Hospital Casaredo 81



 


 Escrevinhar

 

A doutora Dung Hanh achou por bem deixar Madame com seus botões, sem cerceamento. A senhora fora ao ateliê e ali permaneceu, a teclar com dois dedos, ares de profissional. Parou por fim, depois de muito tempo em transe, sentia-se engulhada. Vários parágrafos foram caprichosamente recompostos. Quando escrevia à mão e não lhe agradava alguma ideia desenvolvida, resolvia a questão com o gesto de atirar o caderno longe, ou rasgar a página. O bom do novo sistema é que se evitava a brabeza da cabelos de fogo, a enfermeira Matilde, que demorava a devolver-lhe o caderno. Ali, diante da máquina, Madame temia a tecla de remoção. Mais de uma vez, perdera todo o arquivo. Era necessário, a escrevinhadeira sabia, não ter dó, jogar fora a escrita ruim. Pensou em Matilde, aprendeu a reconhecer seu mal comportamento, sentiu vergonha, chorou. Loto acompanhava o processo sem interferir. Se foi esquecido, vale fortalecer, Loto era o nome que o menino Julio dera à doutora. Se menino Júlio representa pouco ao coração do leitor, eis aí um garotinho de luz.

 

Casaca púrpura, verde oliva, bandeira de rendição ou fralda ou camisolão, trata-se de documentar passado despertencido que cheira mal, foi assim que Madame enunciou o novo capítulo. Certas saudades são fatos simbólicos. Ou fado. Gatilho. Solidão de cantante. Solidão de poeta, solidão de adicto. Joio e trigo na mesma página. Mais uma vez, voltou à memória de Madame o persongem Santo Olivairas. Como cantava bonito aquele homem, cantigas de tantos quasares. Assim como veio, o músico foi. Nada mais a considerar a respeito, nenhuma história ou dor, a senhora tomou novo impulso e seguiu a percutir as teclas, as mãos doloridas. À bordo das faluas, certos marujos se permitem ir adiante, suas tarefas por cumprir, a consciência adormecida, os vícios camuflados. Vão eles escambar em outros portos, por saberem que é melhor dessa forma, desprender, descompor, diluir. Os desejos não são monstros, trata-se de os controlar. A maldade é sintoma de enfermidade grave. Nada melhor que uma quarentena, para lapidar uma situação operística. 

 

De próprio punho, o comandante José Gaetano ensinou ao grumete Maden como salgar o peixe, mesmo içado como estava, sete  dias  e noites na gávea da Sor. A pele de José, gretada de sol, virara cascão. O grumete foi cuidar de alguma tarefa e o bucaneiro mergulhou em brumas. Um pescoço à mostra voltou à memória de José. Foi em uma tarde. Aquela oferta inconsciente. Uma onda caprichosa de desejo correu-lhe a alma. O organismo, lagarto sob o sol desértico, à cata de comida, água, companhia, perdeu-se em tocas no areal. Tão triste delírio, cabia apenas sorrir. O eu lírico procuraria argumentos plausíveis para a narrativa, olha, a gola japonesa da casaca púrpura, alguns botões por fechar. Diante daquele pescoço, a mandibula rígida, uma mordida. As libélulas, pudicas, depuseram o beijo casto. Não estava ali nenhum dissoluto, escamoteador, por Nossa Senhora dos anjos, rogai por nós. 

 

Madame despertou e se encontrava no pátio, defronte do hospital. Era a manhã seguinte ao último contato com o computador. A senhora deu conta de si aos urros. Não poderia dizer como chegara ali. O objetivo era sumir com as ondas, foi o que contou depois ao terapeuta William. Por sorte, a bateria da cadeira descarregou. Berrou durante muitos minutos e seus lamentos eram de medo. Estava coberta com a casaca púrpura. O som das ondas, bravio, neutralizou o surto, por isso os enfermeiros não perceberam sua angústia. Quem aquietou Madame foi a narcótica Adele. Há tempos não se viam. A moça sofrera recorrentes recidivas, várias de natureza agressiva. Foi enviada, em coma, a uma clinica para adictos por drogas, a VillaRamadas. Seu retorno ao Casaredo, produto de uma fuga, a trazia magra como um caniço, supostamente amansada, tanto que seduziu o porteiro sem dificuldade, entrou sem ser anunciada e sem ducumentos. Aparentava ter cem anos, andava arcada, parecia precisar do socorro daquele lugar, por isso o Silva sensibilizou-se. Escolado, não deixou de acionar o bip do homem invisível. Os olhos de Adele guardavam brilho estranho. Ela vestia um fato verde oliva sobre uma camisola. Embora os vícios lhe embotassem a empatia, o estardalhaço de Madame devolveu a Adele alguma esperança. Ela pensou estar de volta, lugar carregado de um tipo de respeito que a fazia parar. Sem temer represálias, sentou-se no colo da senhora e logo a apascentou. Ambas cantaram juntas a Julia florista[1]. E riram, às gargalhadas, abraçadas uma a outra, riram dos próprios naufrágios. Beijaram-se castamente.

 

Depois dos apertos de mão dados pelos profissionais, as juras de não mais pecar, a narcótica Adele refugiou-se ao leito do ambulatório, conduzida pelo enfermeiro Alev. Estava verdadeiramente abatida. Precisava muito de cuidados, da medicina determinada pela casa de desintoxicação, devidamente comunicada sobre o paradeiro de sua paciente. Todos ponderaram que seria, ali no Casaredo, assistência temporária. Era preciso retornar à VillaRamadas. Subjugada por ideias de sumir-se, a moça pediu Madame como companhia, como se tivesse livre-arbítrio. Blackwood tomou a si a responsabilidade por este atendimento e estudou a fundo a dinâmica dos vícios. Nesse aspecto, Matilde e ele estavam de acordo, o controle severo dos danos era a única saída para a paciente.

 

O senhor J.G. desenhou, no quadro de giz, uma reunião soberba. Seres a flutuar no dormitório feminino, cores e sombras conjugadas, bocas escancaradas e pescoços à mostra, à espera. Raposas sem viço escondiam-se sob os colchões. As camas que abrigaram as senhoras Marscha, Rasguito e Esperança permaneciam vagas. Adele foi acolhida à que hospedara a senhora Antária. A moça dormiu logo. Os olhos de Matilde, que prestava o socorro naquele turno, eram firmes, porém menos judiciosos. Os cabelos de fogo, mesmo as tranças e cachos cintilando de apliques, exerciam forte persuasão, eram bons vigilantes. 

 

Madame, que aceitara aquela companhia perversa, aproveitou o sono de Adele e pediu à enfermeira Joana para voltar ao ateliê. A senhora conversara com William em sessão e isso lhe devolveu alguma potência ao coração. Joana levou a senhora até Dung Hanh. A raposa voltou, foi o que Madame conseguiu articular. Seus olhos refletiam dores, penar e expectativa. 

 

A senhora Chang também estava na sala, ao piano. Naquele instante, ela estudava as Variações Goldberg. A pianista Zhu Xiao-Mei soava ao gramofone, servia de inspiração e presságio. Madame passou a ritmar a excução com o indicador da mão direita. Alguns minutos depois, Chang Chang deixou o instrumento, cumprimentou Loto e saiu, motivada pela noticia do retorno da huli jing. Como não lançar sinais de perigo nestes casos? 

 

Uma gravura de Júlio, exposta no mural, atraiu a percepção de Madame. Também ela ligara seus radares, às custas de confusão mental, tontura e engulho. Dung Hanh pôs-se a contar uma lenda brasileira que aprendeu com Itaú. Antes, tomou nos dedos suas tacinhas de porcelana. A ilha de Superagui foi criada por uma idosa da triboA senhora, nascida de pai branco, não era bem quista pela comunidade. Seu consolo era o mar. Ali brincava quando criança, se entendia com os peixes. Quando se viu mulher, a índia mesclada desenvolveu um único sonho, dar à luz um filho. Homem algum da comunidade a queria. Não demorou muito, a moça adoeceu e morreu, a beira mar. Nuvem, aparecia em noites de lua plena e clamava por um filho, na voz do vento. Vieram mais brancos à ilha. Ficaram. O espectro da índia, a cada lua cheia, pedia, um filho. Certa noite dessas, um dos homens brancos foi pescar na arrebentação. Estava para ser pai. A índia pediu o filho dele. Em troca, lhe daria abundância. O homem se assustou, refutou a proposta e fugiu para a cabana, sem os peixes. A índia devolveu os que se acotovelavam no balde ao mar. A nuvem cobriu o lar. Choveu. O menino do pescador nasceu naquela madrugada ventosa. A índia seguiu a vagar. Ao invés de refrega, a assombração passou a velar pela família daquele homem. A pesca foi sempre fértil para eles.  O mar, com o entendimento dos peixes, bastou à índia. Diz-se que, para os que chamam superagui três vezes em noite de lua, a pescaria dá peixes e filhos. 

 

O silêncio voltou ao ateliê. Os olhos secos das artesãs presentes noticiavam outras coisas do universo feminino. Os sonhos são tantos, chamejavam, impermanentes. Madame foi para a frente do teclado, demorou para ligar a máquina. O dedo indicador estava espasmódico. Então a senhora digitou, como se fora a primeira Variação Goldberg.

 

Vaudeville íntimo

 

José Gaetano também tinha homens em seu oceano íntimo, Madame sorriu ao afirmar isso. Tomava distância deles o marujo, tinha-lhes asco. De um, em reunião de charutos, ouviu tem alguns de mim que são as confissões de outros cadernos. O tempo vai passando, os dias e algures e anotações de descartar. O medo indicador, o dedo. Tem alguns de mim que são as transações de mercados livres, posta restante para mãos desaparecidas. Tem alguns de mim que são recados ternos,  truculentos. Encontros cantados. Tem alguns de mim que são as virações de humor, a apontar baionetas invisíveis na linha de frente. Do nada, as escotilhas se abrem e já são velhas as disputas sem sentido. Tem alguns de mim que só fazem vagar e o cordão encantado das horas são as exaltações de Jeremias. Estes carecem compaixão, mesmo que as rosas digam não. Tem alguns de mim que esperam o barco, estafermos. Tem alguns de mim que anseiam futuros. Tem alguns de mim, amém. 

 

Entre as companhias masculinas íntimas de José Gaetano havia também os senhores insólitos, montados, maquiados à maneira do vaudeville. Quitéria se chamava um e grasnava. No salão, sua performance era  recitação.  Certa noite de muito rum e cachimbo, ela impôs-se. Não faz muito tempo – Quitéria foi abrindo espaço entre os convivas -, apareci, um cesto de pão dormido, alfafa verdejante no pasto. Perdi, em um sofá como este – apontou um ao canto -, meu dom impudico. Foi tomar o caldo e morrer – encompridou os rrr com um gesto do punho. Ficou a intenção, vestido púrpura. Baal enamorou-se de Ekart, peça que eu representava neste mesmo átrio, pouco antes de acontecer o inevitável em ambientes assim. Neste momento, a diva caiu de joelhos e desabou para frente, de cara sobre o tapete, por sorte felpudo. Ao final da apresentação, cara borrada, Quitéria fez uma pequena mesura, deixou ver o falo por entre o voal da saia que mal lhe cobria. 

 

Ao coro de giocondas do marujo delirante juntou-se outro emasculado, Tamis, beldade andrógina que disfarçava escândalos. Eram olhos silenciosos, plenos de grandes cidades construídas em meio a rios. Vestia rosa e meias de seda verdes. Tudo zune cantava ela, tudo zune na cabeça, nos ouvidos, no centro genésico. São flores, rimas bizantinas, mazelas da convivência, distanciamentos, aproximações, situações limítrofe, dor, delícia, das nascentes da humana condição. Vila de Rei[2].  Tamis bailava sem ritmo num arco de quarenta centímetros. Quantas vezes, ela cantarolava, nos disporíamos a entregar a alma ao mar e agora, que a partida se aproxima, atamo-nos ao mastaréu a pedir misericórdia. Muitos dias se passaram, caro amigo, e quase perco a mão da sanidade. Nossa Senhora das sandices, valei-me. Já pus a panelinha de cobre a vaporizar água do mar. De sede não morreremos. Está lá o Maden Pedro, a cuidar do galão, enquanto o Ezo fragiliza e chora, pobre alma no vale dos mortos vivos. O que se me afigura, claro como o sol inclemente deste dia é o teu franco riso, largo, o teu ombro despido. Ó musa dos meus ais, é com esta visão que mato a sede de companhia. 

Bailou, diante dos olhos de José, Fuego, a mais andrógina dos travestis. Dizia sem afetação a mirada do mar é como olhar um neno acabado de sair do ninho de sua mãe. Tempos grandiosos, de viagens dignas, a barganhar liberdades aos mercadores de escravos, a arrumar confusão com os corsários, minha perna a coxear que o diga. Foi acertado seguirmos em naus diferentes, ó Musa das musas. Eu a regatear perfumes, tu a registrar os sons das rotas. Eu não tive escolha, ou tive todas. Sabe-se lá em que conjunção fomos mãe e filho ou outra dessas alianças humanas que custam tanto afeto. A aliança desta jornada nem nome tem, somos sazonais. Sei que te quero bem e que tu me queres bem decerto. E que te lembras de mim. Estou aqui, apesar dos alísios. Estou leão do mar. Leal ao mar. Estou cantante. Grasnam as Quitérias, Tamis, Fairas, Fuego. Cantas-me tu, oceano azul. Laureia de barinel a Sor. Vim enfrentar os frios do Atlântico Sul contigo. Trinta e cinco dias de calmaria. É o ônus de navegar. Fica bem onde estiveres, ó Musa, que estou, sempre, Fuego. Que Nossa Senhora da chama possa te valer. 

 

Madame pôs um ponto à alucinação. Sentia-se a meio do mar. Não sabia onde largara a casaca púrpura, saiu a procurar. Por sorte, vinha Catarina com ela. A enfermeira tratou de entrar no ateliê. Salvou o arquivo da senhora, desligou a máquina, piscou para a doutora. Madame, então, pediu para ver Antária. Uma, talvez a única, testemunha da existência daqueles personagens todos, caso a mulher se permitisse retornar ao convívio do Casaredo. Antária dormia na enfermaria, de sedação em sedação. Madame, ao lado do leito, deitou a casaca no vão do braço e ficou, a velar. 

 

 

Flor de Lotus com preenchimento sólido



[1] Julia Florista, composição de Joaquim Pimentel e Leonardo Vilar

[2] Picoto de Melriça, demarcando o ponto mais consensual do Centro Geodésico de Portugal Continental, concelho de Vila de Rei. 

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