Hospital Casaredo 82



Piodão, Portugal



Doce de marmelo e acolhida




cobre-se com o manto a ceifeira 
ao pé da Serra do Açor, a cantar

ó, alecrim aos feixes 

meu amor

não deixes de gostar de mim

de mãos calejadas

de choro sem chorar

cai o hinário, rendido ao capim

estranha cantiga, criança carícia

tão breve poder

é certo que esperavas desfecho exemplar

tens púrpura com que olorar

canta ceifeira, canta, que é preciso acordar 

 

 

A dama preta, de forno e fogão, fez surpresa ao inconsciente de José Gaetano. Foi assim que Madame contou. Não visitavam, ao corsário, as mulheres caramelo, por razões inconcebíveis. A dona veio de longe, a equilibrar sobre a cabeça um tacho ainda fumegante de doce de marmelo. As ancas largas balouçavam bem devagar e a mulher cantava o véu das ondas vem beijar a beira-mar, aranda areia reia reia reia ra. Os mexilhões cirandam livres ao luar, aranda areia reia reia re rundá. Vem de Luanda essa ciranda de gongá, aranda areia riru reia ria ra. Um cheiro doce de colônia de Yemanja, aranda ra ie runde rere reá. Cantava a ciranda das horas a linha dengosa de Iara Sá Mãe e o boto vermelho mirando no espelho beijava o anel de cunhã. Na mata cintila uma luz Curipira sem hora, Anhangá e Tupã. Vem já madrugada uma onça pintada a cuidar do gongê de Nanã. Nanã Burucu, urutu capinã essa aurora que custa a chegar. S’imbora neném e vira a ciranda que o tempo só passa a rodar. Nanã Burucu, tigela de angu fumegando na mesa de Obá. S’imbora meu bem e revira a ciranda que a vida só dá se ganhar. A mulata ainda embolava a cantiga improvisada com auto de sua religião Onyi saurê, sarú ajé. Onyi saurê, obêri omá. Onyi saurê, sarú ajé. Onyi saurê obêri omá. Aranda areia reia reia reia ra.  A preta do doce de marmelo, foi bater o olho no homem, já sabia de tudo.

 

Episódio grande enfrentou o sinhô, disse a mulher a José ao se aproximar, risonha, dando início a uma tertúlia de muitos dias. O grumete Maden, atento e previdente, seguia ao lado do comandante. Manso, o rapaz arengava talvez o comandante apresente uma récita nesta herdade. Não gostarias de parar, tomar um caldo, recostar-se? Aranda reia reia reia reia ra respondeu José Gaetano, com um esgar. Ergotamina. Ergotina. Ergot. O corsário lera a receita deste fármaco em alguma página de almanaque. Escopolamina. Fogo de Santo Antônio. Claviceps purpúrea. Trombeteira. Esquecer. Quantidade suficiente para esquecer. Dor do parto, Atropa belladonna, meimendro. Corola com cinco lóbulos e cinco estaminhas inclinadas. Idade Média. Rio de Janeiro. Paraty. Cabo Horn. Lisboa. Salvador. Santos. Perigo. O fim do mundo. Bandeira e ponto. Sargaços. Lua e sorte. Coordenadas invertidas. As estrelas, acidentes no céu, os olhos da filha do intendente. O laço, o laço, o laço, o ventre nu. Os olhos daquele homem jovem e vitorioso. A vontade de um amigo. Onça. Ervas, fungos de cereais. Plantas venenosas. Rom. Os nômades de coração puro. A saia puída. Cabelos devastados a punhal. Aquela dor. Esquecer permanentemente. Espasmos. Alucinações. Doença vascular. 

 

José caminhava a delirar. Brugmansia suaveolens. O que sentia? Pelo que passava? Mesmo parado diante da preta do doce de marmelo, continuou a arengar aquela viagem na caravana, o canto triste dos pés descalços, o livro do físico, a caixa de poções. Sem pouso, sem porto. Estive em brumas, afundando. Morto. Santa Sara Cahli. O avô me embarcou sem adeus. O bucaneiro imaginava-se ainda acostado na gávea. Pouco familiarizado com o ambiente de terra, José divisou o horizonte mais claro que já vira. Posava com uma luneta nas mãos, focalizava o porto. Santos. Tão esperado. Os livros de El Rey estavam salvos, graças. Donis, onde andarás? O que há para ver agora? 


O sentido das coisas desbaratou-se lá pelo sétimo dia da quarentena, o sol a pino muito mais confundia o tempo, espaço, matéria, a densidade, a musicalidade. A verdade. Nossa Senhora das calamidades, valei-nos. A verdade é que José estava voltando ao mundo, à tona. O único elemento de ver era o belo cobertor de águas de sal, surpreendido aqui e ali por uma bolha, um ai ouvido só ao fundo, ah, oceano que também murmura. O convés visto de cima era obscuro. O cheiro ruim de tantos dias lá na gávea arrefecia, admitia encher os pulmões. O rapazito com a adaga esculpia um peixe. Rapaz bom. Vez por outra trazia brisa. O vento noroeste soprava calmo. Terral. O que não daria por uma tina de água morna e doce. Vinho verde e uma posta assada com pimentões, oliva e azeite, azeite, azeite. Um forte alísio oriental, o mar de retirar, o mundo do mar, amar. Aquele que andou sobre o mar. Amar, A túnica. Esperar, o dia de Damasco. Todos os pontos no horizonte localizados com exatidão. Ai, a Rosa dos Ventos aberta. Sentido. Posse. Pertença. Um coração amigo. Este mundo, vasto mundo, outro mundo, ilusão. A etimologia das palavras. Poseidon. Delfos. Tetis. Por que ela e não Afrodite? Azimute cartográfico. Nossa Senhora do coração, valei. Vez por outra, a assombração exibia uns dentes muito podres, abraçava-lhe o pescoço nu e pintado de verrugas. Para espanto seu, pedia, a cantarolar baixinho,  a cara horrível entre a clavícula e o queixo, dá-me um beijo. A garra descarnada descia e subia pela fenda nas costas, um fogo tímido a mergulhar em terrível lodaçal. Fora ameaça de tétano. Aos poucos, José Gaetano foi voltando a si e uma bruta saudade o pôs a par dos domínios do mar. Havia esperança. 

 

Pela fechadura da porta eu já não avanço. Te vejo, ó tecido fino. Sereno, sereno caiado de azul. Nas voltas do meu canto, eu já não me espanto. Não cabe, não cessa, não passa. Sereno, sereno caiado de azul. Pela fechadura da porta eu já não descanso. Não veste, não fecha, não orna. Sereno, sereno caiado de azul. A felicidade pousa aqui, nas filigranas da canção. Sereno, sereno, caiado de azul. 

 

 

Madame causou alguma preocupação por aqueles dias. Fechou-se em copas, relutava em sair do leito. Tão prostrada estava que nem viu o enfermeiro Gaspare a servir com a comadre, higienizar. Há muito não havia necessidade de banhos emergenciais ou alimento por sonda. O rapaz, sentimental, após cuidar da senhora, saiu um pouco para chorar. Alev, o homem invisível, chamou-lhe a atenção. Era preciso erguer o moral da tropa. 

 

A senhora Chang acudiu. Convidou a fadista Mariza ao Casaredo. A moça chegou pela tarde e foi, de dormitório em dormitório, ambulatório, UTI, a cantar desgarradas e fados ligeiros. Ela vinha acompanhada de três músicos. Próxima ao leito de Madame, Mariza cantou Rosa Branca. Bastou, para trazer a senhora melancólica de volta ao mundo, ao tempo presente. O dedo indicador em riste acompanhou o dedilhado da guitarra, um sorriso acanhado clareou-lhe o rosto descarnado, devolveu tônus à pele gris. Comovida com a mudança de ambiente observada - e se sentiu tão simples ao cantar, e tão honroso era o que fazia -, Mariza aceitou pernoitar com os músicos em um dos sobrados vagos. Cantou um pouco mais. Catarina e Josefine se esmeraram no cozer, em agradecimento por horas tão doces. Reuniram-se todos no jardim da Capela Rosália, após a ceia. Javier dançou, ao som das guitarras portuguesas. Também o grupo musical do Casaredo, mesmo sem a presença de Gilmar, impressionou os convidados com arranjos inéditos. A música ainda soava, passada a meia-noite.

 

Da janela, Madame acompanhou o sarau. Estava fraca para juntar-se à comitiva. Podia escutar e olhar a lua plena sobre o mar. Alev estava perto, sem alarde. Também ele espiava o prateado sobre as ondas e pensava em Medina, no que não podia ter. Era austero o suficiente para não se deixar embargar. A enfermeira chefe Maria repousava em seu cadeirão no corredor. A narcótica Adele fora transferida à enfermaria e se debatia em algum sonho ruim, vigiada pela cabelos de fogo, Matilde. Madame sentiu-se lúcida para escrever e seus garranchos deram quefazer a Gaspare na manhã seguinte.

 

Trabalho e paciência eram dois conceitos que moviam José Gaetano, em constante exercício de superação, Madame ponderou. José sentia a energia limpa que brotava no suor da testa. Muita vez, dava folga a um grumete e ia, ele mesmo, testar nó após nó, roldana após roldana, gancho, quilha, velas, engraxava o leme. Emprestava o esfregão e se punha a lavar o convés, a cantar. Este era um José de poucos momentos, como se o visitasse uma dama chamada saúde, de passagem por aquelas bandas, breve e brusca. Se havia alguma criança a bordo, interessada em render mais no serviço, executar tarefas com destreza e economia de gestos, lá estava o corsário, com jeito, a trocar ideias e fazer rir, enquanto lidavam juntos. Nessas horas, o marujo se mostrava bom ouvinte, sabia dispersar as agruras de muitos comandados. Muita vez isso bastava, para que os marujos se tornassem mais dóceis, dedicados à labuta, respeitosos uns com os outros, passíveis de trabalho em equipe, até criativos. O homem descia ao porão e conferia toda carga, fazia trabalho de estiva. Nas horas salutares, a marujada andava avisada, deixassem o comandante transpirar, dali viria o melhor para todos. Invariavelmente, as soluções apareciam, com promessa de canto e dança ao final do dia, alguma bebida, ração dobrada, algum alento, desses que só proporcionam aos outros aqueles que têm compaixão. 

 

Hábil em promover saraus, José Gaetano convidava algum garoto bom em causos, piadas, para fazer o prólogo. Quando riam tanto que se tornavam disponíveis, o comandante puxava uma história, às vezes picaresca, da própria vida, às vezes de alguma aventura em campanha. No que sempre acertava era nos idílios amorosos, em especial os que apresentavam algum contato físico mais íntimo. Nos dias de atividades tensas a bordo, em que era preciso arriscar a sorte e a vida, lançava mão de alguma descrição mais atrevida. Era comum haver ouvidos atentos, espaço para perguntas, para mudar o rumo da prosa, para novos cantores se revelarem, novos instrumentistas, até para preces, especialmente na época da Páscoa e da Navidad. Às vezes sim, o comandante sentia-se o bobo da corte, deixava histórias e poemas a meio, sem prejuízo para a algazarra geral. Saia à francesa e ia refugiar-se à cabine, para escrever. 

 

Na última viagem rumo ao Brasil um dos marujos tocou, em um serrote, dolorosas canções sefaradi, que José não ouvia há tempos. Por que lloras blanca niña[1] teve a participação  dele, que foi buscar o santur. O judeu espanhol, tocador de fidle, além do serrote, havia se impressionado por não precisar pagar os costumeiros quinhentos réis para embarcar. Prática comum à época, um judeu pagar caro por sua estadia em viagem por mar. Josafá era timoneiro e logo se revelou competente na função, disposto a auxiliar a tripulação em qualquer urgência.  Em uma noite, um dos pajens caiu no mar. O horizonte era puro breu. Josafá atou-se ao cordame mais longo que havia e saltou, demorando-se algum tempo para voltar. Quando puxaram a corda, o judeu trazia o garoto desacordado, com um dos pés arrancado por um tubarão. Durante algum tempo, Josafá e o comandante se revezaram nos cuidados do menino. Em um mês, o cotoco estava cicatrizado. 

 

Josafá confeccionou um suporte de madeira. Amarrado à cintura do rapaz com correias, serviu para que mancasse menos. Mais, para evitar que pulasse numa perna só ou usasse muletas. Instigado por todos, Cairó adaptou-se bem à prótese e pode voltar a realizar pequenas tarefas. O judeu lia a torá com o menino em todas as folgas que tinham, ensinando-lhe também o hebraico. Em breve, Josafá  adotou Cairó como filho. 

 

José Gaetano nunca cogitou apadrinhar um menino e havia tantos em tantas viagens, pelo menos uns vinte órfãos por ano. Decidiu permanecer instrutor. Para ser pai lhe faltavam os fundamentos, ele acreditava. Em tempo algum lhe ocorreu ser mais gabaritado que tantos para exercer o papel. Uma vez Pierre Martin, capitão da Lène, trompista esplêndido, lhe disse ah, Monsier Gaetan, teremos de voltar na próxima jornada para gerar e embalar garçon, é da lei, mon petit frère.

 

As alucinações persistiam. Cores tão velhas, tão afundadas na memória, que, se sabia, vinham da remota Filadélfia, dos primeiros meses de vida. Os gritos pela mãe confundiam-se com o pai substituto a chamar, a esmurrar a porta. Abrira-se, enfim, o breu da infância, o primeiro momento de ausência, ao som da rapsódia azul. Efeito do jantar, efeito do passeio, efeito da distância, da saudade. E o anjo presença, afoito por alguns instantes. O ser alado deveria estar olhando o Pacífico, refazendo a travessia para Chiloé, ou salvando um bebê nas Ilhas Cook.

 

 

 

Que remota sensação. Madame sentia-se entorpecida. Já não se podia diagnosticar angústia, ansiedade. A senectude abranda os nomes das coisas. Madame praticava sozinha os exercícios prescritos por Blackwood. Respirar e imaginar cinco coisas de ver, quatro coisas de ouvir, três coisas de tocar, duas de cheirar, uma de saborear. Invertia as comoções. Respirava a respiração quadrada. Um dois três quatro, inspirar. Um dois três quatro, segurar. Um dois três quatro cinco seis, expirar. Relaxar. Um dois três quatro, segurar e novamente contar. Contava de cem a zero e seus dedos rijos ditavam a marcha. Para reconhecer lugares e buscar evidências, pesos, importâncias, fechava os olhos. Ritmo, sempre fora seu ponto nevrálgico. Sintonizou o rádio de cabeceira no Adágio para cordas de alguém e a Terra se tornou em marés lúcidas. Em sessão terapêutica com a doutora Dung Hanh, Madame pode expressar criativamente suas soledades, como um compositor, arredio ao jazz, que acaba por criar obra jazzística imortal, bem humorada, de levantar as plateias do mundo. Apaziguada, de volta ao cotidiano, Madame mergulhou em seus escritos.

 

Há dias, o enfermeiro Manoel não punha a face na porta, nem tirava Madame do leito a valsar, ou a levava à gruta de estalactites para ver as libélulas.  A senhora olhava os cabelos de fogo, presentes como nunca em seu campo visual. Aceitava o copo com canudo, o beijo estalado nos lábios e nada dizia. Andavam preocupados com ela, que pouco saia do dormitório. Estava, há semanas, sem cozinhar. As mãos, encarquilhadas, pareciam um leque desdentado. Matilde arrolou aqueles dedos como Gaspare fazia, esticando e puxando com firmeza, uma filha bruta, porém calorosa. A enfermeira não teve dúvidas, sacudiu a senhora sobre a cadeira de banho, um breve terremoto de intentos prazerosos, de acordar, de amar a existência presente, ser grata. Onde está Manoel, Madame perguntou afinal, enquanto Matilde e Catarina lhe despiam e ensaboavam, aquelas duas mulheres fortes. Parecia que um rio de lágrimas viria em lugar do chuveiro. Ele está em Lisboa, Mamã. Sofreu uma concussão, logo estará de volta. A senhora fechou os olhos e se deixou lavar. O leito servira para tudo nos últimos tempos, era um alento estar sob a água. O cheiro forte de formol ia dando lugar a óleo de argan. A memória forçou Madame a viagem rápida pela Roseira, fez lembrar as latas de lixo sendo esvaziadas na carroça. 

 

De volta ao dormitório um, os lençóis frescos, quentes ainda das secadoras, criavam caminhos de ferro nas costas. Sim, Mamã estava na Terra e era agradecida. Quando Matilde e Catarina concluíram seus procedimentos de cuidar, feito concerto grosso, a senhora pediu para, mais tarde, ir à Capela Rosália. Iria sozinha, caso a pudessem ajudar a descer. Meia hora se passou. Madame decidiu-se por tomar o elevador, errou o botão. Seus braços conseguiram avançar até uma área solar do corredor, de frente para o dormitório masculino. Contentou-se.

 

Em pé sobre o leito, o senhor da Nossa Senhora girava algo diante de si, olhar perdido em horizonte particular. Terçanabal, Terçanabal, repetia ele num sussurro. No momento em que Madame posou sob a luz, o homem dobrou os joelhos sem tombar adiante. Aquela visão trazia algo mais longe do que ele podia entender. Uma menina desnuda até a cintura, a rodar, apoiada pelas axilas. Ele olhava a cena de frente, paralisado. Hoje, seu corpo respondia, afinal. Talvez tenham-se passado dez minutos delirantes. O senhor da Nossa Senhora desceu do leito e se aproximou da porta. Madame acompanhou, atenta, a todos os movimentos. O homem deveria medir metro e meio. Cabelos branquinhos puxados para trás, ainda cheios, uma calvície muito leve na fronte. Os dois velhos se miraram por uma eternidade. Madame sorriu primeiro. O senhor da Nossa Senhora, vagaroso, gemedor, chegou perto da cadeira e estendeu a mão. A senhora respondeu, envolvendo seu pulso com doçura. A boca desdentada sorriu. Gaspare olhava o encontro apoiado em uma soleira, oculto pela viga da construção. Aquele toque no pulso se alongou. O senhor da Nossa Senhora não se moveu nem tirou os olhos da menina em saia marrom. Ele a encontrara, afinal. Ela estava a salvo.

 

O bip de Gaspare soou e quebrou o encanto. Madame separou-se do senhor da Nossa Senhora, baixou os olhos encabulada, e seguiu até o elevador. O velhinho ficou onde estava, boquiaberto. Ali mesmo, retomou seu movimento de segurar com ambas as mãos algo diante de si, o olhar melancólico. Terçanabal. Terçanabal. Manoel retornava ao Casaredo naquele instante, após vários dias de internação em Lisboa. 

 

Uma pequena sequela nos lábios, como que um sorriso maroto. Itaú minimizaria aquele rictus com seus fortes exercícios de expressão facial. A fala permanecia intacta. A coluna, encurtada, pediria o olhar firme do doutor Wong Lam. A senhora Chang veio receber o amigo em meio à ventania das hélices. Talvez tenha sido a que mais sofreu enquanto o enfermeiro esteve fora. Temeu por ele. Aliviada, chorava e ria, dizendo frases rápidas e agudas em cantonês. Dali em diante, ela criaria um sistema de acalanto aos cuidadores da casa. Não que estivessem desguarnecidos, precisavam de um toque materno. Um toque materno de cultura distante. Gaspare assumiu a maca e a conduziu, tranquilo, até a enfermaria. Manoel, exausto da viagem e sob efeito de sedativos, dormia. Após sua transferência ao leito, Josefine passou a ministrar-lhe os apuros de praxe. Itaú leu seus sinais vitais, tudo parecia bem. Madame chegou de manso, ficou a um canto, deixou cuidarem do amigo. Chorou sem lágrimas, rendeu-se e sonhou com um bando de flamingos que acabavam de aportar em Alcochete. Mergulhou aquelas águas, ficou entre os pássaros, quieta. O canto de Manoel se ouvia dentro da água ácida, eloquente, lembra-te sempre de mim. Estou contentíssima, Brava, brava, bravíssima. Contentíssima. 

 

Madame despertou desse enlevo operístico, segurou o pulso do enfermeiro por algum tempo e saiu da enfermaria. Já não sabia mais dizer-se triste, alegre, aliviada. Estava nada. Perdera as contas. Foi dar, depois de alguns enganos, na rampa da Capela Rosália. Desceu a segurar o corrimão, a cadeira a reclamar, em  trancos suaves. Perto do lirial roxo, havia uma mesa. Alinhou-se, puxou o caderno, o lápis, a ponta não estava muito boa. Mesmo assim, escreveu a data da partida, tão rude para a maioria dos humanos, se avizinha. É como se o sentido da página se imiscuísse no fundo de alguma gaveta ou florisse, novo, no mangue. Dou importância demais às coisas, pensava José Gaetano, levemente febril. A ameaça de infecção cedera e o que restava do episódio da gávea era um feio vergão, desses que arrepiam e, curiosamente, excitam. Preto, de bordas arroxeadas, o ferimento lembrava o Rio Nilo tatuado, cunhado a ponta de faca, de um só risco. O corsário vira parte da dor em um caco de espelho dependurado na cabine. Marca incógnita, que o comandante carregaria até o último ceitil. Se alguém indagasse, o que ele contaria: um grumete me abordou pela popa e roubou certo encanto pelo haiku. Por que a imagem da Rosa lhe voltava naquele momento? Talvez pela maneira silenciosa de Maden entrar, deixar a bandeja, baixar os olhos e respeitar suas divagações. 


Maden desenvolveu certa devoção pelas alucinações de José. Era daqueles homens que esperam milagres, rasgaduras nos céus, trombeteiros, faíscas, fogo. Confiava que, daquelas ausências de seu superior, brotariam histórias inéditas. Três noites antes, ele ouvira uma. É certo que entrecortada pela febre. Mesmo assim, Maden desejava saber mais sobre a dama loura, de meias de seda verde. Ele nunca tocara em meias de seda. Estranha personagem, tal qual as miragens sobre o mar, ninfa magra de olhos fundos e brilhantes e cabelos de palha de milho, a quem não era permitido beijar. Maden considerava seu comandante um leão branco de sorte. É, agora já o tinha como seu. O contato físico faz dessas coisas, ainda mais quando se trata de trocar curativos e administrar mezinhas. Curiosa sina, a de cuidar. 


Pela manhã do décimo dia de quarentena, litoral santista, Brasil, mais um batel encostou o casco na Sor. Gente graduada. Havia uma missiva do chefe da Armada, informando que permanecia a ordem de impedimento para aportar. Há dois meses, o porto havia se afligido com a peste, não era de espantar que estivessem sob alerta máximo. Chegou junto com a notificação uma remessa de água potável, frutas tropicais, carne de sol, azeite (há muito não sentiam o sabor de oliva) e até uma bela posta de bacalhau. Um pouco de aveia, o que permitiria dar vigor ao comandante sem lhe estragar o fígado. Um odre de vinho. Na noite anterior havia chovido, o que permitiu à minguada tripulação lavar-se. Agora até sabão tinham. O batel enviou algumas roupas, botinas, cobertores de campanha. Diante da navalha José hesitou, não que temesse de fato uma degola. Na dúvida, fez ele mesmo a toalete. Maden lhe cortou o cabelo, assegurando que não via os apavorantes piolhos por perto. Somados todos os revezes, tudo corria bem, sem sintomas. A sugestão do chefe da Armada era, dali a quatro dias, zarparem rumo ao porto de Paranaguá, alcançarem a área de Superagui. O tempo de viagem ou afastaria o perigo de doença, ou os sepultaria de vez. Aquela dama japonesa de cabelos louros pairava no ar. Mais uma vez, a estampa voltou a nublar os pensamentos de Maden, enquanto ouvia as instruções. Cantou, sem certeza, uma prece a Nossa Senhora, escrita por Marcos Portugal e tratou de fazer uma papa a seu mentor.


Maden precisou contentar-se com as conversas sem sentido de José Gaetano. Até tinha prazer no exercício. Sonhava as tais meias verdes e, por mais que se esforçasse, elas se desenhavam em lã grosseira, com buracos nos dedões, sob saias marrom até os pés. José continuava a recitar ideias misturadas e inconclusas. Compôs outro enredo, um sonho confuso, cenário para pêndulo a gingar. Há noite e há neblina, o monólogo iniciava. O trabalho espera, o balde, o vassourão. O poeta alcoolizado namora as oitavas em seu instrumento e não as sabe arranjar. Tira as meias, vadia, entra o senhorio a ordenar. O sol da meia noite por testemunha, a purgação da manhã um tanto fria. Tira as meias, vadia. Algum dia da semana, a luneta tombou pela proa e jaz no assoalho por lavar, saia arrepanhada, pernas morenas, fornidas, sãs. O senhorio se abaixa, esconde seu pudor sob as saias. Meia tarde e meia, as palavras descascadas na pia, com um copo d’água morna, mel, canela e chia. Ti-ra as mei-as, os ouvidos ainda escutam. A moça é lágrimas. 


As estrelas cobriram os ombros do comandante, aqueceram seu espírito viajor. Tirou as botinas, as meias limpas. Pisou o assoalho lavado da Sor. Sorriu. José estava bem, abrigado pelas imagens que com ele podiam conversar. Ao grumete, só havia o mar e saias de helenas. A preta do doce de marmelo encostou-se na cerca de madeira e esperou os marinheiros passarem. O mais maduro lembrou-lhe antigo freguês com tapa olho, que atendera poucos meses antes, até que a passagem para as terras de Ogum se cumprisse. A mulher ganhava a vida de várias maneiras. Queria voltar para Aruanda. Dava cama, mesa, banho e mais algo que faltasse. Seu corpo quadrado contava tudo, mal coberto por chita vistosa. A preta era assim, dada. Por alguma inspiração, de um folhetim que ainda guardava no jirau, ao lado da rede – sim, a preta do doce de marmelo sabia ler -, recordou-se do zarolho de Voltaire. O mais maduro dos marinheiros, que veio a saber depois, se chamava José Gaetano, tinha ares de gente que só tem o olho bom. Colocou outra vez o tacho sobre a cabeça e apertou o passo, que os dois homens iam logo ali, cansados, confusos. Querem pouso, ela perguntou. Ambos desabaram de contentamento, que fazia muito não conversavam com mulher que tivesse todos os dentes sãos e dois olhos de ver longe. 


A tarde já se arranjava para dormir, após um dia quente e abafado.  A mulher percebeu logo que José tinha medo de não agradar. Mais uma vez, o zarolho de Voltaire voltou a seus pensamentos, bem na hora em que a carruagem passa e ele tomba, enfeitiçado pela princesa com dois olhos. Se é certo que não há amor sem esperança, assim como o zarolho, a mulher esperou.  Os homens não quiseram, José não quis, entrar na casa. Aceitaram a ceia, contudo, bem como um par de redes. A bacia com água para se lavarem foi útil. Havia peixe na brasa com ervas, um pedaço de queijo, bananas e uma botija com um pouco de cachaça. Marmelada de sobremesa. Um jarro d’água estava ao lado. A mulher arrumou tudo em uma tábua sobre o poço. Mais ou menos limpos, alimentados, os homens imaginaram que não seria ruim uma cantoria e uma rodada de histórias. Ao som do santur, Maden arriscou improvisar a história de um navio encalhado no Atlântico. Vinha da China, se dizia. Contou que o cozinheiro da galé elaborou um plano para matar a tripulação, composta por vinte marujos. Colocou veneno no peixe da ceia e teve êxito em seu intento. O cozinheiro poupou o comandante e um grumete, que foi obrigado a jogar os corpos ao mar e por fim, jogar-se com os outros. O comandante, inspirado por força oculta, conteve o cozinheiro e o trancafiou, até que pode aportar a embarcação. No cais, entregou o homem às autoridades, e logo ele foi despachado para seu país de origem. No lugar onde o cozinheiro ficou encarcerado, havia uma sutil falha no madeirame. Munido de seu inseparável punhal, o homem alargara a fenda. Alguns dias depois da conclusão da viagem, a âncora misteriosamente içada, a embarcação foi afundar a quarenta metros da costa. Só desencalhou no ano seguinte, por conta de uma ressaca. A galé ficou exposta em Santos, Brasil e seu destino final sonhava mares portugueses. Maden ansiava chefiar uma nau. Nascera para carregador, todavia. 

 



[1] Canto sefaradi

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