Vértebra (Memorial da Estrutura) Apresentação

 

 

Humanos, colunas de sustentação. Bichos, árvores, pedras, céu, rio, areia, mangue, jirau, tapera, comunidade, vestidos, violas. Acasalar, nascer, ficar em pé, cair. Canções frágeis. Olhar a Gaia e suas coisas com os discos intervertebrais que se tem. Um tempo em que os seres precisam de esperança.

 

 

 

                                                                                                 Para Nem.





Isi’po (liame inicial)

 

Diz-se que nasceu às margens do Juruá. Depois, passou o desmame numa tapera em Eirunepé. Os cabelos, que logo cresceram e viraram cordame, deram a ela a alcunha.

 

Palmito-juçara, leva meus sinais entoou Orun, um pajé preto mais velho que as árvores abraçadas no lamaçal. Ergueu a curuminha na mata, as mãos muito acima da cabeça, ela com os olhos opacos de os abrir pela primeira vez. Sem foco, era o escuro do folharal que ela via, toda dividida entre ancorar à Gaia ou voltar ao reino de Tupã. Onde era mesmo o reino de Tupã? Os amigos ainda lhe acenavam da névoa e sussurravam vai ficar tudo bem vai ficar tudo bem vai ficar tudo bem. Isi’po avistava, igual, o cheiro úmido das redes tropicais, os gritames das araras, primeiro pássaro amigo na terra, meses adiante. Os massau, agarrados às suas crias, tinham vontade de roubar aquele serzinho azul, cordão atado ao pescoço, os dedos dos pés que pareciam cauda de boto. 


Xaxim Verdadeiro, nome da genetriz, arfava encostada na grumixameira, para apaziguar as narinas. O parto custoso doera, como se lhe quebrassem a coluna. Algo dizia que seu corpo não andaria mais. Xaxim Verdadeiro pediu à Cabreúva Vermelha que lhe pusesse silêncio no peito. Tentou esticar a perna de apoio, mas não sentia nada. Jazia de cócoras, suspensa, o sangue a confundir-se sobre pele de jiboia abandonada.

 

Orun, ao baixar os braços, pôs a menina ventre contra palma. Seguiu a entoar seu canto secreto. Isi’po cabia bem ali na concha. Orun, dedos feito dois tamaquarés, foi tateando as vértebras da cria, da nuca ao sacro. Passou também pelas escápulas, como se espichasse asas. Escorreu a sensação pelos braços, dobrou os dedos daquelas mãos firmes. Refez o caminho para desatar o laço no pescoço, sem pressa. Ergueu o olhar para o abaçanado, distinguiu a estrela, não muito longe. Chamou os alentos de Ife. Gingou a caixa craniana, a face, a mandíbula, o esterno. Finalmente, a criança liberou os pulmões, berrou feito xexéu, afinou com japuíra e japim. Andiroba, pau reverente, cheiroso, fez coro de invocar.

 

Ao escutar a cria, Xaxim Verdadeiro quis mais que andar, quis sumir. Chamou o Tamõi misturado ao mato com um silvo quieto, simplório. Sim, já estava na hora de doar-se, os seios doíam. Orun ainda transmitiu à uyrazinha um mapa de viver perto do rio. Prendeu alfinetes nos trinta e três ossos que brandiriam Isi’po. Por fim, contornou a cabeça da ave gente com os halos de desertos distantes, salinas sem par. E entregou para Xaxim Verdadeiro a ariramba-de-cauda-ruiva, que o violáceo da pele já sumira. Agachado, Orun olhou o fundo dos olhos de Xaxim Verdadeiro. E nada disse. Ife estava presente. E era tudo.

 

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