Vértebra 4
C4 - a caridade sealanguá
Sinto-me viajor sem eira, torcido no tempo-espaço. São as pernas ou as tranças. Creio que fui, com cavaleiro monge, para algum olival ao norte de Sines, ou mesmo ao sul, pros ventos de Málaga. Quantas histórias inglórias, das quais não lembro. Quantos reis, nos tornados. Quantos maus passos, quantos não se dar conta das lindezas à volta, dos olhos de machiue... quantos ázimos, quanto fracionado... quantas saias negras e aventais bordados e lenços sobre a cabeleira de cachos alourados, marrons, negros. Quanta pele, areia, quantos dentes bons e nem tanto. Quanta morfeia. Quanta gentileza natural e arroubos violentos. Quantos cair dos penhascos. Quantos panos a descer, quantas cortinas, quantos adufes, flautins, quanta tirana, quantos pregões, quantos poltrões... quantas alcovas, crianças, mascotes. Tijuca esfumava.
Orun Tamõi notou a febre lá longe, às margens do Vaupés. Byr, seu fado. Isi’po seguia o vento, que cheirava a putimá-tá. O pajé preto tratava de ofertar à cria os frutos que achava, na falta de leite bom. Ensopava o dedo na polpa e besuntava os pequeninos beiços, mais pétala que pele. A ararinha passava a língua com vagar, como a descobrir do que tratava aquele mel avermelhado. Cuspia no começo, reclamava. Depois, a fome supria a falta do líquido de brancura incerta. A chuva caíra durante toda manhã, empapara o chão, chamara caranguejo. Em que mangue andariam? O pajé preto depôs o fado sobre um tronco. Já naqueles rincões o hábito puído dos jesuítas deixara suas ervas. Outra clareira bem recortada, uma cruz em lápide de Pau-de-cabinda. Inscrições riscadas a pedra, que Orun Tamõi não sabia decifrar.
Iaci vertia encanto aos sonhos a meio no meio da tarde. Orun Tamõi, enquanto mastigava um caju, olhou de relance para a forma pouco disfarçada à beira d’agua. Gonã. Havia um buraco na junta da proa. O macã servira para alvejar algo. Conhecedor de madeiras e resinas, o pajé preto logo encontrou textura suficiente para reparar a avaria. Dois dias de secagem e poderiam seguir, dessa vez em direção a Mitú, onde travariam contato com as dezessete comunidades ribeirinhas. O Pirá-Paraná cantava e aplaudia. Orun Tamõi sentia que a viagem tardava em demasia, era improvisada. O caminho era precário. O bom de tudo é que não havia pesar na marcha. Uma compreensão profunda dos fatos e sortes, dentro do peito.
As folhas de tília, colhidas nas proximidades do jazigo, amassadas em um pilão de palma e regadas com água da chuva resultaram em calmante. Dali a um tempo se ouviu Xaxim Verdadeiro afinar com o rio uma canção aquosa. A paralisia histérica deu os primeiros sinais de deixar as pernas da mãe. A noite veio coberta de estrelas, meia-lua. Os três olhavam pirilampos em seu balé de luz. De trás de um butiá imbuia o santinho surgiu. Cabeça raspada no topo, um alo amarelo de cachos contornava as orelhas, pés descalços, um rosário amarrado à cintura.
O pajé preto nunca vira hábito vermelho. A faixa nos olhos, pintada de urucum. Parecia que o homem enlaçara o cipoal. O contrário também podia ser. O mais improvável na aparição: do lado direito vinha a onça mais mansa, do lado esquerdo uma cabra e ao redor do pescoço, sem apertar, dormia uma cobra coral legítima.
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