Vértebra 5



C5 - O perdão para mobê

 

Fosse febre terçã ou tifoide, para Isi’po o conteúdo de caminheiro lhe entraria pelas faces e desataria. Uma surpresa que eram quatro. O bicho alado, primeiro amigo, ainda não chegara. A onça servia agora de berço. Cheio de afeto, o animal vertia leite para alimentar a uyrazinha. A cabra dava sustância a Xaxim Verdadeiro. A coral encantava Orun Tamõi com sua pele vistosa, trocada de quando em vez. Todos ali tinham direito a sobrevida. A cunhanzinha conheceria um dia o concreto, o manejo do bisturi, a arquitetura social. Ainda era muito cedo para anunciar essas coisas. 

 

Orun Tamõi entrou na brenha, afundou os pés nas poças, emaranhou-se nos cachoeiros, chamou martim pescador, sanga, piraguara e muriçoca. Viu a trilha de apitos quando Uraci dava o quarto aceno. Tudo que, em soprando, virasse zero  na visão turva e empobrecida da desesperança era amassado no pilão. Ceder ou recusar, o objetivo era dar a Tupã um quinhão de maniva. Nenhuma coragem pode ser descrita. Orun velho era a coragem, nas tripas. Parou para beber no Vaupés onde encalhara e virara olho do céu. O tempo às vezes arrasta. A trouxa nas costas, que pesava um pouco, agora fazia parte de novo cenário.  Acreditar em adversidade ali não fazia sentido. O engenho era novo.

 

Orun velho entoou seu canto sem palavras, cuja intenção só ele e a inteligência pura entendiam. O preto velho exorou intermediários. O menino dos redemoinhos veio, com cheiro de fumo e fronte vermelha, todo riso. Olhou aquele quadro lasso e criou um pequeno furacão que arrancou a todos do chão. A terra é cômoda, sustenta. Molda covas também. Para seguir, era preciso o movimento dos xequerê. Macio, sensual, o menino redemoinho girou durante seis acenos de Uraci. Iaci já despontava no levantino. A cidade cenográfica que veio surpreendeu a todos os semimortos. Caño Cristales. Se haviam chegado à fortuna? Se haviam recebido alforria? Alguém é totalmente liberto na Gaia? O menino vento riu alto e sumiu no encontro de duas pedras, sem olhar para trás. Tudo permaneceu no lugar. Era ainda o Juruá. Orun Tamõi redivivo despertou quando Uraci já sorria sobre a água. Dormira no balanço da canoa remendada. 

 

O frei Aín acomodara Xaxim Verdadeiro e o bebê na sua rede, altar de pau brasil que jungia a clareira. Rezar ao relento para ele era pura benção. Ainda não haviam trocado palavras entre si. Cada um cantara a seu modo, um silêncio de gloxínia amenizara o cansaço. Aín pegou a criança nos braços pela madrugada, como a sossegar seu espírito arteiro. Embalou, cantou um acalanto galego que sabia – duermete niña, ninita del alma, santa sarah llevate a soñar, duermete en paz. Sentiu-se padre que rende la madre exaurida. Acarinhou a barriga estufada de la nina. O bebê logo arrotou. Depois adormeceu. Aín ainda embalou a coisinha miúda por muito tempo. O corpo nu de Xaxim Verdadeiro, estendido na rede, deixava ver as curvas criativas que tanto o encantaram quando desceu do navio tempos atrás. Diante daquelas montanhas, vales, cachoeiras, o frei sonhava os fermentados, as lascas de caça, olivas no sal. 

 

Frei Aín sossegara seus cometimentos de um jeito meigo, sem castrações. Entendia a lógica da vida, feita de estações, libações, doares. Presenteou algo de seu à pureza de uns olhos que ele nunca vira, apenas sentia. Esse olhar estava posto sobre ele, compassivo, Aín o sabia. Diante da mãe jovem e nua, o peito do frei sacudiu. Era Ife a clarear com o dia as comportas escuras. A versão primordial de Ife exigia paciência, candura. Aín era desses freis que não se prendem a ilusões. Na curva dos seios de Xaxim Verdadeiro, Aín viu o despertar de tempos trufais. No sorriso da vulva suave, entreaberta, Aín contemplou as antigas cavernas de Pineau. Trauteou, no ritmo do rio que vagava a alguns metros. 

 

A onça encostou na perna de Aín, como a lembrar-lhe dos afazeres cotidianos. A mobê choramingou, aninhou-se no braço da mãe. O perdão era chegado.

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