Hospital Casaredo 50

 

As mãos

Beira de mar, lugar comum, momento do caminhar, pra beira de outro lugar. João Donato&Gilberto Gil

 

Madame escrevedeira dera à luz muitos filhotes de caderno. As memórias se enriqueciam, polinizavam e passavam a morar nos arquivos do computador. Antes de começar a contar história naquele dia, a senhora ficou algum tempo ensimesmada diante da folha de rosto. Ao seu lado,  na mesa, um livro do escritor Yann Martel. Ainda no plástico, o exemplar ia e vinha em sua sacola há várias dias, presente de Alev. Madame contornou, na capa do seu, cada azulejo, cada letra do nome que a fazia notável na comunidade; até o mais débil dos moradores sabia quem era Madame. E era só. O nome parecia fazer sentido, revelar um detalhe. As várias histórias, era ver o que a Terra diria. Depois de algum tempo naquele namoro com a tela, a senhora pareceu cansada da luminosidade e optou por escrever à mão, no caderno que Manoel lhe dera. Gaspare, a seu lado, acompanhou cada gesto; decidiu-se por compilar os textos já escritos ele mesmo, Chang Chang faria as revisões.

 

José Gaetano encontrou-se com o Capitão-Mor Alois Donis em uma quarta-feira. Como era lindo aquele homem. Falaram por breve tempo, sem sorrisos, batidas no ombro. Apesar do estranho enlace, elétrico, visível a olhos nus, estavam os dois em seus mundos reservados, sem possibilidade de acordo. O coração de José, antes turbulento oceano, soava o areal Rub Al-Kahli. Era de escrevinhar desertos de matemática. Escapavam os detalhes, a equação da Criação expunha criaturas, reveses, seus resultados incertos. Não vieram os dois à Terra para ficar juntos, eis o que deveria soar, resignado. A saudade, combinada ao encontro, queria prantear-se, libertar o pavor, musgo pegajoso, cheiro de final. Nem o desafio mais exigente do mar se comparava aos redemoinhos íntimos de José, conhecido pelo nome e patente em muitos portos. O Comandante José Gaetano cumprimentaria, mais tarde, as alucinações controversas, que o viriam atormentar, desastres do transtorno de afeto. O mais cruel, a parasitose do pensamento, causava erosão. Desesperado, o navegador quis evitar apertos de mão, embora implorasse por estender a proximidade. As palmas demoraram pouco e o calor da pele era poço vazio. José vagueou pelas docas até perto da meia-noite. Viu-se tomado de assalto, invejou o mutualismo das árvores, sentiu roubadas as energias, a linfa, fez-se vampiro de si. 

 

Na cabine da Sor, o infeliz abraçou-se ao esqueleto Rafaele, não sem antes acender o charuto dela. Sentiu falta dos peitos da Rosália. Algum desses nomes difíceis da ciência médica, para os quais os físicos não definem padrão, serviu ao quadro clínico de José por volta dos dezenove anos. De que forma o rapaz se defendeu, ou à alma, dos redemoinhos daquele tempo? Tornou-se músico, bardo. No trágico momento que vivia, o bardo tomou o santur e passou a madrugada a tocar canções de degredo. Era o dia dos seus sessenta anos. A consciência salmodiava, grave, livre-se, livre-se. O apreço pelo caos e pelo morbo acentuou-lhe a teimosia, era deixar as coisas como estavam, seguir sofrente. Quem sofre não tem tempo para responsabilizar-se. Jazíamos, penalizados, diante da jornada francamente perdida.


Madame atreveu-se a julgar José orgulhoso, por conta da dor do apego. Que fosse doer no inferno. Arrependeu-se, porém não riscou a afronta. As composições, fruições, interpretações deste homem eram mediadas pela confusão, forjavam fronteira entre velho e triste. A criatura sabia condenar sua credibilidade. Para a mercancia, ruína. O alento vinha da prática artística, onde instantes de relaxamento permitiam expressar-se, quase confortável, produzir belezas diante dos convivas. José poupou, quanto pode, os ouvidos alheios de suas lamentações. Nas horas de escrever o marujo não estava só, e não sabia disso. Registrou equívocos, decisões ruins, efeitos de tanto descrédito, curioso não chegar à perdição mais cedo. Enquanto o navegador praticava música e escrevia suas coisinhas, sentia-se mais ou menos longe de encrencas, era no que ele se fiava. Alois Donis, pela palavra e pelo som, jamais desapareceria de sua mente. Triste sina.


Há um detalhe que permite devolver algum valor a José, Madame suspirou e seguiu a contar. O homem se mostrava capaz no trato de casos clínicos, prescrevia corretos processos de cura só de consultar um livro. Também fornecia paliativos, consolo moral. A tripulação confiava nele para achaques a bordo. José sabia ouvir, economizava conselhos, fazia boas suturas, aplicava emplastos, acertava os xaropes. Os homens davam desconto às sua excentricidades, reconheciam o quanto ele era útil a meio do mar. Usar o martelo no outro é prazeroso José, disse-lhe um dos médicos com quem conversou, o doutor Rosenberg. O duro é quando precisa usa-lo em si. Aí se prova a integridade do indivíduo. O Capitão Omar Al Rassam treinou pilotos em sua nau, a Zayn. Foi na frota de Al Rassam que José Gaetano obteve o brevê de comandante e, por mérito, físico de primeiros socorros, sob a tutela de Rosenberg. Tinha vinte e quatro anos. Tomado por saudades não muito saudáveis, por aqueles dias José Gaetano engasgou-se, com qualquer coisa que ingeriu. Depois, sentiu-se queimar por dentro, era veneno. Não havia meios conhecidos de acudir-se. Um baú de ervas repousava no porão da barca. José, após aplicar-se ventosas, invocou, e era noite alta, baleias para envio de mensagens. Também golfinhos, talvez comparecessem peixes elétricos. Aos anjos, José nada pediu. Talvez a um santo, o Erasmo. Então o marujo lembrou-se da cantiga, que cantou-lhe uma portuguesa, no cais de Sesimbra. José ficou a murmurar, em suadouro preocupante, da janela da cabine, ninou-se, conto um conto dois, falta um carneirinho. Os memés estão a dormeire, ai, será que el’ não quer vir. Olha el’ na curvinha do lençol. Conto um, conto dois, conto três, shhh. Falido, quase morto, José estimulou engulhos com a cantiga. Pôs para fora o veneno, e mais torpores que nem se lembrava possuir. Omar Al Rassam soube do feito e pediu, dias depois, para que o grumete lhe tratasse uma dor nos rins. Além de cantar e lhe dar um chá de quebrar pedras, o novo comandante pôs as mãos sobre o local ferido e retirou a maior parte dos cristais incomodativos em apenas dois encontros. 


O senhor da Nossa Senhora não era de entrar sem permissão em setor algum do hospital. Naquela tarde brumosa, contudo, o velhinho esgueirou-se e entrou na UTI, onde Kyle Genere permanecia inconsciente. Teve o capricho de encostar o banquinho degrau ao lado da cama e impôs ambas as mãos sobre o córtex cerebral do ator. Houve movimentação sutil, ritmando as máquinas. O senhor da Nossa Senhora demorou-se no tratamento cerca de dois minutos, o quanto duraram suas forças. Quando o enfermeiro Gaspare chegou, surpreendeu-se com uma respiração menos sôfrega do paciente. Foi então que se deu conta: flagrou o velhinho a dormir, enrolado em um lençol sob a cama, acostado, como se fora uma pequena cadeira. O enfermeiro tomou o avô nos braços e ele respondeu, aninhando-se. Colocou-o em uma maca. Mais um envelope foi repousar no pote, uma página em seu interior, texto enigmático, sem pistas. 


Era de se saber

Se aqui algum pai dispôs laranjas

Em cestos de laranjal

 

Era de se saber

Se aqui algum moço

Dividiu com outro o embornal

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