Hospital Casaredo 65
Anotações de diário de bordo
Ficou aberto o caderno de Madame sobre a bancada do refeitório. Ninguém mexeu, pois sabiam que Gaspare logo o viria apanhar. Josefine, olhar comprido e melancólico, tomou ciência da história ali narrada. Difícil de compreender, tinha aspecto de lenda.
Na visitação ao horizonte em que se pode bulir, na linha de olhar o mar, José Gaetano ia envolto em fidalguias e prodigalidades inúteis, sem sonhos, como se fora do tempo, preso a algum entreveiro violento. Portador de alguma ferrugem, o navio que era seu corpo afundou o rosto entre os braços, a cabine da nau por travesseiro. A vela queimava, perigosa, a Sor balouçava, ladeada pela âncora, a Julieta. Rafaele, a caveira que fazia companhia ao comandante, murmurava um acalanto assombrado. Os óculos, no topo da cabeça de José, eram novidade em seu traje. O nariz apontava, mapa aberto sob os braços, uma ilha distante ao sul do continente australiano, rota de viagem por fazer. Nada lhe daria mais satisfação. Aproar a nau e partir, Poseidon a urrar, empático. As sereias surgiram, talvez atraídas pela melodia fantasmática, um misto de pranto e bujarronas, para impedir manobras de fuga ou avanço sem fim, para oferecer tormentas contínuas. Lua e sol a servir de cenário nessa jornada sem porto.
Um tempo bom, outro menos, mais concursos com nada, consórcios com gaivotas, contendas com caravelinhas portuguesas. Abrandado por um vento morno, não suficiente para mover, o bucaneiro abraçou mais o rosto e dormiu pesado, o mar por velatriz. Seu diário de bordo estava aberto, no dia em que José percebeu a visão turva. Suas mãos amorteceram. A pena, que ele segurava com a canhota, caíra no chão da cabine, depois de muito girar lentamente, um lado, outro lado. O marujo completara cinquenta e seis anos. Registrou todos os portos conhecidos, para não morrer de medo. No dia do natal, houve motim em uma das fragatas. A Sor, a Emerenciana e a Naína navegavam em formação. Dos cento e vinte tripulantes, ficaram apenas dois grumetes por embarcação, algum espólio. Tiveram sorte de não afundar na rusga. José não sabia como ou quando a Sor atracaria. A pequena esquadra separou-se, não havia capitão para corrigiu a rota. A guarda costeira foi avisada, o ocorrido se dera em mar de ninguém. Por sorte, fora-se o tempo de obrigar comandantes vencidos a andar na prancha. A sublevação tinha a ver com os berços de atracação, não com capitães. José Gaetano suspirou aliviado, não haveria de carregar morte sobre os ombros. Para ele, era um comportamento de lavo as minhas mãos. Queria mesmo posar de Holandês Voador. Sua origem, mesclada de tons portugueses, corria mansa nas veias. A gravura de Henrique de Sagres tremulava próxima à escotilha. Informava eis teu benfeitor. Talvez a visão turva fosse consequência de olhar tanto o mar e calcular um sem número de longitudes, ou o longo exercício de escrever a luz de vela. Ou talvez fosse o resultado da última espiada no daguerreotipo do Capitão-Mor Alois Donis. Onde andaria ele? Quanto tempo ainda faria falta? José abriu um gaveteiro da escrivaninha e retirou de lá uma imagem pequenina da Senhora-a-Branca, escondida há tempos. Com ela nas mãos, orou em silêncio.
Os dois grumetes da Sor arrumavam quefazer no convés. No início da tarde, José despertou e foi ter com eles, com toda consideração que sabia. Amofinados, porém pacíficos, os marinheiros o receberam com as vênias da graduação. José sentiu uma súbita pontada no peito. Trazia consigo o santur, agarrou-se ao instrumento. Suava e tremia, sentou-se em um barril. Lembrou-se de antiga cantiga, aprendida aos piratas árabes, ou seriam escoceses, gauleses. Começou a cantar. A San Servando foi meu amigo/ e porque nom veo falar migo/ direi-o a Deus/ e chorarei dos olhos meus/ se o vir, madre, serei cobrado/ e porque me tendes guardado/ direi-o a Deus/ e chorarei dos meus olhos/ se m’el nom vir, será por mi morto/ mais porque m’el fez (a)tam gram torto/ direi-o a Deus/ e chorarei dos olhos meus[1]. Repetiu o tema duas vezes, os rapazes a escutar, entre intrigados e zombeteiros. As mãos do comandante reagiram, a visão turva ainda o deixava mareado. O coração palpitou, vazio. José era um chefe bom, cooperativo, assim acreditava. Nada de se vitimar agora, José Gaetano, foi o que sussurrou ao dedilhar um La maior. Enquanto o sextante conclamava olhar os céus, o comandante procurou permanecer lúcido.
As paixões, suas distintas formas, dormiam nas páginas do diário de bordo. A quinquilharia da coroa se salvara e estava seca. Um bando de livros, todos seguros. A Emerenciana, ainda era possível reconhece-la longe, dava adeus, balançava a bandeira solitária dos salteadores. A carga que levava ficaria em seu tombadilho, o que restava pelo menos, nada de valor ou comestível. A Naína posava de jovem, tão vazia quanto uma cantante de cabaré barato. Se fora corcéis, aquelas três embarcações, atrelavam-se pelas crinas.
Forte, grisalho porém digno, José puxou de uma perna, moveu o joelho direito e contabilizou a urgência de provisões. Passariam maus bocados, os três sobreviventes. Água escassa, laranjas temporonas, um resto de lentilhas e um pouco de lenha. Poderiam pescar. Quantos dias suportariam?
Tic tac tic tac, soam as dezenove horas. Traidor, uma palavra efêmera. José recordou seis sinônimos para tal verbete. Dor, chance de sobejar a circunstância. Medo, talvez a punição severa que esses homens se auto impingiriam. Sofrimento, só seria educativo se bem sofrido. Vaidade, vicissitude afeita a qualquer mortal. Inveja, prima irmã da covardia. Ciúme, energia desperdiçada. No porto Vila Real de Santo Antônio, ao apertar as mãos dos novos tripulantes, José sentira a tensão. Tantos idiomas, tantos costumes, vícios a conduzir. O capitão da Emerenciana, quase desafeto seu, azedou seus homens para a viagem, tratando-os como crianças rebeldes. Não, não adiantava culpar este ou aquele, cada um sabe de si. José Gaetano que se arranjasse, a batata ao murro por cozer. Quem ama não espera, paga.
Após o encontro no convés, para os primeiros entendimentos com seus comandados, José retornou à cabine. A ideia de que os rapazes não sabiam conduzir o barco, precisavam dele para se salvar, o acalmou. Fechou a página do diário de bordo.
A noite veio
ainda um pavio a meio
O mesmo mar alto
o mal, se houvera, foi-se
Madame, o caderno de volta à sua sacola a tira colo, anotou a quadra e soube que desafinava. Não é grande o mal, bem pouco dura[2], cantarolou. Firmou as costas ao travesseiro, haveria de dormir um pouco até a próxima visita de Gaspare. Ainda vislumbrou José, a tocar a beira arredondada da proa e antever o sorriso largo, a voz clara de Alois. Escutou-o a bradar uma prece à Senhora da Agonia, em coro com o ronco das ondas.
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