Vértebra 2



Axis - T-Endy (Luz)

 

‘Ara amopira irob’ ou tempo amargo de precipício[1] tinha surrupiado Xaxim Verdadeiro enquanto as mulheres batiam o pilão. As crianças banhavam no Eiru, não viram. O branco extraviado, barbado e sujo, encheu a kunhã-muku-’im de cachaça,  fez dela o que quis e a largou, puída. Quando Orun Tamõi a achou, a sangrar sobre uma raiz de jacarandá, atinou que o caráter da moça estava formado. Havia desvairo, não ruína. Kanamari.

 

Desde a noite adventícia, de dores longínquas, Xaxim Verdadeiro teve sonhos com Tijuca, um índio de antes. Içada na puca, enxergava o viajor, sacola do lado, arco, flecha, ares de riachão. O brilho apagado dos olhos. Não qualquer brilho. Na primeira captura da imagem, poder-se-ia dizer fogo fátuo. Ficava essa referência, mistura de chama e lodo, caia bem. Todo mundo é meio isso.

 

Xaxim Verdadeiro, depois que as corrigendas de argila pararam, escutou no coração: Vamos ver se consigo plantar em terra estranha, pela qual nunca andei, pelo menos não nessa jornada. Algo instigante, gracioso. Diferente dos outros andores? A gente, que é dessa geração que esvaziou as histórias? Devolver algo a elas? Bem, não sei nada. E é com isso que vou lidar. Depois, volto pra lhe buscar.

 

A puca salvou Xaxim Verdadeiro. Suspensa no galho da juru de um jeito que nem o mais kauane poderia lançar argila que a alcançasse. Orun Tamõi pensou em tudo. As tramas de cipó cobriram-se de folhas, de frutos vermelhos. Dez luas a kaapora passou pendurada. O que poderia ser torturante para a maioria, para Xaxim Verdadeiro foi um ninho. Ali ela trançou cabelo, arrulhou, catou piolho, ninou sauá, falou a língua do mbaracá, dos Yacamim que a faziam rir naquele forte. Xaxim Verdadeiro inventou e enfeitou meia dúzia de cantos. Um para o nascer de Uraci, um que evocava Ara-cê yara, para as florinhas que abriam antes do sol a pino, um para a tarde, um para a hora de mormaço, um para o aparecimento de Iaci e outro para que o astro fosse logo atrás de seu ife. A puca balançava doce. Solitude é bom remédio. Naquele período de exilio ventou sem chuva, uma benção para quem sobrevive confinado.

 

A estadia na juru(a), a argila, tudo parecia uma grande monção. Xaxim Verdadeiro, mentalidade luarizada, que conhecia água de rio e pouco brinco de criança, foi plantada no mulateiro sem meandros. O corpo trazia ainda hematomas e inchaços, porém não doía. As pernas dobradas. A alma da kunhã achou que era um tempo de pupa, assim como olhara as lagartas lá atrás, quando sabia três palavras: kamby, lauré, maní. Agora, Xaxim Verdadeiro sabia cinco. Membira. Nhe. Sentia uma vontade de nheengatu, mas a jornada era assim. Contentava a boca de jurubeba.

 

Abaiara, na primeira lua minguante, soprou seu ar a Xaxim Verdadeiro. Cobriu-a com arado, deu-lhe abunã no moquém. A mãe sentiu lonjuras maiores, tocou Leo da Colina Loura e nada entendeu. Mbara soava cantigas baleares. 

 



[1] Expressão do poema Memorial Terra Pindorama, de Toninho Arapapá Barbosa, TO.

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