Hospital Casaredo 80

 






A casaca púrpura

 

Passam na Terra como as ventanias,

Ou como agigantadas nebulosas

Provindas de cavernas misteriosas,

Essas compactas legiões sombrias;

Turbas de almas escravas de agonias,

Com que andei entre queixas dolorosas, 

Ao palmilhar estradas escabrosas

Entre as noites mais lúgubres e frias!

Oh! Visões de martírio que apavoram,

Miseráveis espíritos que choram,

Sobre os grilhões do rude sofrimento!

Orai por eles, bons trabalhadores

Que estais colhendo sobre a Terra as flores

De um doce e temporário esquecimento. Antero de Quental

 

 

Uma casaca púrpura, brilhosa, surrada e mesmo assim em bom estado, com cheiro de mar, sob papel de seda. A caixa, decorada com feixes emaranhados, estampa suave, verdes e roxos e rosa, de tamanho suficiente para acomodar a roupa. Pouco maior que uma camisa, gola japonesa, botões de pressão pequeninos, perolados, um tom mais escuro que os roxos do ocaso. Se se olhasse bem, lembrava uma farda de almirante, sem insígnias, malha antiga. A melancolia que Madame experimentou pediu uma pausa. Alguma engrenagem de base se soltou no organismo, peça daquelas que engatam no quente da bitola. O trem seguiria a correr, mesmo com o ritmo limitado. O apito se escutou, seguro, não se pode escapar ao movimento que trauteia adiante, segue, adiante, segue, adiante.

 

Uma dessas peças de museu. A senhora custou a puxa-la da caixa. Para não contar, da estranha comoção que fez sumirem todas as libélulas de vista, Madame fingiu interessar-se mais pelo envoltório. O enfermeiro Alev lhe dera o embrulho logo cedo. Deixou-o ao alcance de suas mãos. Uma roupa, um casaco, não parecia algo perigoso, para ele que não conhecia as histórias escritas por Madame. A caixa fora deixada no portão de André, pela posta restante da Cidade do Porto. Viera do Brasil, aos cuidados de Gilmar, depois se entenderá o que fazia por aquelas bandas o enfermeiro. Na condição em que se encontrava Madame, qualquer presente poderia ser o último, foi o que Alev pensou. 

 

O laço soltou. A tampa saiu com facilidade. Madame abriu e fechou o objeto pelo menos cem vezes. Sentiu o cheiro, fechou. Abriu, de olhos cerrados, tateou o papel, fechou. No momento de tocar o pano, pareceu que convulsionaria. Teve impulsos de arrancar um dos botões. O enfermeiro Gilmar informava, no cartão, que encontrou a casaca em uma feira de Paraty, Rio de Janeiro. Que teve saudades de Madame e resolveu agradar.

 

Duas horas transcorreram. Entre um cochilo, um cheiro, o lançamento da tampa para longe, um choro, o olhar diligente da cabelos de fogo, a Matilde, Madame afinal tirou a casaca do pacote. Conseguiu estender aquele áspero tecido em seu colo. Passou a mão demorada pelo barrado. Tornou a fechar os olhos. Quando os abriu, a enfermeira estava ao lado, o copo com o canudo diante da boca. Madame aceitou o líquido, olhou para os cabelos que lhe assombravam e enterneciam. Há vários dias não trocavam palavras, as duas, resistente uma, por capricho, a outra a treinar tolerância. A senhora apontou, tímida, para um armário de canto. Matilde foi abrir a porta, sem murmurar. Um cabide. A casaca foi pendurada de modo a ser olhada de frente. Madame agradeceu, por poder ficar longe e ver. É o casaco de Alois, disse afinal. E chorou.

 

As próximas páginas escritas por Madame traduziam algo difícil de compreender. A Finisterra. O último reduto para Gregos, Romanos. Ali o mar se abria, perigoso, incerto, empurrava para o não retorno. Há muito que o comandante se acostumara aos ditames oceânicos. Passaram-se mais três dias sem vento, ainda a calmaria. José Gaetano subira ao cesto da gávea, um tanto arcado de dor e cansaço, luneta na mão, insano, a olhar para nada. Finisterra. Usava sua velha casaca verde oliva, aberta no peito. Se lançado ao mar, iria sóbrio. O grumete Maden cuidou dele, como filho ao pai enfermo. O rapaz não era bom conversador, mas bom escutador era. Deixara para trás celeiros, o ofício de ceifar, o algodão, o olival, o pastoreio das cabras, o queijo, os roseirais bravos e a concertina. Há cinco anos não voltava para casa. A mulher, Açucena, partira no lombo do cavalo de um coletor de impostos. O mar improvável se revelou melhor companheira. Se ele sentia saudades da Freguesia de Alfradige, não transparecia. Talvez uma pena, apenas: deixar a mãe com toda responsabilidade sobre a herdade. Isso lhe confrangia o coração. Era o que se apresentava para viver no momento, a mãe devia ser forte, para suster o singelo patrimônio da família. Filhos, Maden não os fizera, o que era, de início, bom. Se a história soava comum e sem graça, uma satisfação íntima lhe embalava o espírito de marinheiro. Suportou as tempestades todas e à calmaria com força desconhecida. Aprendeu a sorver o cheiro do mar com mais valia. Enxergou, no sol de cada dia, o sorriso divino. As estrelas eram estampa de vestidos, às quais Maden dedicava vésperas, ângelus e cantigas do Piodão. 

 

Quando os comparsas da tripulação tramaram o motim, Maden ia ocupado aos velames, fez vistas grossas, o que não deixa de ser traição. O rapaz não era afeito a rebeldias pueris, a arruaças, até meio covarde admitia ser. Agora, certo afeto lhe cobrava ação. Nunca antes enfrentara o mastaréu. O lugar era alto em demasia, provocava engulho. A teimosia do chefe o deixava inquieto. Todavia, além da própria consciência, Maden valorava aquele gesto desvairado de seu superior hierárquico. Agradecia, por José não ter afundado com seu navio. O lobo solitário, a quem o grumete queria bem, dado a um tanto de bravatas, carecia estima e cuidado. Um poeta, cantor. Maden gostava de o ouvir, a entoar odes tão pungentes que nem humanas eram, pareciam traduzir a voz de Poseidon, de outros deuses das águas, das marés. Ninguém dizia versos tão profundos sobre mapas cartográficos, sobre a história dos povos da costa, dos cabos, das Índias. Maden passava horas por perto, torcia pelos mártires, justiceiros. Ulisses, o nome favorito nas histórias. Também admirava Orfeu e os demais argonautas. Quando se interpunham nas narrativas desenhos de arraias voadoras e baleias de enormes caudas, Maden sofria sobressaltos e prendia o fôlego. A passagem de Inês de Castro o arrasava. Henrique de Sagres, nobre e angélico. O comandante lhe havia cativado a alma com beleza. A experiência literária estimulara sua compreensão para situações cotidianas, tornando-as brandas. Até conseguiu transferir sua paixão condoída de Açucena para Helena, aquela bela de Troia. Que deleite conhecer a Ilíada. Que desafio topar com a Eneida. O que dizer dos cantos de sua terra, ah, Camões. 

 

Até o momento, Maden não acreditava no que fizera o grumete Ezo, seu suposto amigo. Ímpeto sem sentido, isso Maden entendia. Aquele rapaz de fraldas, vindo de Edo, deixara de existir. Sua memória estava apagada, segundo as tradições, não haveria oferendas nos altares para ele. As enfermidades, do corpo, da lama, eram temas fatídicos para Maden. Sempre robusto e de bons fluidos, Maden desconhecia febres ou desarranjos. Moderado no comer e beber, também com mulheres, casara-se virgem e, depois de Açucena, só duas moças solteiras em Goa, muito asseadas e risonhas. Os achaques do espírito não lhe perquiriam, era dócil, acreditava que pensar cabia a figuras como José Gaetano. Maden lembrava muito a Simão Pedro, o pescador. Era assim que José se referia ao grumete nas últimas semanas. Maden se enternecera com a comparação, a ponto de verter lágrimas. Era difícil para o rapaz, entender qual angústia, qual dor acometera o marinheiro japonês, a ponto de despertar-lhe o instinto de matar. O que é um dia de jejum? O que são trinta dias no meio do mar? E por que matar o comandante? O que o homem poderia ter dito ou feito? Por sorte, Ezo era limitado na arte de manejar o sabre, mais ainda na empunhadura de adagas e punhais. Maden sempre confundia Ezo e Edo, qual dessas palavras significava Japão. O aspirante a xogum era incapaz de retirar as escamas de um peixe ou descascar uma batata. José fora salvo pela inépcia. O comandante herdara do incidente um belo corte sinuoso, isso sim, com a profundidade de um dedo. Como ele obteve agilidade para subir ao mastaréu, assim ferido, quem é que sabe? Esses homens e suas cabeças cheias de ideal, assim matutava Maden. Pesam demais. Fazem barulho demais. São como barris de pólvora, tem reações absurdas. Se morresse agora, o corsário acordaria endoidado e perdido à outra margem, e sem moeda para oferecer a Caronte. Era nessas coisas que o grumete refletia, diante do mar parado, enquanto olhava as ervas doce nos vasos, milagrosamente robustas. Havia ainda água para um chá. 

 

Ao deparar-se com o sangue na adaga, Ezo deixou a cair. O ataque fora de surpresa, desleal. Quatro e quinze da madrugada, José viera fumar no convés. O comandante, um tanto embriagado, somente sentiu a fisgada, tombou por sobre o cordame e não se moveu. Leve e ágil, com um giro marcial o japonês voou nau afora, sumiu na água crespa. 

 

Maden, diante do desastre, só tinha tratar àquele vergão, que recortava o torso esquerdo do comandante, da escápula ao ciático. Ao dar pela coisa, mais ou menos meia hora após o ocorrido, correu a buscar alguma atadura. Ao voltar, lá estava José, amparado à gávea. Tocava içar-se ao mastaréu, alcançar precariamente o homem e esfregar o emplastro, improvisado a partir de uma garrafada esquecida no porão. José Gaetano aceitou o cuidado e nada disse. O ferimento se comportou bem. Maden tentou demover o chefe a descer, repousar, porém nada de redenção. O soneto de Antero de Quental virou canção. 

José, nesses dias de isolamento voluntário, virou, revirou uma folha de papel, em muitos pontos desfiada. O marujo ferido passou por várias febres durante a cicatrização. Frio, fome, sede e muita dor. Cada vez que Maden surgia, José Gaetano sentia a presença de um filho e também medo. O braço esquerdo poderia ter sido decepado, esta era a situação. A urgência aplacava suas teimosias, não havia como alcançar e tratar do ferimento sem auxílio. 

 

Há quanto tempo aquela carta viajava no bolso de sua casaca? As palavras diziam a verdade, Alois? O vento trouxe lembrança remota. Duas páginas. Uma contava sobre meninos que chegaram muito cedo a um cadafalso, para assistir ao enforcamento de um inocente na praça, uns rapazitos sentiam amor pela violência. A outra noticiava uma mulher que amou alguém a quem não podia amar e foi amaldiçoada. Ela transformou-se em jumento, a cabeça em fogo, decepada pela alucinação.

Pois que não nos deixam aportar aí, e a cá não me deixam descer para o navio e estamos aqui nesta situação tão difícil; eu não sei se olho para frente, para trás ou para baixo, mas que está estranha esta situação, está me deixando em muito incômodo; mas eis que olho para baixo e as pessoas estão ali – Ah! Querendo meus favores agora; querendo que lhes diga o que estou a enxergar lá no porto distante, qual é a movimentação dos soldados, qual a movimentação do povo no porto, na praia. Ó, eles estão agora querendo que eu aqui do alto utilize minha luneta para lhes servir... por enquanto; que eu não estava servindo era para nada; mas agora já estão querendo que eu novamente capitaneie. Pois, vou lhes dizer... o que eu estou vendo. Mas vou dizer aquilo que eu quero dizer. Vou dizer coisas... que eu estou vendo aqui de dentro... inventar coisas que ... impossíveis de serem vistas... mas que talvez... criem algo muito interessante nesta relação aqui que tenho com estas pessoas que ainda estão aqui comigo no navio... sim... vou utilizar de minha imaginação... e vou dizer aí a todos o que estou a enxergar neste porto. A.D.

Brasil Sudeste. Estuário de coordenadas 23°58'56.02"S 46°17'33.38"OQuarentena. A reduzida tripulação da Sor foi recebida no Porto de Santos, setor de carga sólida, a tiros de fuzil, que espoucavam longe. Uma bandeira na orla, a sinalizar epidemia, impunha distância. Vários navios de médio porte oscilavam no horizonte, em situação análoga. Mais uma prova de bravura, das inúmeras que ainda viriam, era exigida. Maden desceu um bote ao mar, içou bandeira de rendição e enfrentou os legionários da Armada Brasileira, aproximu-se da costa. Sem poder pôr os pés em terra, após contenda e contenção de danos, muito grito para se fazer entender, Maden recuou o bote ao perímetro indicado, sob pena de ser abatido, sem qualquer apoio. 

 

Quinto dia de José em sua morada na gávea. Seu estado era alarmante, perdera de vez o tino. Nem notou que chegavam ao destino e estavam, ainda, à deriva. A casaca verde oliva, encharcada, dava ao comandante aspecto sombrio, cadavérico e ele se recusava a despi-la. Era mesmo a ópera. 

 

Alguns pescadores clandestinos, moradores da região, tomaram ciência da saga através de Maden, que falava-lhes e gesticulava a distância segura. A história ia sendo transmitida como o brinco do telefone sem fio. O grumete aumentou o causo vários pontos em periculosidade, exaltou o heroísmo de seu senhor e o quanto ele estava possesso, precisado de mão fraterna. Não fosse por estes confrades, haveria óbito. Três barcos socorreram a Sor, quase que de imediato, com o alimento e água de que dispunham, algum pão, sal, peixe, limões e laranjas, unguento e um pouco de cachaça, até lenha para fogo. Os pescadores ainda ofereceram pouso, assim que a permissão para aportar fosse concedida. 

 

Ao se dar conta do movimento lá embaixo, José Gaetano entoou, aos brados, a ode de Antero; palavras esparsas, a confirmar a história de loucura de um homem do mar. Alguns versos chegavam inteligíveis, uns improvisados. Que a sabedoria alcance o vosso espirito medieval, berrava o delirante. É domingo, madrugada de vento, um sopro que salva muitas coisas. A barulheira das ondas vivas, estofadas de espuma das duas e quinze, transmite pensamentos transgressores. São chegados os tempos. Desejei desligar as rajadas, posto que soam pungentes nessas horas profundas e fazem medo naquele que cuida de nós. O vento verdade vibra não sou teu, não sou teu, não sou teu, não sou teu, não sou. Estes últimos lamentos iam soando cada vez mais agudos, em outra circunstância provocariam riso. Um balanço da gávea e Maden gemeu, o comandante despencaria daquela lonjura e seria seu fim. 

 

Eu quis descer desta gávea, me deitar, não pude, arengou o marujo, de volta aos graves, dramático. Não sei ao certo, se foi a aragem a maltratar, se a febre, ou se as paredes dos intestinos, às voltas com toxinas, a lhes sair por buracos menores que fios de cabelo, a inundar o organismo de caos. Mais uma vez, José vacilou, como que ébrio, dobrou o tronco sobre o cesto, a escala a puxar novamente a voz para os agudos, agora numa arenga quase feminil, sobre rosas, roseiras, roseirais; o som, esganiçado, consentia vibrar aquele ser patético. E cantava, revoltado por capricho, vai saber, eu puxei-me para a vigília. Achei de hastear bandeira branca e ficar neste desterro. Melhor que rolar para lá e para cá no catre, sem acomodação. Não sei o que dizer, talvez escreva sobre pertencimento ou sobre refugiados. Que palavra preciosa, expatriado, posto para fora do lar. Quem tem um lar? Ah, os filhos de Haruka, a rosa. Onde andará ela? Decerto que no mesmo porto, na mesma calçada de areia. Meu terceiro não estar, soledade tão acentuada que me deixa confuso, eu bastardo e sem liames. Até bebê de proveta precisa de mãe; a voz invadiu o falsete, um fio, e neste momento o marujo começou a chorar, o fundo do poço. Quando estamos desgraçados, precisamos de mãe. Desmamados, mãe. Desmiolados, mãe. Onde o pai? Onde o amante? Os filhos? Enlouqueci. Nossa Senhora das Neves, Senhora-a-Branca, Senhora Achiropita, rogai por nós. Nossa Senhora dos casacos puídos e empapados, rogai por nós. Fiquemos em paz. Ao dizer isso, José caiu de joelhos, emborcou à frente e por pouco não feriu a face na borda do cesto.

 

Fiquemos em paz, o homem ainda recitou, de cara no cordame, a soluçar. Tudo está e passa. O vaso orgânico e seu registo genético passa. Passa. A voz, sumida, ainda chamou Alois Donis. Um superagui? Uma lenda caiçara? Um senhor dos peixes? Das águas? Alois. Nossa Senhora, dos suicidas, rogai por nós.

 

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