mortalha, que daria dignidade aos restos da abobé. Sem mais delongas, o frei cobriu-lhe de linho. O cheiro de flor ficou mais evidente. Aín pôs as botas dentro da juta, pendurou ao pescoço. Sua figura transformou-se de frei em aprendiz aveiro. Só lhe faltava um chapéu. Ah, não mais. Perto da porta havia um, de camurça desfiada na aba. Entrou na tapera frei e saiu embocadura de rio. A essência, atilada igual. No bolso da calça de tencel havia uma pedra bruta. A mão não podia fechar-se em torno dela. Um olhar menos avisado diria carvão. Cela lhe segredou: diamante. Para Frei Aín, riqueza material era utopia. A ordem das coisas, quem lhe sussurrava isso eram Benavente, a Alcayaga. O trasno, eufórico com nunca estivera antes, queria uma talagada de bebida, um bom jogo de dados. Cela observava. Os três escritores exigiam discrição e senso. 

 

Aín tomou a abobé nos braços e a levou consigo. A morada final, vislumbrou o frei, era ao pé de um pau-brasil. A caminhada não foi longa. O sol saíra tão festeiro na yané kuraka que convocou orquestra mateira como cortejo funerário. Algo grande estava para ocorrer por aquelas bandas da Amazônia e só os filhos dos filhos dos filhos dos filhos de Aín poderiam desfrutar. O frei encontrou a árvore vermelha, formosa feito cigana jovem. Depôs sobre o humus a anciã. Poderia tê-la encostado ao tronco e deixado, mas esse costume já passara. Cavou sete palmos com as mãos. A terra acedeu, plena de minhocas. Sensação inebriante. Os restos da abobé se acomodaram bem e, logo após o réquiem, entoado com doçura, o frei lhe estendeu o manto de folhas e nutrientes. Nada de encanto, pura eletrificação, o lugar virou jardim. 

 

O Juruá havia recuado alguns centímetros, permitia seguir adiante sem desassossego. Orun Tamõi atravessava o rio naquele instante, com Isi’po ao colo. Xaxim Verdadeiro claudicava a seu lado, pura remissão. 

 

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