Hospital Casaredo 74
O senhor da Nossa Senhora
O homem estava calmo, após mais de cem quedas de joelhos sobre a cama, sem nenhuma luxação ou ferimento. O estado maníaco havia exorbitado em números, que ele costumava limitar a dez saudações físicas, como as contas da primeira série de Ave Marias em um rosário. O leitor deve se lembrar, de que tal gesto de entregar-se, genuflexo, vinha acompanhado de um desabar para frente, de braços abertos. Incluia ainda ficar em pé sobre o colchão. Toda essa manobra era realizada enquanto o senhor invocava as santíssimas, que eram muitas. Na récita daquele dia de surto coletivo, três novos nomes foram conclamados: Nossa Senhora dos Mares, Nossa Senhora dos Mártires, Nossa Senhora Medianeira. A cabeceira do leito havia sido muito bem acolchoada, para evitar desastres expressivos com sua cabeça. O velhinho teve disposição para relaxar e acompanhar o sanfoneiro Gilmar à procissão, onde dançou, cantarolou.
Um trabalho experimental ao tratamento dos pacientes foi instalado pelo enfermeiro Manoel, tabuleiros de jogos para duplas distribuidos em vários nichos, nos jardins. Pedras grandes para gamão, dama, dominó, bloco sudoku, majong, xadrez. Proposta arriscada, com possibilidades de arremesso das peças. Engoli-las ou mordê-las não era possível. Sem incidentes significativos, os jogos ficaram, contaram com alguma adesão.
O senhor da Nossa Senhora e o senhor Omar costumavam ser atraídos pelas mesinhas. Sentavam-se diante do jogo de xadrez e se olhavam, às vezes para o tabuleiro, sem mover as peças. Às vezes, trocavam de lugar e continuavam a se olhar. Depois, perdiam o interesse e dormiam, um diante do outro, até que a enfermeira chefe Maria ou outro viesse e os levasse de volta ao dormitório. Não havia parceria real entre os dois pacientes, eram apenas presenças tangíveis que se confortavam, espelho um do outro. Omar não quis permanecer no jardim, apontou para o outro lado da plantação, onde conversava com meia dúzia de gatos que pareciam escutá-lo. Nesse dia ímpar, de forte magnetismo, movido pelo novo paciente, o francês, o melhor a fazer era recolher Omar, que aceitou o convite em troca de um chocolate. Assim, antes de concluir seu turno, Gilmar devolveu a maioria dos pacientes aos seus leitos, sem a necessidade de fármacos. Quase sempre a copiar as atitudes do senhor Omar, dessa vez o senhor da Nossa Senhora capitulou e teve pemissão para ficar onde estava, diante do tabuleiro. O velhinho parara de brigar com seus fantasmas, fez uma sesta breve e logo se dirigiu à horta, onde aplicava também seu rituais, mas eram pacíficos.
Pequeno tique, o de manusear a palheta imaginária de um instrumento de corda à sua frente, dava-lhe ar infantil. Um saltério[1], que o enfermeiro Gaspare deixou no ateliê, ainda não chamara a atenção. O senhor da Nossa Senhora trauteava uma canção que aprendeu com Gilmar – o acordeão, o acordeão e a sanfona, um diz que é bacana, um diz que é bacana, outro diz que é bom[2]. Ainda havia sol, clima agradável. Atento, até amoroso, o senhor roçou, revirou um trecho de terreno, adubou, semeou chicória. Nem parecia o mesmo alucinado de momentos atrás. Entrou na estufa, onde floresciam arbustos de vários vegetais, lavou muito as mãos. Pôs em uma bacia duas cabeças de alface, vários tomates, pimentões, manjericão, alecrim, cebolas, cebolinhas, um aipo robusto, várias cenouras, nabos, dentre outras miudezas que colhera. Ia entregar a feira à enfermeira Josefine, sua musa, para a confecção do jantar.
O senhor da Nossa Senhora, terminada a arrumação da bacia, lavou outra vez as mãos. Ainda colheu uma flor e a arranjou cuidadosamente entre as leguminosas. A bacia pesava e mesmo assim, sem perder o passo, o velhinho dirigiu-se ao refeitório. Cantava agora o que tem a rosa, tão desfolhada, foi o sereno da madrugada[3]. Ao chegar à porta, bateu os pés no capacho, afugentou a Filó que dormia. Procurou a moça, porém encontrou Madame no lugar, parada diante do armário, abismada. O senhor nunca reparara nela ou nas demais mulheres do Casaredo. Com cuidado, depôs a bacia na pia. Ficou parado, Madame de costas para ele, sentada em sua cadeira, a mover o lápis para a direita e para a esquerda. Todos os movimentos, de ambos, eram lentos, um tanto rígidos. Madame percebeu que não estava só e, conforme foi-se virando, fez com que o homem tão pequenino se sentisse levemente acuado, um desejo feroz de correr. Não pode. Eles se olharam e ficaram assim, eternos. Ainda com mais vagar, o senhor da Nossa Senhora tomou da flor que trouxera e ofertou, trêmulo, a Madame. Ela aceitou. Uma rosa amarela. Manoel assistia à cena da porta do refeitório. Cuidou para não ser notado. Mais uma vez, sentiu um puxão do coração. Não eram ciúmes, mas saudades do que não teve. O senhor da Nossa Senhora interrompeu o olhar para Madame quando sentiu a energia de Manoel. Passou por ele, empedernido e voltou-se, como se medisse forças. Precisou mirar para cima, pois o enfermeiro era uns quarenta centímetros mais alto. Manoel sorriu, deixou o senhor passar, não sem antes murmurar Senhora Santana passou por aqui, com seu cavalinho comendo capim, ao que Nossa Senhora respondeu, furioso, ao ataque marujada, andou mais encurvado, o braço esquerdo estirado, adiante. Manoel riu e deixou-o ir, auxiliu Madame a por a flor em um vaso e separar os ingredientes para o prato do jantar. Beijou-a na testa.
Bacalhau para seis travessas. Seis batatas grandes. Três cenouras. Ervilhas frescas. Pimentão. Cebola. Alho. Cebolinhas. Ovos. Vinagre. Azeite. Alecrim. Sal. Manoel serviu de assistente naquele final de tarde. Moveu as panelas ferventes, escorreu legumes, desfiou o bacalhau. Madame refogou os pimentões, cebolas, alhos. Enquanto aguardavam que os ingredientes esfriassem, limparam a bancada, lavaram a louça. Josefine, quase imperceptível, ocupava-se com a sopa, que ornaria bem com a salada. A montagem das travessas foi trabalho de Madame. Primeiro as batatas, depois as cenouras, o refogado de pimentão, o bacalhau, as cebolas e alhos. Por último as ervilhas, as cebolinhas. O tradicional peixe desenhado com os ovos, para selar. O tempero foi feito com vinagre de arroz, sal, alecrim e azeite, despejado sobre as travessas, que foram para o refrigerador. A flor ficou na bancada, ao lado do pouco que sobrara de ingredientes na bacia, um mimo para Josefine.
Fais dodo
(...) Às vezes como que me espalho pela paisagem e nas coisas, e vivo em cada árvore, no sussurro das vagas, nas nuvens, nos animais que vão e vêm, e nos objetos. [...] Tudo tem sua história, que é também a minha história. — Carl G. Jung, no livro "Memórias, Sonhos, Reflexões: A torre. (Ed. Nova Fronteira. Trad. Dora Ferreira da Silva; 9.ª edição [1963]).
E estava escrito, em uma nota avulsa, pouco nítida, com letra diferente da de Madame. Ontem, à mesa da taberna, entendi o que significa 'ser cancelado'. Foi bom, de toda sorte estar ali, a esquina plena de memórias, muito ai. O amor, o imundo, o perdão, estavam ali, na mesa sem toalha. A luz solar, quase dezessete horas, indicava esperança, para todos naquele momento, para as crianças em especial. Acalantos do mundo continuariam a soar, ao menos por um tempo. Que todos os pequenos fossem protegidos, pelo som, das encrencas dos adultos. As crianças desta era vieram para descobrir novos caminhos de cura. Mais um encontro entre nós. Se não causou desastre, confundiu as frutas da beberagem que dormia dentro dos copos. Liquido amarelo em um, esverdeado noutro. Dois saquinhos de olivas temperadas, desmaiadas em um prato. Alguém tinha pressa, outro apreensão. Um passante fedia tanto que engulhou a morte. Estranhos, mortos vivos em meio a tantos transtornados, a tartamudear o mesmo espaço. Há liberdade até para a loucura. A velha raposa pôs a primeira pata no gelo. No mais, eram andarilhos anónimos e sem rosto. Uma taberna de esquina, Funchal. Sentaram-se os dois e ambos tinham as vestes malhadas pela forja das marés. Dois irmãos, dois estranhos em confraria, final da tarde, sem palavras. Um canto surdo, de amor e morte. A velha raposa iniciou seu trajeto, orelhas empinadas, tateando com cuidado a superfície, atenta a qualquer estalo. Qualquer precipitação, molharia a cauda. Estava quase no final da travessia. Se falhasse, perderia tudo. O sol, peculiar, dava adeus entre nuvens e cravava o pedrelho de pequenos brilhos. Nada que pudessem comungar, os dois. Nem dor, amor, medo. Alegria? Não se enganasse alguém. Era a jornada d’um, a d’outro, separados pelo cantar. O mesmo rio de gelo. Duas barquetas, em paralelo. Os papéis de vender sobre a bancada, o artefato interessava aos meninos pequenos, talvez a seus tutores. O mundo a escorrer pelo rio gelado, cujo nome homenageava vulto local, junto com um bando de gaios escravizados. As vergonhas das histórias. A conclusão da saga por um triz. O encontro daqueles dois homens, brinde da vida. A raiva, cheia de olheiras, vigiava. Por que ela e não a tristeza? Pois, a vida oferece razão, ponteia quando o marujo se obriga a superar naufrágio. Sem raiva, não se caminharia. Nenhum dos dois marujos investiu no precioso toque dos olhos ou qualquer outro projeto tátil. Teriam acertado tudo se se olhassem. Emoções cruas podem envenenar. Alguém chamou, de passagem, sem o aconchegante olá, como vais, há tempos. Os tentames de retomar de onde pararam um dia. O que pensas que estais a fazer, um perguntou. Mais raiva. E sabe por que mais raiva? Porque a consciência estava viva, e havia andado e já não era mais tempo de calmaria, menos de espreita. A raposa era velha. A decisão já fora tomada, os ventos tempestuais expulsaram, cancelaram, varreram tudo, pouco ficou para acervo, a não ser a história da voz. Nesse ponto do encontro, sentados os dois à mesa sem toalha, a tristeza encostou, sangrou, profundo. A Sor estava longe, no porto. Não havia como evadir-se e não seria justo com alguém. A melodia do Fais dodo[4] soava no solário imaterial. Vem, meu irmão Cola, vem que te faço dormir. Maman está lá em cima, a bater o bolo, papá cá em baixo, e te trará chocolate. Bem que se poderia criar a maria madeira[5], a fiar seu algodão, sentadinha na sua cadeira e morasse ali o capitão. Pois, ele não morava, nem a Maria, nem o vilão.
Da terceira linha do texto para diante era novamente a letra de Madame que seguia a dizer, havia senhoras cansadas, a andar daqui para ali, a ninar, juntar palha, sementes, esfregar, suster sobre a cabeça. Havia o barqueiro de Mira, canção mui triste. José Gaetano sangrava sobre a mesa sem toalha, o gosto ácido do maracujá a lhe magoar a gastrite, como que alvejada. Tudo evoluiu naquela tarde noite, com rapidez e reticências, a sobrar, na hora de adormecer, o sonho com uma arma de fogo antiga, apontada para a direita. Ainda valeria a pena falar do encontro com um passante que impediu, sem o saber, um suicídio. Depois.
O extremo, o embargo, alarmantes companhias para alguém que se julga deixado para trás. É criar valas íntimas, que o grisalho dos cabelos não pode acalmar. Decepção, cheiro forte de fracasso. Tudo ameaçava o amor infantil resistente, que dói feito úlcera na velhice. A criança que José fora não deixou saudade. Quem lhe batia o martelo naquele instante era a consciência da derrota. Um homem velho deveria pensar nisso dos progressos, nos seus começos, quando todos os fios ainda desenham bem a barba. Tudo é feito dentro de uma lógica impressionante. Há o tempo do ninho amniótico, o tempo do tunel, o tempo do aleitamento, a papa, as mãos, os pés e o irmão a ninar. O pai dança o vira, aumenta a potência das lutas que virão. As amizades, a fraternidade, sororidade, o prazer de dar e receber, tudo vai somando lições de saúde.Então vem as trocas obrigatoriamente igualitárias de afeto. Em que mundo? José não estivera no lugar certo, hora certa. Precisava resignar-se. Morreu um pouco, diante do copo de suco de maracujá. Quem sabe, o narrador geral desta saga exponha melhor os fatos, conte que personagens se encontraram neste fim de tarde para trabalhar e era só. Talvez informe que a vida encomprida as resposabilidades, exige posicionamento, coragem, assunção.
A órbita, carregada de estrelas, girava sem alterações. Quando é que se perde a intuição? Quando o umbigo cicatriza? O arrimo para o coração vem de onde, a determinação da ordem, os limites, de quem? Quem avisa que, se um único irmão ficar para trás, ninguém evoluiu? E os sentimentos profundos, de pertencimento à Humanidade, à Vida, onde se lhe os colhem? E quando se perdem as conexões com o Universo? O desengano chegava a causar prazer, cantava eu te avisei, eu te avisei José. O marujo sabe, no curto raciocínio que possui, onde o começo é promissor, onde é devastador. O comandante considerou seu começo em terra simples. A velhice lhe esbofeteou com mais perguntas: o que fizeste da tua situação? Ficaste a perguntar, a jornada inteira, o que vai ser de mim? O que esperavas? O que é de ti é o que fizeste por ti? As mesas sem toalha em Funchal, vazias, o espaço ictérico onde se encontraram os dois naquela tarde, batia-lhe na cara. E ouviu-se o acalanto. Enfim, a hora de partir se avizinhou. Dores no corpo eram até bonitas, a alma, um tonel. Uma tristeza de dar dó. Olhou o outro e disse já vou indo, meu bem, vou indo. Por dentro, cantava lá na terra ninguém dança, dizem que faz mal ao coração[6].
O que sinto, escreveu Madame, para concluir, é que o narrador geral pregou uma série de postites no caderno de anotações e não desenvolveu os acontecimentos que os provocaram, como se esvaziada a importância deles. A senhora guardou o lápis, olhou a tela, olhou o enfermeiro da vez e pediu para ir-se deitar.
[1] Instrumento medieval de cordas pinçadas ou tocadas com plectro, em vários formatos. O referido neste texto era em forma de trapézio, para tanger com plectro.
[2] O acordeão e a sanfona, Morais Moreira.
[3] Canto tradicional brasileiro
[4] Canção de ninar francesa
[5] Canção e ninar do imaginário brasileiro
[6] Canção de Luísa Sobral
Comentários
Postar um comentário