Hospital Casaredo - Epílogo
Vai alta no céu a lua da Primavera. Penso em ti e dentro de mim estou completo.“ O pastor amoroso”. Alberto Caeiro
A Musa triste de la resistence cantava. Ia longe o tempo da quarentena de Santos, Brasil. Agora, José Gaetano e uma nova tripulação, sem Mestre Maden nem a cozinheira Cesária, zarpara na rota Lisboa - Mar de Omã. Viagem difícil, vinte e sete e dias sem escrever uma linha sequer. Não houve tempo para teimosias ou manhas. A Sor revelava sinais de cansaço. Um rombo no casco inundara o porão. A carga eram especiarias, poderia ser danificada. Havia quatro construtores de barco a bordo. Lutaram bravamente, com a ajuda de José. Os materiais de que dispunham só permitiam remendos provisórios. Somente no Tejo teriam condições adequadas para consertos e estavam a muitas jardas de distância.
O porto mais próximo, Gênova, ficava a três dias de viagem. Em Veneza, antes do primeiro sinal da avaria, José deixou uma das cartas a Alois Donis, com o post scriptum bem, ficou a possibilidade de nos encontrarmos na primavera. Ver-te é como tomar ar nesses dias tão difíceis. A nau corre risco de ir a pique. Entendo que a vida nos convoca a mares diferentes. Estarei em Gênova dentro de vinte e cinco dias, se tudo correr bem. Toda força bruta empregada em serrar, martelar, içar, comprimir, suspender, todos os incômodos noturnos, causados pela aflição, deixavam José Gaetano estranhamente tranquilo. Eis um belo exame, um doutoramento, dizia. Sarcasmo era mecanismo de defesa do qual José lançava mão sem muita segurança. Dava-se mais ao ridículo que à arte da ironia. O humor ácido ficava bem em Dostoievski, ou Diógenes de Sínepe, o cínico. Eufemismos, proselitismos, retóricas, soavam piegas quando era José a escrever. Circo, parque de diversões, saltimbancos. Que ficassem, seus artistas, com o riso. Bardos cáusticos. Bardos líricos. Faltava-lhe a maturidade da letra, a voz narrativa. Paciência.
*
Havia tempo, ainda, para mais uma lembrança. A herdade do Conde de la Fambula contava com uma biblioteca, títulos dignos de Alexandria, resultado de saques piratas. O ambiente era frio, cheirava a parafina, sequoia e cachimbo. Salão povoado por fantasmas. Um deslumbramento para José Gaetano, jovem marujo, ávido por conhecer, com menos de trinta anos na ocasião. Foi naquele espaço, dez metros quadrados, janelas no alto de paredes de pedra, que José empregou seus melhores momentos, mergulhado nos livros. O Conde mais o admirava por este hábito. Sempre que o dia da partida se aproximava, o conde lhe dava um exemplar da sua coleção, que era devidamente embalado. Não havia como ser diferente. Se tinha vinte dias em terra, José lia o máximo possível. Se tinha vinte horas, lia, mesmo sem compreender. Os livros davam-lhe a ilusão de paternidade, eram autoridade e suporte. Livros pai, canções mãe. Assim José nutriu sua juventude. Assim José aprendeu a contar histórias. Sol, chuva, orvalho, o grito das feiras que escutava longe, o sossego de um convento, o odor de galinheiro, quando girava em meio a virgens, damas do cais, bufões, patifes, matutos ou intelectuais. Respirou os mortais, quiçá os imortais. Para os recordar em alto mar. Na presença de uma página onde havia um traidor, um bandido, delator, chauvinista, gente confusa, debilitada, esfaimada de poesia, ou equivocados, calhordas, anjos, José Gaetano chorava. Nessa época, o pirata estava em companhia de uma gata, das frajolas. Soely se chamava o bichano. Ela dormia sobre um monte de livros, junto ao antebraço de José, isso quando não se interpunha entre as páginas e o obrigava a sorrir. A manhã era vívida por isso. Ao sair da biblioteca, após uma noite insone, José acolheu a gata com a retina. Era como olhar uma viúva de fraque. Logo foi possível tocar-lhe o pelo, acarinhar as orelhas, o focinho mimoso. Entre o ato de dar atenção ao felino e erguer-se, sentiu o corpo gelado de uma mulher, confirmou suas formas nem feias nem bonitas, formas de físico são em mente aturdida, suspeitou. Deixou que essa fantasia ganhasse asas.
O comandante segurava o halo de um porta-velas na mão esquerda e Soely contra o peito. Mantinha sua relíquia entre os dedos. Deixou a gata descer e correr pela sala, cauda eriçada. José fez esforço para mover duas cadeiras que lhe impediam passar, queria urinar e era tudo. Estava lá a mulher, doze graus a temperatura ambiente, uns sete, caso tivesse sensações dérmicas coerentes. José medrou, seria bom acender a lareira. Estava, o seio direito da mulher, a olhar de lado. Não se tratava de fixação pela forma arredondada, mas curiosidade. Faltavam a José informações táteis sobre humanos em geral. Dois de seus tripulantes possuíam seios. Mamas em homens eram apêndices gordurosos e ele não tivera interesse algum em tocá-los. Nas mulheres, os seios eram montanhas nevadas, mesmo os flácidos, quando acomodados pelos braços, pelo corselete. Ficou-lhe um desejo quase cócegas, de tocar a pele da dama. Não o seio em si, os músculos das coxas, que ele tinha ao alcance da mão, a que eventualmente segurava o porta-velas. A frente da coxa esquerda, cordilheira compacta, que denotava caminhadas, sol. O lado, pelo rasgo entre o tensor da fáscia lata e o trato ilotibial, não lembrava onde lera esses nomes. Abaixo, posto que José cruzara o caminho da mesa, a mulher ajudara o espectador a ver os músculos glúteos, o contorno avermelhado do sentar-se, o escuro amarronzado do que está entre. Quiçá fora, o desejo às cócegas, porque a musa estava disposta, maja desnuda, Kiki du Montparnase, musa de Ingrès. Pobre mulher com frio. Mulher fria. Volátil. O nome do quadro, José pensava nele. Se mulher ele fosse, faltar-lhe-ia a coragem para posar, nu. A maçã na boca, o marujo não se certificou de que se tratasse de maçã, levava a meditar sobre uma leitoa pequena, ou de porte médio, a pele morena. A imagem provocava fome, desejo de degustar gordura a pururuca. O caso em tela era outro. Não o outro dos marujos em geral, que rasgavam vestes, peles, defloravam, tomavam à força. Quis descrever A musa triste de la resistence e não pode. O que tinha na ponta dos dedos da mão esquerda, além do porta-velas, era o fluxo do extensor radial longo ao carpo, ao extensor longo do polegar. José temia esmagar, dramalhão que era. Reclamaram dele uma vez, que roçava ao invés de pegar. O que o homem apavorado poderia dizer em sua defesa? O extensor longo do polegar estava envolvido na trama, José prontamente deitaria tensão ao arco. Não que a mulher tivesse o fito artístico de materializar obras. Posava por decisão própria, para ninguém ou por tédio ou porque era fácil ficar nua. Isso o comandante soube depois. A musa triste de la da resistence tinha as penugens da coxa arrepiadas. Sobre cessar e desistir do amor, o jovem do Mar de Andamão escreveu muito tempo depois. Antes, precisou estar à beira de um ataúde pequeno, a descansar na poça de chuva.
O esforço metafórico levou o mareado jovem a um surto. José viu, por um instante, sobre a mesa, a Antária nua naquela criatura gelada e agora infausta. O comandante sentiu nojo. Se tocasse a forma, perderia o tino. Abriu-se a caixa um dia. Disseram que foi Pandora. José, em meio ao vespeiro. Mar de Halmahera. Depois, encarar Rosália e a notícia da concepção. Hora de ler o mapa dos céus. O marujo voltou a si, marejado de suor. A Soely esperava sobre uma prateleira desarrumada. Mirou seu senhor, indiferente. Quisera ter fugido pela basculante, mas o salto se daria no breu, não arriscou. José disparou para a porta, a urina a lhe arrepiar a nuca. Dias mais tarde, o marujo foi capaz de escrever há quanto tempo dormes, Sr. Verso? Quanto há que cedeu, arcou, sussurrou, esmaeceu. Mofou no armário? Quanto susto, suspense, reticências, marés vazadas, borboletas, cusparadas. Coisas ditas ao vento? Há quanto tempo, Sr. Verso? O deserto é logo ali. Na varanda mal cuidada, na página virada, no descarte, no desmanche. Acostumei-me. E te atrelei, Sr. Verso, a tamanho vexame. Perdão.
Ainda faltavam alguns dias para Gênova e a Sor aguentava bem. Depois de desatar os nós com a escrita, José com seus sessenta anos foi ao convés comer sardinha e tomar cachaça. Olhou as mamas de dois marujos e sorriu. Estava a ver navios. Ao retornar à cabine, já noitinha estacou, aterrado. Ninguém entrava ali sem permissão. Mesmo a Cesária ou o Maden. A criatura não só entrara como dedilhava o santur, com certa aspereza. Maior o embasbacamento, punha voz e melodia no verso do Sr. Verso. Tinha um dos seios desnudo.
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Madame ficou muito tempo absorta, diante de uma gravura no dormitório das mães. Uma mulher, a tocar o próprio seio. Não havia pacientes ali, no momento. Duas das moradoras temporárias tomavam sol com seus bebês no jardim. Era um lugar de silêncio e com uma vibração sutil, diferente da enfermaria, como se ali fosse o leste. O sol entrava no ambiente limpo, a oferecer proteção. Aquele cômodo lhe chamou, por alguma razão indecifrável, parecia medo. O objetivo de estar naquele lugar era chegar ao leito de Antária, a quem visitava várias vezes ao dia. Não entendia o mutismo da senhorinha, mais nova do que ela, tão familiar que lhe doíam as células. Ouviu o murmurar da enfermeira Josefine, na incubadeira. A mãe chorona conseguira. A menina nascera com seis meses de gestação. Mirradinha, porém com boas chances de concluir a engorda. Marieta já pedira a guarda do bebê. Dera-lhe o nome de Isabel. O que a mãe biológica repudiou, a moça acolheu com tanta ternura, que deixava Madame atônita. Sempre presente aos eventos, pela abertura de seu ventre de livre pensar, ouviu os combinados entre a mãe afetiva e o senhor Giulionni. Achou bonito. A gravura, que lhe convidou a meditar mostrava também, a um canto e lado a lado, as estruturas da laringe e do útero. Uma semelhança curiosa entre os dois órgãos. Dentre as tantas vozes que lhe sussurravam por dentro, Madame mantinha diálogo afobado com seus órgãos, temendo-os mais que os amando. Seu útero era um porão cheio de teias, que às vezes doía. O doutor Luiz já olhara aquele trecho e avisou que as coisas funcionavam de acordo com a idade. A doutora Cusa receitou banhos de acento e essências de flor. Madame não se lembrava de ter lamentado ou murmurado a respeito de feminilidades ou funções sociais que eventualmente não exerceu durante a jornada. A maternidade era algo além de sua compreensão. A imagem despertou milhares de canções, de um só alento. Madame fizera, no mínimo, mil bebês de palavras, bebês vento, sopro, em especial entre Faro e a Cidade do Porto. Efêmeros, tímidos uns, agressivos outros, palhaços, humildes, travessos, dramáticos. Líricos. A senhora não era boa de improvisos com texto, precisava escrever antes. Assim, ganhou algumas moedas enquanto andarilhava. Cantou quadras e glosas que compôs ou sabia de cor, vendia papelitos que iriam agradar a alguma dama ou cavalheiro, junto de uma caixa de presente. Aceitava encomendas, motes. A prática lhe permitiu alimento e até coberta. As imagens apareciam em sua memória fosca, misturadas, aleatórias, temas de contos, quadras. Entre elas veio uma, estranha, parecia ser história de outra pessoa e não dela. Antária e o marujo, nua ela, deitada sobre a mesa, no minarete da Roseira. José a sorver o seio da moça com sofreguidão.
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A cachorrinha Florbel chegou ao Hospital Casaredo no dia em que Madame viveu a história de Antária, diante daquela pintura do seio feminino. Vira-latas com acentos de bassê, Florbel logo tomou de amores metade dos habitantes daquele espaço de saúde. Quando ela passou pela cancela de Jeff, o rapaz torceu o nariz e murmurou mais um. Jeff se tornaria o padrinho daquele ser afetuoso e prestativo. A relação entre ambos evoluiu da repulsa inicial ao casamento por amor. Florbel latiu muito no portão, antes de entrar. Jeff foi como que resgatado, e não só ele, todos os fantasmas do entorno. No fundo da alma do porteiro, uma solidão perniciosa acabrunhava. Ao contrário de outros personagens da casa, Jeff não tinha ferramentas para comunicar-se consigo. Era um rádio sem dial. Em sua aparição, Florbel sentou-se à cancela. Parecia-se com um lobo. Estava suja, tinha carrapatos, fedia. Parecia ter dado à luz sua última ninhada. Cansada, faminta, voltou seu focinho para o mar e seguiu latindo. Madame transpusera a cancela em direção à areia há vinte minutos. Não era possível vê-la no momento. Jeff não se preocupou com o fato, posto que Alev, o homem invisível, sempre surgia logo depois da passagem dela, acenava com as sobrancelhas e dali a pouco trazia a velhinha de volta. Desta vez, o porteiro se distraiu e não se lembrava se o enfermeiro viera ou não. Florbel o fez esquecer de vez o assunto. Algo, como uma coceira, irritou-lhe o pescoço. O rapaz praguejou, pensando tratar-se de pulgas. Como o mal estar não parasse, viu-se obrigado a tirar a camiseta, sacudir-se. Nesse ínterim, Florbel colocou-se em posição de sentido, apontando direto para as ondas. Como não obteve atenção, com três latidos saiu na carreira. Entrou bravamente nas ondas e abocanhou a camisola com os dentes, puxando Madame de volta à areia. Foi o tempo de Jeff se dar conta do perigo. Seu coração quase saltou-lhe boca afora. Gostava do seu trabalho e da Madame. Uma falha como aquela podia lhe custar o emprego. O que seria dele? Mais uma vez soou o alarme geral, que pôs os dormitórios femininos em polvorosa, o mais grave surto de todos os tempos de Casaredo. Quem veio acudir foi Manoel, o que estava mais à mão. O enfermeiro era forte o suficiente para suspender Mamã. Não procedeu qualquer socorro. Apenas voou com a senhora para a enfermaria. Para Jeff, restou olhar a cachorrinha, estendida ao sol, quase morta. Felizmente, o veterinário Artur estava na casa, pode atender o bichinho. A cadeira de rodas de Madame apareceria, horas depois, sem danos, três quilômetros a leste. Um passante, morador da região, suspeitou tratar-se de material do hospital. Não viu a marca do Casaredo, mas foi para lá que se dirigiu, para entregar o artefato. Florbel, passado o susto, tomados todos os cuidados voltou ao portão, limpa, branca, a olhar com ternura para Jeff.
Madame desafiou a resistence do Casaredo. Morre, não morre, entra em surto, em coma, sai, volta, digladia, fica inerte, respira, perde o fluxo, se debate, quer morder, jogar-se, entra em curto, torna-se apática, reseta, reinicia. Tudo em silêncio, como se a laringe estivesse obstruída. Perdeu muito sangue pelo canal vaginal. A ressonância nada revelou, os órgãos seguiam seu curso, de acordo com o estado de saúde orgânica, que era bom.
Dias depois ela descreveria, no caderno de espiral roxo, um sonho com vestido vermelho terroso, quente demais para uma tarde abafada, fechado por minúsculos e muitos botões até o alto do pescoço. Mangas longas, saia plissada a cobrir o calçado. Um cinto do mesmo tecido. O cabelo alourado suspenso por dois hachi. Face exageradamente empoada. Figura harmoniosa, forte. O que magnetizava a todos eram os olhos, azul celeste. Florbel. A mulher dedilhava o santur com secura. Recortou José Gaetano de cima abaixo e suspirou satisfeita. O senhor me perdoe a ousadia, mas o calor é grande no convés e o olhar dos marujos me deixa desconsertada. Vim ocultar-me, vim mesmo pedir a proteção do comandante. Como a senhora se chama balbuciou ele. Florbel, para vos servir. Tenho intenção de chegar a Lisboa, vou integrar a companhia de Teatro Gil Vicente, que parte para o Brasil em agosto, com Offenbach e Cavali no repertório. E começou logo a tocar a Barcarolle. José, encantado, adaptou sua voz ao dueto, conhecia o tema. E assim passaram o resto da tarde, a cantar árias, a recitar, trocar impressões sobre o mar, saudade, as estrelas, o fluido cósmico. Ela, uma Elina Garanca dos mares, ele anfitrião dos melhores quando se via às voltas com cantante jovem, que impunha sabres ao invés de harmônicos. A dama certamente não lembrava mãe, nem ser angélico ou maja desnuda. Mais, um lobo negro. Era daquelas mulheres aprendizes e educadoras, da cena teatral. Parecia um encontro de mentira, o mais verdadeiro dos encontros. Florbel também dançava e, para deleite de José, desceu-lhe os véus.
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A maneira mais vívida de a descrever é lembrar que tudo é parte. Talvez ela acorde de um sono repleto de lembranças, memórias que ainda teimam em pulsar no porão. Madame se via ainda bonita. Diante da porta do quarto que ficava no mirante, algo se quebrou, como um grande espelho. Era seu coração a explodir, ou sua mente, não sabia. Talvez sua alma tenha corrido em disparada até Faro, sem olhar para trás. A rua e as gentes parecem apenas tolerar sua existência, ao invés de contemplá-la e a reconhecer. As pessoas passam por ela, sempre mais preocupadas com o destino do que com o que deixam. O susto a leva a se adaptar. O ritmo acelerado. Madame ainda mantém certo jeito leve, de certo modo, normal. Algumas pessoas talvez se lembrem de outras estações, férteis, frondosos desejos. Outras, talvez, a levem para um tempo anterior, para o outro mundo de onde veio. Ao mesmo tempo, àquelas que emanam anseios mesquinhos e sonhos futilmente desvairados, Madame divisa, ao longe, paz. Sabe muito bem como evitar a perda. À noite, ela sabe como se virar, sem perder o tino. Conhece o momento em que seu brilho é aceito e sabe como o aproveitar, mas também sabe a medida limite daqueles ao seu redor. Não se abala com os discursos anacrônicos e muito menos com a sociedade, que julga porque teme a mesma sina. Na rua, Madame passa pelas gentes, que se enfileiram como porções de realidade. O espetáculo nem sempre é prazeroso. Não é ali que a dona pretende parar. O caminho continua, ainda sem necessidade, sem definir orientação [1].
Madame releu o parágrafo muitas vezes. Recordou o momento da grande decepção. Acolhida agora por belas pessoas, no hospital colônia, concluiu que anda agravando seu estar senil, ao dar de comer a um sentimento morto. Por sorte, falhou seu intento de servir de pasto às ondas, ação bem pouco criativa. A jornada pede resistence. Soube que sangrara muito na enfermaria, um jeito que o útero arranjou para cantar. Já não deseja, tanto, uma companhia. Tem mais de uma centena. Uma angra magnífica, um país amorável. Uma casa, sua casa. Seu mausoléu. Tornou a sentir saudades, de José, Alois, Antária, Deolinda. E o menino, será que vive? Cristino era o som do santur.
Alguns meses transcorreram da tentativa de suicídio, entre gatos, cães, enfermeiros, marujos, bebês, artefatos, pássaros e fantasmas. Madame até tentou, mas bordar não era para suas mãos. O cheiro de limpeza e formol foi recortado pela lavanda das latadas. A enfermeira Matilde, febril nos jardins, cabelos chanel, o jardineiro Jair, o limpa-vidros Ozório e outros homens com ela, a revirar a areia, adubar, colher, semear. Os primeiros fios brancos davam ao vermelho da cabeleira da filha bruta uma poesia nova, natural. Catarina de Ucrânia passava por ela, nobre, grande, um pouco arcada, a bacia de legumes, e sorria. Os belos cabelos de milho voltaram a crescer, à volta das orelhas. Melhor assim.
O enfermeiro Manoel diminuíra seus gestos, belo senhor se tornara, ainda mais amoroso. Havia um carrinho novo na casa, como os de golf, no qual ele transportava os pacientes pela praia. Quando se tratava de Madame, era só com ela que ia. A senhora encolhera ainda mais. Ia sempre bem agasalhada, protegida pela casaca púrpura. Ás vezes, o gato Tetetéte aceitava ir junto. O dia estava frio, o sol brilhava suas dez horas com generosidade. Madame podia voltar-se, com vagar, e olhar o perfil do grande amigo daquela etapa, algo muito perto de um companheiro ele era, a ponto de deitar-se com ela quando necessário, aquecer seu corpo de mulher com algo muito diferente de um intercurso. Todos os demais eram impessoais nas intimidades. Manoel não. Tempos belos, de magnética completude. Um presente.
Por um instante, Madame voltou-se para o mar. Demorou o olhar, embaçado pelo brilho das espumas. E então ela se lembrou. Estava sentada na murada, diante do Tejo, depois de um banho. Conseguira mergulhar em um trecho do rio, lavar-se, um pouco também o seu camisolão. Depois, estendeu-se no sol forte de verão lisboeta, para secar. O cabelo amarelo encaracolou-se. A moça, já não tão moça, com um pedaço de tecido rude uniu a cabeleira atrás das costas. Cheirava a sabão grosseiro, melhor que suor e lixo. Na murada, mexeu sua sacola e retirou de lá um pedaço de pão. Depois de comer, vasculhou um pouco mais e encontrou um paninho branco, já começado, um lenço namorado. A mulher tinha dois ou três pedacinhos de meada. Talvez fosse o último lenço a bordar. Envidraçado, ele pulsaria o frescor brilhante de alguma vitrine. Já passara o tempo das cerejas, vendidas em cone de papel. Por alguma razão, sentiu-lhes o perfume. Um homem se aproximou, respeitoso. Transpirava maresia. Sentou-se perto o suficiente para poder conversar. Ficaram quietos por um tempo, ela a pespontar, ele a mexer um botão de sua veste, que perigava desprender. Mais um pouco e o graduado tirou a casaca púrpura, pôs entre os dois. No bordado da mulher a frase
Na curva de uma alça bem talhada, antevi teu abraço, que aconteceu pouca vez.
Impreciso momento, talvez fantasia. Na voz do homem, bálsamo grave. O dia encantado do Tejo valsava. O dourado das decorações de Natal convidava ao luxo. Pobreza e viagem ombreavam, clamavam o real desfecho. Onde dariam, aqueles dois inexistentes? Via-se nada além do sorriso de cada um. Os primeiros passantes olhavam o rio e seguiam. O que aconteceu, os sinos tocaram, lira de sol escaldante. Quando terminou o encontro entre Madame e o senhor da casaca púrpura, o botão estava seguro, o lenço bordado no bolso da veste. Dois seres, dois rios. Livres. Donos das próprias vidas. Era tempo dos secretos sinais. O cometa Fujikawa atravessaria o céu, sua cauda esmerilhada. Intuição, tremor, algo de dor. Tão longe, tão longe, um canto escondido da palavra, sem nada, sem pressa, sem pausa. Diz a última coisa que lhe passa. E vai, o lenço dobrado no bolso púrpura. É o amor, uma flor, um abismo, condição das horas de espera. Escapou, e a mão pousou trêmula naquele ombro amigo. Encanto. Impossível conter o roldão de estrelas raiadas na manhã, dentro, densa, uma confusão. As vozes, na noite que viria, vibrariam roucas, como se ilícito fosse se enlaçarem de uma vez. Não o fizeram pelo corpo. A murada calou. Só nos seus corações sabiam, cada um, versão empática da alegria do outro. Na renúncia, começos. Esperar não é virtude. É virtude. Ouve, noite, a finíssima ovação do cometa.
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Quando se faz amor assim, de paixão total, fica-se longe das palavras. O encantamento é uma casa que tem o silêncio por tecto. Mia Couto
Na sexta-feira, início do verão, o Hospital Casaredo escutou pela primeira vez a voz do locutor da rádio. Era o senhor Giulionni, que realizava o sonho de uma jornada, noticiar, divulgar músicas, histórias, o enfermeiro Gaspare como redator e diretor geral. A última página escrita por Madame foi lida na abertura da programação. Eram cinco horas, madrugada fria. O fundo musical trazia a Grândola[2], em versão instrumental, tocada ao vivo no ar, pelos músicos do Casaredo, o sanfoneiro Gilmar com eles.
E os tempos dos personagens se estenderam, até serem fotos tiradas por robôs espetaculares, estrelas que não se vai alcançar, não pelas vias conhecidas. O doutor Itaú jogou capoeira com o senhor Isidoro. Há três dias, disse o último adeus a sua mãe, Clementina. Foi dorido ver. Madame, que andava de amores com enxame cada vez maior de vagalumes, de vários tamanhos e cores, soube que não haveria muito mais o que contar. Um pequeno movimento cotidiano movia aluvião de palavras. Quase duzentos mil registros, depois de muito peneirar. Pouco, para o tanto de experiências não vividas. A velha senhora escutou Maria a cantar acalantos no chuveiro, sozinha com as coisas dela. Abre a tua silenciosa voz. Não cantaremos, nunca mais, o fado antigo.
Estrela branca, ensina-nos a canção do silêncio
Eu, Mar de Andamão ou Vigo, José Gaetano para os que comigo navegaram, sigo viagem. Entrego a Sor a Caiscais, que lhe vai cobrir de alcatrão, para que suporte as visitações dos turistas. Ao menos, a embarcação estará entre amados. Talvez ela sinta saudades do Mar de Arafura.
A vanglória das cavas deu-me um lugar de porão. Estou bem. Quando eu canto, estou bem. Minha voz já não é audível. Meus diários de bordo, há tempos que se perderam. Estou paz. Tantas vezes a assinatura, paz. Cruz de Tau. Os tantos de mim acenam do cais. Pedaços do meu coração vão com eles. Água essencial, clara e mutante. Ainda não decidi o que fazer de meu corpo. Mais certo é que vire pó, como os outros. Alev, o homem invisível, o colocará no forno. A senhora Chang dobrará os grous. Camisolão está bom como vestimenta. Depois, negociamos no Mar de Mindanau. O enfermeiro Javier prometeu dançar, ele que anda abatido, depois que o filho sentou praça. O grupo musical Casaredo deverá improvisar um réquiem, quiçá usará palavras que já proferi, que isto não soe afetado. Minhas costas agradecem o xale verde oliva de Esmeralda. Um encanto vê-la ninar a Pérola, que já se arrasta, para abraçar a Isabel com aquele pescoço muito entortado para trás. O sanfoneiro Gilmar está longe e perto, sobe paredes de novos castelos.
Sentirei falta de Tetetéte e seu ronronar macio. O som das crianças, o cheiro das lavandas. A porta do ateliê. O carro de Manoel. A vontade de puxar o cabelo da filha bruta. A cozinha de Catarina. A sétima posição dos exercícios de Wong Lam. O clic das tacinhas de Loto. Um noturno de Chopin. As luzes azuis de William. Marscha empresta ouvidos para que eu escute o fado. Eu já nem sei que pensar. Há muito quefazer. Há que acordar Antária, coitada.
Esperança dá com a mão, vem, vem, vem. Firmino latiu três vezes. Ainda estou na Terra. Planeta arrebatador. Tão pequenino. Os mil braços da indulgência se estendem, convidam. Ainda estou na Terra. Ainda penso nos amores que vivi, que vivo. Verde luz. Alois Donis. Compus canções para os fadistas. Se, um dia, eles puderem ler estas páginas, saberão que amei suas vozes. Para o amor, sopram ventos favoráveis. Alois, todas as canções. Fui tocar a casaca, por esses dias. Lá estava, no bolso sobre o peito, dobrado com apreço, o lenço namorado.
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À tarde, o mesmo dia, volto ao caramanchão e te espero. A praia do Homem do Leme e suas cristas amenas, irmãs da minha gratidão. Teu ombro amigo. Redondela, lá no alto, suas ruas íntimas, tela Conde Corbal, o mar. Um surto, uma ilusão, tua mão. A vida é mesmo canção de amigo, llena, llanto. Alois.
Levanta cedo o arraial em Cidade do Porto. Sobe o pau-de-sebo, cresce a fogueira caprichosa. Os graçolos recortam as bandeirolas e preparam a búrica, o olho de vidro dos nossos avós. Lá vem a Mariinha com o grude de farinha. Dona Natalia soca o pilão, os bolos assam, as batatas secam ao sol. O carrossel do Nhozinho brilha, a pianola toca a velha valsa, faltam dois olhos ao cavalinho que apelidaram Mafalda. A gangue passa com seus baios de pedigri e ri alto sua gurizisse. Quem são estes? Personagens para outros contos, vai saber. Alois.
Esperança prova o vestido sinhazinha e trança, faceira, o cabelo preto com margaridinhas amarelas, bem-me-quer, mal-me-quer. O senhor da Nossa Senhora vem com os fogos, pela primeira vez. O provençal, de braço com ele. O balão este ano fica no chão, iluminando o terreiro junto à fogueira. Cinco Marias ensaiam balainha e o sanfoneiro inventa canção. Na janela, José Gaetano sonha e já não é primeira vez. Queria que a vida lhe levasse de arrastão. A casaca púrpura embala, hasteada no mastaréu. É São Sebastião.
Alois não virá, tampouco eu. Bambalalão. Ah, coração. O tempo correu, mais que lebre. Negócio mesmo é guindar o mastro, lá com o olhar no breu do mar e fazer verso. Verso de ler no Brasil, sendo eu português.
Na sequência da programação radiofônica, o senhor Giulionni apresentou a vinheta do programete Canções de Saudade. Como primeiro fado, Lembra-te sempre de mim, na voz de Camané.
Eu abri os olhos mais uma vez
E te ouvi cantando lá na outra beira
Com um ramo de orquídeas para ofertar
A manhã raiava, sorria serena
Toda aberta ao sonho e à lucidez
Acenei com o remo modinhando o tempo
Que passo contigo a amar o mar
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