Hospital Casaredo 83




A barca


 

Eram dias de incerteza, morre não morre. Madame deu-se conta de si no salão de atividades. Agarrada ao caderno, piscava sem parar. Parecia querer certificar-se de onde, por que, para onde. Aos poucos, reconheceu os personagens do Hospital Casaredo. Todos bebericavam, conversavam, comiam canapés. Uma vitrola tocava Lembra-te sempre de mim. A velhinha segurou o pulso do enfermeiro Gaspare, que se postara a seu lado. Desconcertada, pediu transferência para o vaso do lavabo. Gaspare, amoroso como sempre, a levou ao colo. Ao voltar à recepção, Madame compreendeu que a senhora Chang organizara o bem-vindo à equipe, para celebrar a volta do enfermeiro Manoel, salvo de um acidente vascular cerebral. 

 

O ambiente remetia a noites de natal, com direito a mimos, enfeites pelo teto, carne de ave assada, licor e discurso. A cada um foi dada uma caixinha de música com trechos das Variações Goldberg. A senhora Chang desejava que o jogo, de unir as partes da primeira variação completa, abrandasse as dores, o pavor, harmonizasse os centros de energia de cada organismo vivente, sob as beiras do hospital colônia que ela administrava. Dirigiu ao grupo breves palavras. Em qualquer canto do mundo, disse, as narrativas mencionam uma centelha divina em cada ser. Todos os povos contam, da existência, há algo maior, potente, protetor. Não alimentem o pânico, perseverem em sua sanidade. Aqui, estamos sob a tutela das cinco forças – a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear, a forte, a fraca. Cabe, a cada um, optar por equilíbrio, por produzir luz e suas gradações. Já pensaram nisso, cada um responsável pela produção e manutenção da própria luz? As melodias das cada caixinha são símbolo destes movimentos. Curem-se. Contem comigo, com meu marido, meu filho. A festa, para Manoel, chegaria em forma de música, a da sua caixinha. Ele ainda dormia no Ambulatório. Não demorou muito, Madame pediu para visita-lo. 


O menino Júlio, cada dia mais moço, baixou os olhos por um momento, enquanto olhava Madame se afastar. Sentiu saudades de Amparo, sua mãe. Foi somente por um segundo. Ao erguer a fronte, deu com os olhos do pai, que lhe sorria. Esmeralda, a irmã que ele admirava de longe, em seu vestido vermelho e verde, uma flor no cabelo ainda ralo, brincava com uma boneca de trapos que Madame lhe fizera. Estava sentada nos joelhos de Javier. Júlio entendeu de pronto. Os papéis, no mundo, eram baralhados, ali estava a família que lhe coube, e que imensa e colorida família. Passou em revista a sala toda, que ribombava em riso fraterno. Sossegou de imediato quando Alev, o homem invisível, retiniu uma taça. O enfermeiro entoou um canto onde pedia que, mesmo que ele esquecesse, que tivessem compaixão, e não se esquecessem dele. No silêncio reverente que se seguiu, sem ser percebido, Júlio apanhou uma cesta de pequenos pães de alecrim ainda quentes e se dirigiu aos dormitórios, onde ofereceu o alimento a cada morador que estava acordado e podia comer sozinho. Para alguns, esfarelou e deu bocadinhos direto na boca. Quando Júlio chegou em Madame, que já se recolhera ao leito, ela deixou o caderno de lado, afagou os cabelos do menino e segurou seu pulso por alguns instantes. Depois, aceitou o naco de pão perfumado. Com dificuldade em conciliar o sono, a senhora voltou a escrever. Pela primeira vez, entendeu que comunicar os sentimentos era difícil, como chuva que resiste em cair. 

 

O dia do comandante José Gaetano sentar-se e trabalhar na história do japonês que o atacou à traição foi mais um daqueles, atabalhoado. Parecia acontecimento casual a tentativa de homicídio, que nem merecia narrativa. O rapsodo passou um telegrama, surpresa, pelas costas, sem chance de defesa, alguém de quem gostara instantaneamente, incondicionalmente,  talhou o afeto de fio a pavio. Fim. 

 

Antes da calmaria, o bucaneiro iria pedir contas aos cacos de espelho por conta dessa bravata. O fato é que José trazia um seu calcanhar de Aquiles, uma fragilidade que previa ações como a que sofreu. Todos já sabem que o comandante quer o que não pode ter e - não deixou de ser por esta razão -, foi instrumento de covardia. Por sorte distinguiu-se, seu suposto espírito colaborativo, por olhar os olhos das pessoas e saber que elas tinham fome, como ele. Desde aquela rusga com a mãe, do vaticínio da solidão, lia retinas e seguia em frente. Cotidiano metódico, José Gaetano, em certas ocasiões, via arruinar-se-lhe a solitude, a soledade. Fazia más escolhas e acabava talhado. Poderia comparar-se ao que caiu do cavalo. Eis.  Alguns zarolhos, outros, com olhos de picardia. O dia de conhecer Ezo, o rapaz aspirante a xogum, coincidiu com sua passagem por um bairro de entretenimento na cidade de Tóquio. José nunca viajara aqueles mares, navegou pela costa, pela ilha de Hokkaido, como que encantado. Quis conhecer as gueixas, ouvi-las tocar. 

 

A casa noturna servia uma bebida fermentada ao arroz, em um potinho quadrado, que muito agradou ao comandante. O homem passou da conta na consumação. Fez-se patético, expôs-se em demasia. Chamou-lhe a atenção uma jovem pequenina, de bela voz, que executava um instrumento apadrinhado ao santur. O nível alcoólico estimulou a bravata e José tomou a moça nos braços, beijando seu pescoço no meio da sala. Vários homens interviram na confusão. Um deles foi Ezo. Antipatia gratuita do rapaz para com José. A moça, funcionária da casa, mestiça, filha de japonês e portuguesa. Haruka conseguiu evitar a violência e conduziu José a um compartimento invisível, criado para situações como aquela. Deixou-o no reservado a dormir e voltou ao trabalho. Já eram cinco horas da manhã quando Haruka retornou. José estava sentado e dedilhava um koto. Murmurava quantas sabedes amar, amigo[1]. Ainda um pouco tonto, olhou para o rosto da moça. A luz da lua incidia diretamente sobre olhos ternos, amendoados, azuis. Você não é chinesa ele disse, e sorriu. A dama mirou aquele homem grande, de modos intensos. Entendeu o que o galego disse, fez beicinho. E começou ali, naquele pequeno calabouço, uma história de tirinhas de jornal. Estranhamento e ternura, os ingredientes. Um pouco de música. Ficaram juntos por um mês, até o tempo da Sor zarpar. José chegava pelas dezenove horas, discreto, e ia ao quarto camuflado, para desfrutar de conforto e acolhimento. Tudo elegante e respeitoso. O comandante não suspeitou a espreita. Ezo acompanhava o idílio, de longe. Quis vingar a mulher, ou algo assim. Foi até o cais no dia das entrevistas para grumete. A velhacaria, nos apertos de mão, o fez tripulante da nau de José Gaetano.

 

Como esquecer o ataque desleal é que são elas. José lembrava-se vagamente do perfil de Haruka. Uma quase menina. Nada fizera para desrespeita-la, ou às leis japonesas, portuguesas, galegas. Assim como não levou Rosa consigo, Haruka menos ainda caberia em rotas de mercancia. A moça, que já aceitara sua condição de gueixa, sabia desde o início que o amor, às vezes, precisa esperar. Outro marinheiro logo seria acoitado em seu quarto invisível. E outro. E outro. José, naquele dia de documentar fatos peculiares, como em uma noite de pão de alecrim, deixou uns poucos versos para Haruka, outros para Ezo, intitulados um amor em meias de seda verde. 

 

O jovem tomou a seda 

com a ponta do punhal

talhou o tecido 

do tornozelo à virilha

 

um ser vilanesco

desceu a mão à coxa

assolou-a a tabefes

depois, nada mais fez

 

 

As visitações a Manoel, na enfermaria, eram silenciosas. Todos faziam dormir naquele lugar. Na manhã seguinte à distribuição das caixinhas de música, antes de ficar ao lado de Manoel e pousar a mão sobre o braço que não continha agulhas, a senhora deu com duas camas onde habitavam seres que ela, de alguma maneira, conhecera em outras jornadas. Bulia em suas memórias para os localizar e logo tudo virava neblina. Aproximou-se do primeiro e sentiu o cheiro da morte. Antária parecia de pedra. Madame tocou o pulso da mulher e, num turbilhão, viu muitas coisas. Um cercado de ovelhas, uma égua a dar a luz, um jardim de lavandas, cinco oliveiras, um homem com um koppel, uma mulher a dizer blasfêmias diante de um varal onde saias flutuavam com a voragem, outra, mais amuada, a salgar o peixe no jirau. Assim como veio, o cenário deslocou-se para a direita e sumiu. Madame girou a cadeira para dar com o outro ser. Sentiu cheiro de veludo empoeirado. Ao tocar aquele pulso viu um porto, duas barcas, uma do inferno, outra da glória. A primeira, amontoada de trapaceiros, sedutores, avaros, calculistas, bandoleiros de toda espécie. A outra, de nobreza, ternura, gentileza, levava o parvo Joane e quatro cavaleiros[2]. Madame viu o senhor que estorcegava no leito injuriar um daimon enorme. Ali, estirado e entubado, o parvo esperava.

 

 

 



[1] Canção, Martin Codax

[2] Referência ao Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.

 

Comentários

Postagens mais visitadas