Hospital Casaredo 73




Várias histórias entrelaçadas


Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma.  Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva”.  Perto do coração selvagem. Clarice Lispector

 

Noite fechada, a enfermaria dormia. Madame despertou e surpreendeu-se, sentada em sua cadeira comadre. Não se lembrava quando ou há quanto tempo estava ali. Logo um dos atendentes viria para os socorros, os banhos com chuveiro. Tivera outro surto? Não tinha ideia. A senhora era muito grata a todos, por conterem tantos incêndios. Procurou não se incomodar com os próprios cheiros ou possíveis coceiras. Ficou mais ou menos imóvel, respiração curta. Esperou. O que ia em sua mente, talvez memórias de cais. Tirou o lápis do bolso, firmou o caderno na borda da cama, não escreveu de pronto. Haviam arranjado para ela um par de óculos. O homem bom que veio visitar olhara o fundo de sua íris, receitara bifocais, que ajudariam a dama – ele a chamou assim -, a aproveitar o entorno e escrever sem sentir dores de cabeça. Um arco pronunciado nas hastes da armação permitia que os óculos não escorregassem, quase não pesavam. Às vezes, a enfermeira Catarina passava um unguento para não irritar a pele do nariz ou atrás das orelhas. Madame esquecera deles quando adormeceu e talvez a boa Joana os tivesse dobrado e colocado sobre o armarinho, do outro lado da cama. O caderno, que agora posava diante dos olhos nus, foi deixado de lado. 

 

Madame lembrou-se: fora repreendida pela cabelos de fogo, antes de dormir. Teve de escutar, era mimada, birrenta, petulante, voluntariosa e outros adjetivos que escapavam. Respondeu às correções a subir e descer os ombros com biquinho, o que deixou Matilde ainda mais exasperada, vontade de lhe dar uns bons tabefes. Um vago estado, que Madame não reconheceu de pronto, acendeu sua pele no momento, avermelhou-a. Revidar. Um desejo maroto de revidar, maior do que jogar coisas. Uma urticária forte se instalou, talvez por isso estivesse ali no ambulatório. Quando Matilde saiu, vencida, Manoel chegou, disso se lembrava. Sorriu para ela e comentou sobre o estado da colega, que Madame fosse boazinha. Pediu mais, compaixão. Isso bastou para a enternecer. Madame recordou alguém, alma importante, com quem não resolvera assunto sério. O olhar para Manoel foi significativo. Dali a pouco ele voltou, de braço com a enfermeira. Madame tocou-lhe o pulso e Matilde, contrariando todas as precauções, a beijou nos lábios. Depois disso, a memória de Madame apagou.

 

Fora uma surpresa dar com o espelho de parede no corredor de entrada do Hospital Casaredo. Madame mirou, encantada, aquela figura que não relacionou consigo e que se movia, desengonçada. Há muito, Madame perdera o contato de sua imagem. Agiu, dessa forma como fazem os gatos, arrepiou-se diante da realidade, para ela ficcional. Explorou seus óculos exaustivamente, tirou e os recolocou com uma lentidão patética, talvez cem vezes. Em dado momento, deu a impressão de encontrar a si, talvez os olhos a denunciassem. Mais um tempo de jogo entre mãos e face, fez profundo estudo de suas expressões. Passaram-se quinze dias dessa maneira, em visitação espontânea ao local. Braços e mãos, depois o colo. Por fim, a cadeira que a suportava, suas pernas e pés. Poderia passar o dia todo ali, a buscar ângulos novos para sua figura. Apesar de enrijecida, trêmula, criou as mais bizarras poses. Havia o respeito de quem passava, porém, era preciso se conter, para não gargalhar. Em geral, compadecido, o pessoal do hospital a deixava em paz. Vária vez foi necessário demove-la com todo carinho a sentar-se, a vestir-se. Até se pensou em mudar o espelho de lugar. Ali era o hospital colônia, ou hospital escola. Os visitantes aprenderiam, com qualquer situação que presenciassem, os pacientes lidavam com suas lacunas. O espelho ficou. Matilde contornava o lugar, para não se aborrecer. Madame, ultimamente, era a mãe de que a enfermeira se envergonhava, por razão oceânica. O músico Te Dan teve a ideia de tocar seu pipa no corredor e ir-se afastando paulatinamente até o ambulatório. Acreditava, assim, poder atrair a atenção de Madame para longe daquele devaneio. Mais alguns dias, Te Dan a mudar o palco para novos pontos estratégicos, a predileção pela parreira superou aquela mania. 

 

Há vários registos escritos sobre estes encontros entre Madame e a figura nua que se movia no espelho. Mesmo soando como monólogos delirantes, o enfermeiro Gaspare compôs um capitulo com trechos deles. 

 

Quer saber, Deolinda, minha irmã? Não sei nada sobre bebês. Creio que segredos são guardados a sete chaves sobre eles. Eles são independentes ao sorverem o primeiro ar, que ninguém se engane. Então, tudo dói. Respirar, sugar, engolir, abrir os olhos, reconhecer o som, o toque. Sentir frio, calor. Dormir, um sacrilégio. Urinar, evacuar, como dói. Vomitar dói. Refluxos, eu ainda os trago comigo, sei o quanto é incômodo. Gases, doem muito. Algumas crianças tem espasmos musculares, como se fora epileptoides, em graus que devem apavorar as mães. Seus sons vocais dão medo. As febres intermitentes, as convulsões, de arrepiar. As icterícias, aquela fase das crianças amarelas. As apneias. A moleira aberta. As ansiedades de separação. Os apegos. O amor que não aprendem, posto que as mães não o tem para dar. Aí entram em cena as gotinhas homeopáticas, os chás nas chuquinhas. Não conheci os enxovaizinhos, as mantas, sapatinhos, o berço. Ou o tal amor de mãe. O amor porneia da criança, sei dele de me dizerem. O louco pediatra que receitou benzodiazepina, nem sei o que dizer a respeito. Conheço o nome luminal desde menina. Por que eu não ingeri álcool, e bem cedo, até cair? É uma pergunta que eu me faço, Deó. Eu escolhi o vício - o caminho de amar o não amável. E não amei aquele bebezinho, nem lhe dei de mamar. Vamos juntas ao ambulatório, olhar a Antária, Deó? Ah, você não pode sair? Bem, fiquemos aqui, mas um vento frio sopra do mar, vai te resfriar, vista a camisola. Para que ficar ai, nua, Déo?  

 

Deó, sinto falta do José nas noites em que não durmo, e são quase todas. O José era bom com histórias. Contou que foi professor na escola náutica. Ensinava a fazer nós. Ali encontrou o Donis, um jovem aprendiz. Quem sabe, se não gostaria de um filho, aquele biltre. O rapaz sentava patente e lavava o convés. Rápido, já pajem, Donis aprendeu a coser rede. Era lindo, fluido, qual hidrargírio, era assim que José o descrevia, todo aparvalhado, o velho paneleiro. O caráter do rapaz era pura ousadia, algazarra eficiente e sã, pouco afeito a disciplinas. O mastaréu parecia pertencer ao moço. Nessas dissertações, os olhos de José mareavam, Deó, eu tinha pena e ciúme. As velas entendiam as insinuantes manobras do futuro capitão e se abriam, matreiras, serafim das águas. Riso de prata o galante desfilava, cortesia de gaulês. O que cantava, o Donis, era fausto. Sua voz ia longe, a encher o mar, o dia, a noite, o coração da marujada. Iam lado a lado os dois, a caminhar para o alojamento, Deó, aluno e professor, a trocar luz e sombra. 

 

Uma noite, San Valentin, cearam juntos em uma bodega a beira mar, sopa, vinho e pão. Creio que foi aquela a pedra laranja do desejo de amar para José, o porneia, de que ele não se desvencilhou. Nem sei. Amor de pai é que não era. Noite especial aquela, de alguma forma. A ideação perfeita do par romântico, em nada erotizado. 

 

José nunca me daria tal pedra, Deó. Não digo isso com mágoa, apenas dói. Tempo passou, viajor, o Donis patenteou-se e seguiu seu caminho. Capitão-Mor. Parecia lógica a perfídia, José caído de ais, apegado até os ossos. Doeu muito, o comandante não pode mais erguer-se.  Apostou tudo sobre o caixote, virou e revirou o Taro de Marselha, queria casar-se e era sapo, cabra montês, lagarto do deserto. José era péssimo apostador. Como faria para explicar-se, entender-se em tal estado, como gerir um bando de amotinados? Escreveu cartinhas, humilhou-se, ah, as poesias pueris, prata velha em caderno seu, cruzes e mais cruzes como cabeçário. O gasto de energia nessa experiência moveria transatlânticos. 

 

É bom falar dessas coisas consigo, Deó, sinto saudade. Eu pensei em lhe escrever uma cartinha nos moldes de Rui Paz de Ribela. Rosa, grand’amor. As velas formosas a valsar rosas, algum verso assim. Os poetas, boa companhia, sonhavam-lhe a volta, Alois, em sua casaca púrpura. A madrugada, quieta, banhada de cruzeiros, escutava-me a chorar. Xicarinhas bonitinhas que xicr‘inha é vã, caldo de trigo e legumes picadinhos e cebola e alho e pão. Alho poró e cominho, alimento delicado em noite de fartura. A manhã por nascer falava Cervantes, fugas e prisões, timoneiro e movimento, a Barragem da Canora e coração. O meu peito, inquieto, o broto da rosa, recusava-se a dormir. Eu segurei a mão onírica, imaginei a voz, a fala, o agudo, o fado. Uma pitada de antídoto, cipó mil-homens, maleitas, trilhos e incoerências do fígado. Uma ferrovia largada perto do mar. A estação ferroviária do Pinhão. O Douro. E, enfim, eu lhe escrevi esta cartinha, Deó. Rosa das rosas, do sim. Tudo é impermanência, minha irmã morta. Se o amor tem sete degraus, estacionadas estamos, antes do primeiro. Ainda assim escrevi-lhe uma rosa, um roso, rosum, um neno, uma glosa, um ai. Que sortes. Adeus. 

 

Em outro trecho, Madame acrescentou novos personagens. Gaspare deu passagem a eles, manteve o prolixo da narrativa, como orientara a senhora Chang. 

 

Déo, nossa Antária resolveu se calar, a Antária mãe, a Antária doce mãe. Eles a mudaram para o ambulatório, precisa de cuidados adicionais. Cansou-se, suponho, de presenciar as farras da Esperança. Lamentou a partida de Rasguito, como todos nós. Esqueceu-se de mim. Talvez sinta saudades do medonho Silvério, mais ainda do menino. Antes, ela me via, sorria, alisava. Agora, olha o teto, atabalhoada. José costumava argumentar, Deó, que ao invés de se manter uma imagem pessoal defensiva - que logo se torna obsoleta -, era melhor desfilar  trinta e cinco delas. Todas se parecem, nenhuma é. 

 

José adorou aquela ‘mulherada’ que lhe acompanhava, em meio à calmaria, garantia para si algum festim. Vestiu a todas, despiu-as também, falou de leques, água de cheiro, pérolas, absinto, ópio e leviandades; de parto, cólicas, filhos, perda, separação, novo apego; assunção e homens, de vários tons. Cantou ópera com elas. Expos teorias, da lide com o amor erótico que não nascera. Tocou santur para elas, belas cantigas com nomes de flor. Como era bonito escutar aquele homem a cantar ‘sonhar durante o fado’.[1] Achincalhavam, juntos, todas as rivais, riam às gargalhadas. Viviam sororidade ideal. 

 

Enquanto desfrutava da companhia das mulheres nuvem, Deó, e eram as raparigas alegres de marré de si, as ranzinzas, coquetes, pudicas, mexeriqueiras, aldeãs, José deixava os cavalheiros ao largo. Os fantasmas acompanhavam aquele delírio, sem acreditar.  Só o Donis é que lhe batia à janela, quase sempre nas madrugadas insones. 

 

Uma vez, em que cozia pães ázimos com restos de farinha, calhou a José lembrar de um tal Iberê, o caboclo das canoas de ipê. Hoje o cunversedu si baseia em refleti sobre us deseju di cunversá...  José sorriu, a maneira intensa de falar desse índio construtor, uma espécie de “Sexta-Feira” dos mares do Brasil. José se apegou a ele feito irmão, como quem gosta de manga. Vez por outra, o comandante se lembrava do homem, desses mestiços de tamoio, sábios do povo, que usam o bom senso e tem a ética em alto grau. Bom conversar com ele, também pescador de alto mar, excelente carpinteiro, animava boas tertúlias. A cachaça corria à vontade e na tarde de polir madeirame, foi um perder-se em historietas de caserna. Iberê ficou em terra, para nunca mais. Suas últimas palavras, alcoólicas, segredadas a meia voz ‘to ficanu purque careço di cunversá cum minha ex muié’.  Iberê, de um jeito torto, era elo humano importante na jornada do comandante. Com ele foi possível falar de viagens, de peixe-espada. Ao contar a história de Peri, cheia de selva, de o que fazer sozinho em uma ilha, mal sabia o caboclo que ajudava ao comandante a enfrentar a dor da calmaria. Iberê alertara José sobre falar com todos abertamente, sem disfarce, como isso era perigoso no meio da marujada. O comandante, não sabemos se simplório ou verdadeiramente amável, suspeitava sobre a maledicência que corria pelas suas costas no cais, o reforço das expressões que lhe impingiam encruado, recalcado, até cínico. José era fácil com a fala, atendia a todos, escutava muito, gostava mesmo de ‘proseá’. Antes do embarque, Iberê havia alertado para outro aspecto comum ao comportamento do marujo: apertar as mãos, forte e demorado. ‘Pois o sinhor trati di reavaliar esses proceder, ói qui quem si aproxima, muita veis qué suga o seu sangue, a sua lúis; num to dizenu pra num ser camarada, mas pra acurar sua oiada nos humanu, eis tem fomi, di sangue’. 

 

O tempo e a localização já não faziam sentido na história, mais de trinta dias em mar aberto, agora pura visagem. Por qualquer motivo, o comandante José Gaetano se lembrou agora da ilha de Santorini. A missão era entregar azeitonas lá, licor de groselha preta, cefalópodes vindos de Oman. Subiu a bordo uma mulher. Dama em barco, ai, tempestade garantida. Os marujos, ao mesmo tempo em que se benziam e torciam nariz, deixavam suas cabeças a deriva, sonhando lençóis de seda. A moça, contudo, era das maduras, colo farto, buço forte, elegância disfarçada pela enorme barriga. Era uma das moiras, trajava um vestido saco, um avental encardido e um lenço de florinhas atado ao pescoço. Cheirava a capim fresco. Cabelo louro ralo, tratado a azeite e rena, solto e lambido. Sua voz só foi ouvida quando entravam em Milos. O comandante escondera-se na cabine e dedilhava o santur sem cantar. A mulher parou embaixo da escotilha, enfeitiçada pelo murmúrio do instrumento, que deixava descobrir as ondas do mar de Vigo. Num vagar de rasgar o peito, ela entoou a canção antiga[2]. Quando José deu pela coisa, a criança já estava grudada ao peito da dona. A mulher cantante deu à luz sozinha, sem um pio. 

 

Deó, sei que não gostas de ler, porém te conto mesmo assim. A escrita de José Gaetano o transtornava. Horas passavam, ele disciplinadamente sentado, o papel branco, feito moça tísica, sobre a bancada da cabine. A caveira Rafaele a rir dele, enquanto a fumaça do charuto ia rareando. O gato, virado em fumaça, ia dormir no convés. José tentou: a emoção me pegou na volta daquele parto, enquanto eu olhava as bitolas da estrada. A emoção era uma ponta de estrela a traspassar, incômoda, o compasso da minha oração nevoenta. Eu acalantava a criança nascida e o sorriso menino espraiava meus arquivos cansados. Creio ter perdido toda sensibilidade táctil ali, com aquele ser enrolado na mantilha. Talvez eu pudesse dormir agora, talvez não. Um anjo sorria no tampo do santur e ofertava um aceno acalantado. A ponta da estrela tratou de me ferroar a coronária e eu, que só queria rezar e esquecer, sangrei. Minha imaginação voou ao porto de Calcutá, a procura de abrigo. O lugar se tornara um dos circuitos mais aprazíveis das minhas rotas comerciais. Eu apreciava sorver os odores da cidade, a dicotomia entre pobreza e ostentação, as diferenças perversas entre castas. Gostava de observar o movimento, para compreender, aos poucos, o plano do Universo com os homens. Muita vez, quis recolher  viúvas do Ganges à Sor. A necessidade do mundo de forjar colaboradores. As cores das vestimentas, o idioma melodioso do país, a confusão de elefantes, bicicletas, automóveis e gente, gente, gente, gente, como era possível tanta gente. 

 

Deó, tem paciência, que já termino de contar e vamos cear. Certa manhã, o ceticismo de José Gaetano deu lugar a um sentimento inominável. Um tanto de paz, clareza, coerência eclodiu em sua mente. A manhã cheirava mal às margens do grande rio, porém a compaixão visitou seu íntimo como floradas cíclicas. José avistou-se com um monge. Homem de pequena estatura, magérrimo, o semblante mais plácido que o comandante já vira. Andarilhava por Délhi, Calcutá. Alguns passantes, atendendo às perguntas de José, comentaram que o religioso atravessou o Paquistão e tornou ao Himalaia a voar com os grous. Ao que tudo indicava, o senhor fizera voto de silêncio. Dele, apenas se ouviam mantras, que entoava a cada hora cheia. Voz profunda, plena de harmônicos, adentrava as células do corpo, primeiro como adstringente. Depois, o homem ampliava e desacelerava a respiração até tirar, alguns centímetros do chão, o passante que estivesse predisposto. Janela incorpórea de levitação, criada pelo cantar. A ressonância difônica daquela voz induzia a estados de encanto, espanto, admiração, desatava o temor e finalmente mergulhava o neófito em caldo oceânico, fluidificando memórias truncadas, balsamizando cicatrizes, diluindo monstros e daimons.  

 

O maior inimigo que um humano pode cultivar, Deó, é ele mesmo. O olhar do lama transformava tudo em beleza. Ele caminhava ao longo do Ganges e ali entoava OM SO HUM. Talvez José estivesse confuso com a sintonia que estabeleceram. Seus estudos musicais elementares o levavam naturalmente a construir combinações melódicas a partir dos mantras. O ofício de marinheiro fizera dele um estuário de canções. O encontro com o lama abriu espaços mentais que o corsário desconhecia. José seguiu o monge por alguns quilômetros, achou que ficaria ligado a ele para sempre. Esta peregrinação ensinou-lhe a respeitar o silêncio, a memorizar sequências dos sinos de vento, a controlar a respiração. 

 

Por que conto essas histórias a ti, Deó? A vida foi-nos calmaria atrás de calmaria, querida irmã. Quando me encontrei contigo, Deó? Quando me perdi? Quando foi que tu morreste? E agora? O que vamos fazer? Eu não me lembro se esse encontro se deu na Roseira ou na Sor, mas não faz mal Deó, é só conversa de espelho. 

Trigésimo quinto dia arrastando-se pelas águas, irmã. A Sor vagava, próximo ao porto de Santos, Brasil. Nenhum vento que impulsionasse a embarcação. A noite, quase dócil, convidou José ao convés. Ao olhar o Cruzeiro do Sul, o homem conectou-se com os olhos do monge, com a mulher do lenço florido, com seu filhinho. José abriu a própria voz. OM SO HUM. Oonda doo maaaaare dee Viiiigoo, te vistees meeeeeeu amiiiiigoo. Na manhã do trigésimo sexto dia, José falou com os homens que ficaram na Sor pela primeira vez. Perguntou-lhes sobre o que iriam fazer naquele instante. Os grumetes, desajeitados, arrolaram minuciosamente a situação. O tonel de água suportaria mais três dias. Laranjas, as havia para dois. Encontraram também alguns limões e um saco de farinha, que produziria pão para quatro dias. Algumas cebolas já brotadas, um pouco de sal, cravo da índia, canela suficiente para alguns chás. Lentilha para três dias. Uma riqueza intangível. Por esse tempo, estariam alimentados se comessem parcimoniosamente. José perguntou qualquer outra coisa e um deles disse cosemos nós de arrimo, para remendo dos velames; também esculpimos em madeira, peixes, para distração; cozemos para as refeições. Desculpas pedimos, comemos as porções que tu refugas. Lavamos o convés com água do mar. Carteamos. Jogamos dados, mas não a dinheiro, mesmo porque não o temos.  Oramos, estudamos a palavra do Senhor, o que guardamos de memória. Contamo-nos a história do zen do guerreiro. O Ezo, às vezes, sobe ao mastaréu, comandante. Algum sinal de terra? Horizontes coesos. Estás vendo, o fio negro lá longe, Deó?

 

Senhor José Gaetano, pode nos falar das estrelas? Queremos dizer, onde estamos? Resta algum futuro para nós, apartou o grumete Maden. Sempre, respondeu José. Algo maior nos está querendo ensinar. O que? O dia de morrer? Bem, isso vai acontecer, é da vida, o corsário atalhou. Sou um samurai, comandante, nasci para o sabre, cortou o pajem Ezo. Talvez esta afirmação precise de um novo propósito, rapaz. Não entendo, comandante. Quero dizer que podemos mudar nossos destinos. O de samurai é morrer a lutar. Onde está escrito, rapaz, que precisa ser assim? São as leis. Meu bisavô foi samurai. Meu avô depois. Mais tarde meu pai. E hoje você é pajem, argumentou José. O rapaz jogou-se ao chão, encolhido, desesperado. Ezo fugira da última luta, por isso estava exilado, de própria vontade, na Sor. 

 

Eu fugi da última luta, Deó, sinto vergonha, sinto dor. Madame chorou, refez-se e seguiu a contar.

 

Sou degredado, senhor, contou Maden. Apaixonei-me pela filha do oleiro.  Fui pela família dela rejeitado e passei a cometer pequenos delitos, até que a armada me jogou no porão da galé. O comandante aquiesceu. Há algo de bom em nós, perguntou o marujo japonês. Maden, simples, pôs sua opinião: tenho pensado nessa solução que os homens deram à cruz. Como ela possui energia. O comandante redarguiu, intensa energia, que devasta e constrói tudo, reergue alguns, é certo. Maden atalhou, respeitável, o homem mais amado do mundo perdura, é propagandeado nos mais distantes quadrantes. Resta saber que tipo de fagulha somos nós, se estamos com Ele, postados aqui para iluminar as jornadas, em equipe, a carregar cruzes, fados. Orientais precisam se beneficiar do Ocidente e vice e versa, não fomos juntados ao acaso. Acredito que somos como palitos de fósforo, choramingou o japonês desvalido, condenados a uma única combustão e ao tradicional abandono do palito no lixo.  Então é melhor pensar outro destino, sorriu José. Por que pensar nos homens como bruxas, das pequenas tolices? Pense em bucaneiros e já estará de boas viagens. Por que as ‘belas adormecidas’ ficam inertes por longos períodos, após serem enfeitiçadas, brincou o comandante. ‘Vitimadas’ paralisadas, enclausuradas em masmorras, os cabelos – e as unhas, ninguém conta isso -, a crescerem indefinidamente? Poderiam aprender a coser, manejar a roca, tocar virginals, fazer biscoitos, ler os clássicos, pintar, cantar modinhas, manejar o florete, limpar pistolas. E discorreram, madrugada afora, José e os marujos, sobre intrigas, outros chefes de fragata barrigudos, vários portos extraordinários, leitos baratos de cais, poemas de navegar, e nada entenderem os três, bêbados de calmaria e rum – a garrafa veio dar ao convés, por magia. 

 

Madrugada fria, Deó, conversa fiada e goles de rum. Era o que havia para dentro daquele espelho. Fomos afetadas pelo sopro de vento algum. Deó trocava o peso de uma perna a outra e sorvia a fumaça de seu cachimbo. Olhava Madame com benemerência e espanto. Agora era desanuviar essa filosofia náutica, ou ciência de cais, madeiro e confiança e tratar de conviver com a incerteza do clima, com a espera enervante da velhice, das que estouvam os humores. Fato é que não havia vento naquela coordenada no Atlântico Sul, irmã. As correntes pareciam adormecidas.  Os horizontes claros  apartavam tempestade. O fundo dos oceanos continuava a absorver energia. Os três homens ficaram em silêncio por algum tempo. Dormiram, apoiados no mastro. O tombadilho fervia, cheirava a amônia, a invernos rigorosos, a chuvas torrenciais, secas e ondas de calor – aparência de verdade sob o lenço da cabeça. Os cabelos grisalhos de José Gaetano escorriam. Deó, tenho fome.

 

O enfermeiro Manoel, para tirar Madame do torpor em que jazia, levou-a à gruta. Algo, naquele gesto de a embalar ao colo, devolvia ao rapaz todo ânimo de que precisava para seguir seu caminho. Um vocacionado com desejos de casar, eis o nosso Manoel. Aos quarenta anos, mesmo com mais períodos de descanso para procurar seu par, perdera a esperança de encontrar alguém. Maria estava perto, ele temia feri-la. Uma confusão de compromissos ia dentro dele. No azul esverdeado da gruta, que hoje recendia a enxofre, a paz de servir era suficiente. Tinha a companhia daquela avozinha de quem tanto gostava. Sonhou Maria naquele lugar. Bem vindos à Zona de Convergência. Equador. Foi o que exclamou Madame, com voz firme, que assombrou Manoel. Ela continuou a declamar, olhos esbugalhados; o japonês contou ao comandante, naquelas lonjuras do mar, a estória de um mestre zen e seu aprendiz. O garoto perguntou como era, para o mestre, aprimorar-se, evoluir. O mestre respondeu que é preciso ser vigilante com as pequenas coisas do dia. Alguém sábio como o senhor, redarguiu o aprendiz, precisa cuidar do comer, da forma como se veste, do quanto dorme? Só isso? É preciso lavar, passar, escovar, varrer, devolveu o mestre. Ao trocar as ceroulas, ao cearmos, ao sonharmos, transformamo-nos mais do que é esperado. Pois, se fazemos isso todo dia, o rapaz insistiu? Observar os passos simples, todos os dias, respirar, focar o olhar, escutar, tocar. É assim que nos achamos, nos superamos. É assim que aceitamos que tudo muda. José, compassivo, ia dizer ao oriental que aplicasse o martelo a si, mas percebeu que só ia ferir, ainda mais, a pretensão do garoto. Nesse ponto, Madame se calou, ante a estupefação de Manoel. Ficaram mais um pouco assim e então Manoel pediu à senhora que lhe contasse a história desde o começo. Dessa forma, ambos passaram a ficar longos períodos juntos, ao longo da praia. Às vezes, Manoel a acomodava em uma cadeira que adaptara na bicicleta. Ela levava ao colo uma cesta com o almoço e o dia ganhava outras dimensões. Ao dizer as palavras dos cadernos ao enfermeiro, fazia delas um conforto a mais, extrapolava a dureza dessa jornada que poderia ter-se arruinado, não fora a aldrava da Assistência. 

Chegou o dia de Madame voltar ao ponto da narrativa em que José viu as kataná do grumete japonês cruzadas sobre um aparador na cabine. O menino as deu ao corsário. Tão balalão, cabeça de cão. Orelha de gato não tem coração. Tão balalão, cabeça de cão, cozida assada no meu caldeirão.[3] A melodia não ia embora da mente. José demorou-se no mirar das espadas. Mesmo quando desviava o olhar para a escotilha, lá estavam elas. Tão balalão, cabeça de cão. Orelha de gato não tem coração. Tão balalão, cabeça de cão, cozida assada no meu caldeirão. Lá no horizonte, estavam as mudanças. Na bancada, o branco da folha. José sentou-se, ficou um tempo a girar a pena no ar e então rabiscou sonhos desgastados, que desteceria quando a calmaria terminasse. E eles são meus, cantarolou, o único sopro que me vale continuar. Tão balalão, cabeça de cão. Sentiu-se envaidecido por algo, rompeu a folha do livro e a lançou a um cesto. E sou eu, farol alcançadoem horizonte tardio, para a mim consolar. Orelha de gato não tem coração. A bravata deixou José atarantado e, ao mesmo tempo, assentou bem.  O homem deixou o verso por escrever. Madame demorou os olhos nos olhos de Manoel. A jornada não dura para sempre, querido Manoel. Quanto tempo mais você levará para dizer a Maria o que quer? E mergulhou em mais um de seus torpores. 

Deó, não é fácil a velhice, queremos parar, foi-se lamuriando Madame através de seu depoimento. Que sorte a tua, tão nua e gelada que não sente. Eu não vi o teu corpo que desceu à cova. Eu me recusei a tudo. Perdeu-se o sentido. Andar parecia seguro. Quanto andarilhei, por Ester da Babilônia. As pessoas fugiam de mim, espavoridas. Comecei a uivar, sempre que a lua aparecia. Primeiro era com gosto, depois, passei a ter medo de mim. Sempre estremeço ao som dos velames a descer a meio pau. Sempre tropeço no descompasso, no contra, na descida arbitrária do mastaréu, nas brumas, nas chuvas. Ah, quantas canções mais, Deó? Quantas Grândola[4] haverei de recitar, quantas praças de guerra, quantas faluas, quantos homens sumidos, quantas mulheres sem ninguém, sem vintém? E das crianças, quem falará? José respirava, sôfrego, entre os meus seios, Deó. Como era bom. O branco da folha, rabiscado, ria-se dele e cantava Bam-ba-la-lão, senhor capitão,  espada na cinta e ginete na mão.  Lua, luar toma lá teu andar.  Leva esta criança e ajuda a criar. Em terra de mouro, morreu seu irmão, e foi enterrado na cruz do patrão.  Bam-ba-la-lão senhor capitão, orelha de porco a comer com feijão.  Bam-ba-la-lão senhor capitão  Espada na cinta e ginete na mão*Ah Deó, eu sinto saudade. E ele, a chorar pelo tal do Alois. Tac tac tac tac tac, o som da pisada de José no corredor. Ai, Deó, como dói. O salto percutia aquele madeiro molenga, ecoava a hospedaria inteira. Eu, na espreita. O casaco, puído nos punhos e fino nos cotovelos, mal guardava o vento frio que se infiltrava malha adentro. Lá ia eu a coser o que era possível, trocar o forro. Tac tac tac tac tac tac. O olhar dele refletia alguma falta resignada. A sua mão direita segurava junto ao peito magro e de ossos marcados um caderno esbeiçado. De entre as páginas pendiam desenhos, que balançavam ao ritmo do tac tac tac tac tac tac tac.  Os lábios  murmuravam ondas do mar de Vigo, te vistes meu amigo. Tac tac tac tac tac tac tac tac. Haveria de andar toda noite o coitado. Para onde e lugar nenhum.  Tac tac tac. Estacou um instante, ajeitou a gola do casaco e tornou a caminhar, uma lâmpada verde a brilhar da fechadura. Em alguma janela vizinha, uma espineta dedilhava lamentoso noturno chopiniano, trôpego, porém com sentido. Tac tac tac. Eu a espreitar. Sob a janela da espineta havia razão para tomar algum fôlego. 

Maria veio buscar Madame para o banho. A senhora dormira muito, não era seu hábito. Um pouco a revelia, a velhinha aceitou ir para a cadeira. Havia chorado. Tinha a camisola úmida. O banho morno, o neno e talvez um pouco de leite, aveia. Por razão que lhe escapou, Maria, ao empurrar a cadeira, cantarolou Tão balalão, cabeça de cão. A senhora tombou para o lado. Foi parar no ambulatório. 

«É urgente o amor. É urgente um barco no mar. É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.» Eugénio de Andrade 

 

Entre os dias de enfermaria e a melhora de Madame, vieram duas cartas com o timbre da Desembargadora Sezna. Todas as mesuras rezadas, a desembargadora informava ao sábio Wong Bohai que finalmente haviam legalizado os papéis da Hospedaria Roseira em Lisboa. A estalagem estava de volta ao seu berço original, reconduzida às posses de um José dos Anjos de Santana, falecido há muito. A União detinha, além da hospedaria, a escritura de um vinhedo deste senhor, deixado em testamento para três filhas, Deolinda, falecida, Rosália, paradeiro desconhecido e Antária de Santana, esta última ainda viva, residente no Hospital Casaredo. O vinhedo havia sido cuidado por um arrendatário incógnito pelos últimos dez anos, alguém que exigiu sigilo. Havia um depósito no banco em nome de Antária de Santana, resultado dos lucros das safras. Ao final da carta constava o adendo, o que o sábio Wong Bohai esperava. A notícia de que encontraram o senhor Silvério Lerias, recolhido a uma casa de assistência a idosos em Coimbra, dementado. Não havia parentes vivos que o assistissem, estava por conta da benemerência portuguesa.

 

Nem a senhora Antária, tampouco Madame, teriam exultado com tal notícia, neste momento de suas vidas. Mais uma vez, elas dependeram da lisura de estranhos. E foi com muita decência que o sábio Wong Bohai colocou os documentos à frente de Madame no refeitório, assim que ela acabou de cozinhar seu arroz de cogumelos e castanhas. Os enfermeiros Gaspare, Catarina e Josefine serviram de testemunhas no procedimento. Com vagar, a senhora leu todas as páginas do documento, detendo-se em cada nome que aparecia, o dedo indicador sobre eles. Madame parava, olhava todos os presentes, face neutra, fixava o olhar em Gaspare e seguia a ler. Ao final do exame jurídico, ela no domínio parcial de suas faculdades mentais, recebeu uma procuração, em que delegava ao advogado Giulionni a responsabilidade para dispor dos bens que  cabiam a Antária, na forma da lei. A senhora Antária passava, a partir daquele instante, a ter nome, sobrenome e passado. Se condições houvera, a senhora teria para onde ir. O olhar de Madame, de adeus e resignação, desceu de Gaspare para a folha. Ele lhe sorria terno, acolhedor, compreendia muitas coisas a partir daquele desenlace. A senhora assinou o documento com o nome muito nítido, Madame. Improvisou-se um carimbo com tinta de lula que ficara na pia e botou-se, ao lado da assinatura, a débil digital do polegar esquerdo. 

 

Se alguém perguntar agora, de onde e por que, se juridicamente, não haverá respostas precisas. Fato é que Madame escreveu naquela noite em seu caderno senhor de nossas vidas, agradeço pelas oportunidades de fazer o bem. Muitas vezes, elas são postas diante dos meus olhos de forma tão singela, que quase as deixo passar. Agradeço pelos encontros com pessoas caras, também pelos desencontros, que são razão de corrigenda, cicatrização e reformulação dos vínculos. Agradeço pela oportunidade de partilhar respeito, humildade, espirito fraterno. Que as dores sejam elixir de entendimento, as alegrias, tempero da atenção, da vigilância. Não sei o que ainda me reserva a jornada. Vibremos juntas, Antária. Estou forte, tenho coragem. O olhar está sempre no portão e também dentro da alma, que de lá vem mais chances de fazer o bem. Recebas as luzes dos teus tempos de maternagem e servidão. Faças valer teus lucros para crianças que crescem e que virão. Uma palavra tua, e os amigos saberão o que fazer com teus bens. Por amor, dê-nos a todos um sinal. Senhor de nossas vidas, valei-nos. 

 

Quando Madame terminou de redigir o parágrafo, Manoel chegou ao dormitório. Ela lhe estendeu os braços, como há muito não fazia. Soluçou em seu peito enquanto ele alisava suas costas e aquele movimento lembrou noites alegres no quarto de uma hospedaria. Quando a emoção serenou, Madame entregou o caderno aberto ao enfermeiro. Sabedor da circunstância, ele se dirigiu ao Ambulatório e pôs o texto diante da senhora Antária, que estava desperta. Demorou algum tempo, Manoel sentou-se à beira do leito. A senhora leu e releu a página, a despeito de seu alheamento, o dedo indicador a definir cada palavra e nome. Antária acenou afirmativamente com a cabeça. Seu rosto marmóreo deixou ver uma lágrima. Depois, fez um aceno positivo a Manoel. Neste momento, Matilde entrou, para testemunhar mais um ato solidário, o nome em letra de menina e uma digital ao lado, como referendo.

 

 "Amor vem de amor. Vem de longe, vem no escuro, brota que nem mato que dispensa cuidado e cresce com a mais remota chuva. Vem de dentro e fundo e com urgência. Amor vem de amor. Que não cabe, mas assim mesmo a gente guarda. A gente empurra, dobra, faz força, deixa amassado num canto, no peito, no escuro, dentro, ou larga pegando sereno. Amor vem de amor. Vem do pedaço mais feio, do mais sem palavra, do triste, vem de mãos estendidas. É tecido desfeito pelo tempo, amarelecido pelo tempo, pelo cheiro da gaveta fechada, pelo riscado do sol na madeira. Amor vem de amor. Vem de coisa que arrebata, vira chão, terra, cisco, resto, rastro, coisa para sempre varrida. É delicadeza viva forte violenta. Que faz doer, partir, deixar caído. Amor vem de amor. E dói bonito." Guimarães Rosa

 

 

Chegou ao Hospital Casaredo, por aqueles dias,  um senhor distinto. O mês era março. Pela postura, parecia natural da Europa central. A coluna ainda ereta. Poderia ter sessenta e cinco ou oitenta anos. Estava limpo. Bem posto. Tinha a barba feita, sem bigode, a calvície recoberta por um gorro, pouco maior que o quipá dos rabinos. Os cabelos que resistiam perto das orelhas faziam pequena curvatura para fora, alvorotados, dando-lhe ar jovial. Vestia calça de brim azul pardo, levemente desfiada no joelho esquerdo. Camisa branca de gola asseada e um casaco de veludo marrom, que o mantinha aquecido e arejado. Ele parou diante de Jeff, olhou com brandura. Perguntou se poderia ser atendido no ambulatório. Sotaque de alguma possessão francesa. Apontando as botinas, o senhor reclamou de uma forte dor no tornozelo esquerdo. Jeff o convidou a sentar-se e acionou o bip de Alev. O homem, acomodado à ponta de uma poltrona florida, fundo bege, tomou de um jornal e o aproximou bastante do rosto, afastando a folha vez ou outra. Foi assim que o enfermeiro o encontrou, rígido, jornal no colo. 

 

Não estava morto. Apenas em estado de choque. Foi logo encaminhado à UTI, onde recebeu os primeiros socorros. Uma trombose tinha se manifestado na perna que doía. Alev encarregou-se de mudar-lhe as roupas, assim que o quadro se estabilizou. Apalpando os bolsos das vestes, a saber se havia documentos, Alev os encontrou. Quanto renderia de história, aquela presença, no hospital. Que bom se o homem falasse, pudesse se comunicar. Quem sabe passasse a residir ali. Durante todo o dia, atendentes e médicos vieram visitar o senhor de sotaque francês que ainda não despertara. Todos concordaram, o quanto ele lembrava Javier. Matilde foi quem mais se encantou do homem. O ir e vir ao ambulatório deixou eletricidade no ar, suficiente para provocar alguns surtos em vários dormitórios. Fosse usada a escala Richter, seriam abalos nível três, quatro. 

 

O senhor da Nossa Senhora oscilou entre dois estados extremos no mesmo período. Euforia, em que berrava seus comandos navais. Descrença. Nessa fase, iniciou sua invocação mariana, engasgou, chorou copiosamente, tombando sempre para frente após ajoelhar-se. Fátima e Lourdes, as imagens que ele evocava sem parar. Dali a instantes, o senhor se erguia sobre o leito e tornava a berrar, ainda mais forte, até cair de cara novamente. Matilde estava disposta a aplicar contenção. Gilmar usou de charme para demover a colega, garantindo que devolveria os velhinhos à calma. A moça se rendeu e voltou ao ambulatório, para olhar o novo paciente. No dormitório masculino cinco, os contracantos eram de provocar riso. Gilmar  se divertia, Josefine pasmava. O senhor Omar a sentar e deitar obstinadamente, apontava o nada a sua frente, horrorizado. O senhor Perry, alusão a um ator canadense, nome que Manoel deu ao senhor Quatro, dizia o que parecia ser um chiste e ria sozinho. O riso funcionava como se ligasse e desligasse. O homem descia do leito, sua altura e magreza eram de assustar. Dentes muito tortos, cabelos brancos ainda bonitos. Articulava sons ininteligíveis, ria e se encolhia, como se acometido de cócegas. Relaxava e voltava a deitar. Os senhores Vigário e Adão, prostrados sobre o leito, choravam, cada qual no seu tom, formando um intervalo irritante. O senhor Adalberto refugiara-se sob o cobertor, oscilava para frente e para trás, a cabeça entre os joelhos. O senhor Frei Martinho caminhava entre os leitos, impondo a mão sobre os colegas e arengando rezos ininteligíveis. Kyle, aquele da Ópera de Shangai, o mais jovem do grupo, olhava tudo e nada podia dizer.

 

O enfermeiro Gilmar realmente precisou conter aquela situação, havia risco de contaminação psíquica aos demais dormitórios. Deixou Josefine, ainda tonta, por alguns instantes no comando. Voltou logo, a empunhar a sanfona. Tocou um tema assim chamado, Sanfona[5]. Começou bem devagar, como a convidar para um encontro, para um passeio, para uma dança. Dali a pouco, conseguiu o de que precisava. Congregou os velhinhos e os foi tirando do dormitório, em fila, exceto Kyle. 

 

Gilmar à  frente, um fauno, a saltitar pequeno, os homens atrás, a fazer micagens. Mourejaram pelo corredor, indo e vindo, desceram a escada, Josefine atenta, a afastar um de perto da janela, levar outro a se aliviar no lugar certo. Até que todos deram no jardim. Ali havia outros pacientes, já sentados. Os que podiam ficar de pé foram atraidos, entraram na dança. Alguns lalarilavam a melodia como podiam, outros batiam palmas, pés. O festim durou muitas voltas do tema musical. 

 

Gilmar  conduziu a harmonia e o toque para a calma. Dali a pouco, um ou outro velhinho ainda se balançava no lugar, como a recordar o momento. Outros olhavam algo, nada, alguém. O senhor da Nossa Senhora cantou com voz mansa o fado Lembra-te sempre de mim, já nosso conhecido. Costurando a cadência, a melodia executada sozinha pela sanfona, o velhinho cantou mais uma estrofe e assim aquietaram o ambiente, enquadraram o sol e a brisa marinha. Te Dan, no mesmo período, subiu para tocar no dormitório cinco, a confortar o colega da Ópera. 

 

Ao cair da tarde, todos no refeitório, os enfermeiros olhavam uns para os outros como a perguntar por quê. Por que insistiam? Por que se esforçavam? Catarina se esmerara em um risoto de camarão, a salada estava ótima. Havia vonton. Algo no ar, um leve incômodo. Poderia ser mudança de estação, a primavera não tardaria. 

 

Desatenta, desastrada, Madame parou à porta com sua cadeira, já eram horas de se recolher, Joana a deixara mover-se, garantiria um sono melhor. A senhora cismava, embriagada por aquela vibração densa. No dia anterior, fora liberada do ambulatório. De alguma maneira, ela sabia que alguém sentia falta de seus pratos de peixe, que agir era melhor que cismar. Sabia também que sua mão direita não arremataria bem os ingredientes no momento. Ciente de que Catarina tinha um cardápio substitutivo, foi passear à rua dos sobrados. Achou seu guarda-sol aberto. Madame podia enxergar todas as casas de onde se encontrava. A doutora descansava à janela. Madame olhou-a, como se quisesse se consultar com ela. Loto correspondeu ao flerte. Veio algumas vezes à porta, sorriu para a senhora, acenou. 

 

As coisas por andar andaram, no ritmo de uma casa de idosos e mães. As moças chegavam desesperadas, quase sempre sozinhas, a segurar a barriga. Saiam do hospital, dias depois, um pouco melhor, com ou sem a cria nos braços. 

 

Os demais pacientes iam fazendo pequenas coisas ou nada faziam, quem os poderia culpar. A senhora Perséfone, por exemplo, tomara para si os encargos de bordado da senhora falecida, a Rasguito dos monogramas e passarinhos. Compôs uma caixinha de retalhos que viravam bolsos, apliques nos jalecos, nas fronhas, camisolas de homens e mulheres e nos enxovais dos bebês. Havia riscos novos, porém um começou a chamar  atenção à doutora Dung Hanh, o contorno de uma moça a amamentar, lágrimas a cair dos olhos na forma de rio. Quando Perséfone bordava este desenho, melodiava uma canção de Mendelssonh[6]. O registo grave da senhora ainda era sustentável e revelava, por alguma razão, um segredo. O ouvido da doutora captou, naquele gesto, uma história de doação. Será que ela perdera uma criança um dia? Naturalmente, por necessidade, coação? Para proteger? Salvar? Desfazer-se? Tantas perdas Loto já testemunhara em sua terra, na Ásia. Poderiam ser reminiscências de guerra as da paciente, ignorâncias que presenciou, não fazia muito tempo. Loto deixara, também ela, memórias para trás, que seria bom esquecer. Estavam em sua consciência, contudo, no seu coração solitário de moça, nos seios virgens que vertiam leite e nutriam o banco do hospital. Doce por excelência, a nossa Loto não se não permitia arruinar com melancolias. O que a doutora captava era sinal distante, estática pueril, que não se ajustava a dial conhecido. Quem sabe, resíduo da chegada do novo paciente. A doutora olhou a senhora Perséfone, que não tirava a atenção do bordado ou perdia a melodia. O tempo seguiu seu chamamento à lua. Loto colheu mais uma mamadeira dos seios. Por fim, a senhora Perséfone guardou seus trabalhos, ergue-se e dirigiu-se à doutora. Com o olhar, convidou-a a caminhar. Foram juntas até o berçário. Madame as acompanhou, com algum ciúme. Pararam, então, à porta do ambulatório.



[1] Sonhar durante o fado, composição de Sérgio Godinho

[2] Ondas do Mar de Vigo, Martin Codax, canção medieval galego-portuguesas

[3] Tema tradicional português; *domínio público, Brasil

 

[4] Da Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso

[5] O Acordeão e a Sanfona, Morais Moreira; Sanfona – Egberto Gismonti

[6] (Auf Flugen des Gesanges) - Nas asas da canção

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