Vértebra 1
Atlas - Isokan (união)
Orun construiu um samu’ra. Xaxim Verdadeiro tinha o peso de uma jaracuçu. Isi’po mais ela eram até confortáveis de levar. Orun, entrado nos noventa anos a perder as contas, se movia como um urutau. A mata o recebia com assovios, sibilações e luzes multicolores. O pajé preto dirigiu sua visão ao sol e ao rio acima. Sentiu que era propício manter a guarda. Os abaçaí seringueiros passaram mais cedo, Xaxim Verdadeiro nas dores, o pau da tabajuba entre os dentes. Aquele nascimento, natural e solene, dava a Orun energia nova.
De todos os feitiços que aprendera, o de por vida nas pernas lhe escapava. O corpo do Tamõi era um ninho de formigas argentinas, fervilhando de contentamento, em especial no dorso e nas têmporas, onde um esforço enorme lhe fornecia imagens de aves gigantes a flanar nos morros gelados de algum lugar.
Rio abaixo era o tempo da aldeia. Pajelança tranquila, de pau-rosa e perfume. Metade da jornada tinha sido pescar, caçar macaco e criar um arsenal de medicamentos cujo valor passara a Curuatinga, o filho mais alto da nação, bom cantador. Até os homens não voltarem da caça. Até as mulheres partirem com as crianças, a procura de alimento.
Quando chegou naquela taba, já concisa, Orun veio nos braços da preta Ododo. Pendurado em seu seio, o menino teve alimento materno por mais alguns dias. A preta, retalhada nas costas, nas pernas, nos pulsos e tornozelos, era bicho só. Febril, sem falar palavra, olhava os amigos acolhedores com ternura, certa de que o menino poderia virar homem naquele terreiro. Mãe-da-Lua, a feiticeira que aprendeu de Amao, olhou por Ododo e pela criança. Lavou as feridas, purgou, abrandou a febre, as dores e, por fim, aprontou a passagem inevitável, teceu mortalha de caeté e um penacho vermelho. Ensinou o menino a comer aaru, mani e açaí, para sair forte do aleitamento. O evento não demorou seis dias. Foi em noite de temporal. A nação alquebrada sabia que estações de dor viriam. Palmito-juçara leva meus sinais. Foi o canto que Ododo ouviu em seu último respiro. Deixou com os amigos um menino preto retinto, cujo nome eles não sabiam. A tribo chamou ao curumim preto Amerê. Ele se deu bem com todos, cresceu forte e um dia, em que todas as araras resolveram gritar juntas, o menino fumaça disse um poema épico em idioma estranho sem gaguejar, dançou por quinze horas, saltos para cima e para baixo, um metro e meio ou mais cada um. Apontou para si ao concluir o ritual, repetiu a palavra Orun tanta vez, em todos os tons da clareira. Os amigos de terreiro, dados a presságios, entenderam que um curandeiro, estrangeiro a mando de Tupã, havia chegado. Mãe-da-Lua lhe passou o cajado.
Quando a memória abria para o olhar de Ododo, Orun corava. Um arrepio prazenteiro de gratidão subia entre as pestanas brancas, encaracolando mais ainda a carapinha rente ao couro. Nessas horas, caminhar era doce.
Na tarde do nascimento de Isi’po, no miolo da floresta, três almas seguiam sem pouso, rio acima, o coração unido pela seiva do mulateiro, segurança para as constrições. Orun Tamõi ficaria pai até encontrar guerreiro novo para a cria. Ia depender, muito, da hombridade para honrar curuminha meio branca meio índia. Para Xaxim Verdadeiro, a missão era desconhecida. Ia depender do movimento das pernas.
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