Hospital Casaredo 64








Fim de festa



Dos contos arturianos (melhor seria dizer geraldinos) nada sei e é bonito, sei até demais. Em as diferentes ocasiões estou com ele, sigo-lhe a trilha, colho do pé a castanha para assar, enquanto ele arruma os gravetos para o fogo, saca o cantil e despe a casaca púrpura. A ginja desce, suave. Um macaco bérbere graçeja, perto. A saparia comemora em alarido os mosquitos que partem, em tufos, da castanheira. A cobija, estendida sobre a relva, carrega umidade tímida, que o sol de verão há de crestar, mesmo quando já se despede. De voltar e partir, a luz se faz no pó de nossos coturnos... vou com ele, dois paços atrás. 


 

Do ar sombrio, resultante da conversa entre Madame e Amparo, em que quase nada foi posto no lugar, veio a noite de benemerência e festa. A roda girou mais de mil vezes, para comemorar o Dia da Travessia. Os pacientes aproveitaram as luzes, os sons, os risos, caminharam entre as barracas, quem sabe qual deles se deu conta de onde estava, o que fazia, para que. Para os voluntários, a alegria de ser útil, para os atendentes, respiro. Tantas lembranças estalaram, feito grãos de milho ao fogo. Os demais festeiros namoraram, ataram laços, fizeram votos. Vários comerciantes comemoraram seu pé de meia beneficiado.

 

Dois momentos da festa foram testemunhados com excitação. O primeiro, Javier a dançar no Tablao. O bailaor enfermeiro arrancou ovações, provocou desfalecimentos e suspiros. Seu filho Júlio, montado nos ombros do enfermeiro Manoel, esteve atônito, com tudo. Achou que o pai se transformara em toureiro, naquele traje vermelho, sapatos da mesma cor. O homem belo bandarilhava com o ar. O sanfoneiro Gilmar, como era de se esperar, incendiou a madrugada. Tocou, cantou, pôs o povo a dançar a ciranda. Mais quatro acordeonistas, dois deles vindos do distrito de Braga, subiram ao palco para tocar danças portuguesas e espanholas. Um grupo de homens do Alentejo cantou em coro. Uma mulher, com voz que fez o cão Santur uivar, improvisou desgarradas e preces à Senhora-a-Branca. Na barraca de artesanias, a santinha de gesso foi a mais vendida. Belas colchas de cama, confeccionadas à moda das calçadas de Faro, enfeitariam leitos na manhã que já vinha. Uma cigana entoou cantigas de várias etnias, acompanhada por dois violinos e uma balalaica. Também leu mãos e previu amores, era obrigada a dizer a verdade. Quem lhe deu cobres, deu de bom grado, sem que a cigana pedisse. 


Pouco antes dos lilases do céu, entrou na areia o grande dragão a ondular, iluminado dentro por lanternas, seguido por matraqueiros e pandereteiras, que convidavam ao corso. Fogos de artificio espocaram. Dois balões não puderam subir. O sol, mais uma vez, sorriu. O mar, um tanto turbulento, vibrava nuvens a oeste. Gilmar tocou xote calmo para concluir sua participação, hora de procurar um tanto de sono. A praia esvaziou de pouco e pouco, ficando apenas a equipe de limpeza. O povo, ordeiro, quase não descuidara do lugar, uma ou outra coisa apenas para juntar. Não levou meia hora e só restava descer as lonas, estacas, os palcos, a roda girante. A senhora Chang Chang, ao encerrar a festa, deixou no ar a vontade de repetir o evento no próximo ano.


Amparo, a esposa de Javier, cruzou o portão quatro antes das seis da manhã, no momento em que o xote atraia todas as atenções. Ainda um pouco abatida, trajava o vestido da maleta e nada mais tinha consigo. Ganhou o corredor do ambulatório, onde não havia vivalma. Soube dos ciganos por uma das mães, que dera à luz na tarde anterior. A trupe partiria quando a festa terminasse. A enfermeira Joana cumpria seu turno no berçário, atendia a outras quatro mulheres. Não deu pela falta da moça, encantada que estava com Esmeralda. Amparo não hesitou em evadir-se. O senhor da Nossa Senhora intensificou suas súplicas à Senhora do Bom Parto, mesmo assim não deu alarme. 

 

A madrilenha logo avistou as carroças, que seguiriam para o sul, em direção ao Marrocos. De consciência adormecida, só mais tarde Amparo se deu conta de que colheita como a que plantara rende dividendos. Logo foi aceita em um dos trailers, por uma cigana madura, viúva recente. Amparo sentiu como que areia na alma, como se movida de arrasto. Precisava dormir. A dona do trailer lhe tomou a mão e leu seu destino, sem nada revelar naquele instante. Deixou que a moça, primeiro, se recompusesse. Dama que a vida enrugou, Clavele fizera pacto com o homem de sandálias, o mais amado do mundo. Guardava sua fé para si. Amparo confiou, mergulhou logo em brumas, coberta por um manto bordado de mandalas. Clavele secou-lhe as lágrimas e entreteceu nas mão da moça uma imagem da Senhora-a-Branca. Ou, quem sabe, tratava-se de Santa Sara Kahli. Conjurou um rezo particular e silencioso. Se a serpente vier, saída do meio da areia, ai não sei, cantou Clavele, com sotaque marcadamente basco. Talvez eu converse com ela. Se tiver cara de gente, ai fica mais difícil. A Senhora-a-Branca vai cuidar de todas as gentes. Vai solear em novo mar. Nós, de canoa quebrada, confundidas, choraremos. Sonharemos um rio gigante, remo na mão, pé na areia quente. Amparo dormiu em paz, virou duas, achou-se. Tudo se arranjaria, até as crianças sem mãe, foi o que a moça pensou quando encostou a cabeça na almofada, cheiro de sândalo, erva brava. A raposa cedera, para o bem de todos. Foi com suas uvas e cativâncias chorar em outra parte. Clavele encontrou seu rastro na mão direita de Amparo. 

 

Esmeralda talvez nunca se lembrasse do cheiro da mãe. Uma lágrima de Joana escorreu sobre a manta que envolvia o bebê. Ficavam para a menina os traços, trejeitos, tons, as ancas de cigana. De palpável, um livro de poesias de Garcia Lorca, posto debaixo do travesseirinho, no sobrado. Agora era proteger-se, sob o olhar meigo da Senhora-a-Branca. Javier tomou a filha nos braços e a embalou; era dia de ir para casa.


Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho.

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a parede branca onde mijavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas (...)[1]


A enfermeira chefe Maria sabia que não tinha querer. Adiantava, exaspera-se com aquele quadro? Júlio, Esmeralda, o que significavam para ela? Velhos, pequeninos, que diferença fazia, se lhe feriam diretamente em sua solidão? Seu ventre vazio? Seu leito vazio? A chefe dos enfermeiros torturava-se por não perdoar aquela mãe, a quem conhecia tão pouco. Mal se falaram, enquanto Amparo esteve no hospital. Racionalmente, Maria podia compreender. Tratava-se de surto, a moça carecia tratamento e afastou a todos, até seu marido. Não havia neno de consolo,  voz de acalanto que Maria pudesse entoar. Sempre tão sensata, a enfermeira considerou pedir medicação ao doutor Wong Lam, perdera o tino. Temeu alterar-se, ir fora dos seus limites. Largar para trás um recém nascido, sem leite, calor, era inadmissível para sua estrutura rígida. Uma dor aguda no peito oprimiu Maria. Nunca dissera a ninguém, mas não aceitava o socorro da maternidade no Casaredo, por razões que não cabem narrar agora. Ter presenciado a partida de Amparo sem reagir foi-lhe prova dura. Difícil aceitar o desenlace, quando a solidão afetiva esmaga o coração. Ainda não estava claro para Maria o que significava, para si, toda aquela história. Sentira tanta inveja e ciúme, desde que pôs os olhos no casal. Agora pagava alto preço. Foi Joana quem auxiliou a colega a dirigir outro olhar para a situação. 


Depois de tudo te amarei

Como se fosse sempre antes

Como se de tanto esperar

Sem que te visse nem chegasses

Estivesses eternamente

Respirando perto de mim. Pablo Neruda.

 

Já haviam estado, as duas, sob a laranjeira, a chupar o fruto mais para o azedo, com borda de sal. As larvas verdes de borboleta poderiam escorrer do tronco sobre suas peles, queimar doído, mas valia o risco. A lua, deslumbrante, deixava o ambiente ufano. Joana não falou de si, não era hora. Nada perguntou a respeito de Maria. Falou sobre um lar de jovens mulheres que nada sabiam sobre amar, sobre ser solidárias. Guerreiras potenciais. Armadas até os dentes. Treinadas para brigar. Quando libertas, entravam em diversos espaços, furtavam e escapavam ilesas, trocavam tabefes e cortes, se necessário. A única lei, para elas, era preservar a própria vida. Ao serem aprisionadas, erro grave na comunidade, perdiam o direito ao bando, como as hienas. Sozinhas, seguiam brigando, soldados sem insígnia. Sem valor. Então procuravam um gueto, onde viviam os criminosos. Ninguém tocava nelas, ferais que eram. Havia isso de bom. Não careciam proteção, em tese. O que lhes faltava, contudo, era o ventre de livre pensar. Algo impedia o vaso de receber flores. Essas guerreiras existiram desde sempre. E se espalharam pelo mundo, separadas do bando. Ganharam novas cores, novas peles, novas missões. E andam por aí, pelas estradas, faca entredentes, sozinhas, aboletadas em uma porta ou corredor, por algum tempo. Tanto ela, quanto Maria, agora Amparo, eram dessa espécie. Algo na sina de Amparo fez com que abrigasse dois lírios roxos em seu vaso, vai saber, algo que só Nanã[2] pode auferir. A moça, ferida na alma, não pode esperar que os lírios murchassem. Nenhum varão, por mais viril, preencheria aquele ventre de livre pensar. Foi assim que Joana contou. Por alguma razão, Maria desatou seu mar de dentro e só parou-lhe as ondas duas horas depois, exaurida. Joana ninou sua chefe, daquele seu jeito grave e profundo, com cantos daomeanos. Foram várias cantigas de saudação às almas, por mais de cinco minutos, o tempo era auspicioso. Como Irene preta[3], Joana colocou em cada cantar o nome de um dos colegas, de muitos pacientes dos quais lembrou, o nome de Maria sempre citado entre eles. Havia acionado o bip de Matilde, com código laranja.

A enfermeira Catarina foi atrás das colegas, ia começar sua folga e a de Matilde, que renderia a senhora Chang Chang nos cuidados com o menino Júlio. Não houvera falhas graves na escala da festa. Uma ou outra brecha se fez computar durante aquele dia. Quando viu que o mar não estava para peixe, a ucraniana foi buscar o enfermeiro Gaspare, que dançava sozinho na areia, em deleitoso frenesi. Ele era o colega que as renderia sem ruminar, mesmo tirado a força da diversão. A ginja lhe pesava, mesmo assim o rapaz fez o que era preciso. Abraçou o senhor da Nossa Senhora no caminho e o reconduziu ao leito. Catarina não soube, Gaspare menos, Javier dormiu no sofá de certo sobrado, depois de muito bailar. Ficou apenas a casaca vermelha, um triângulo sobre ela, testemunha ocular. Uma senhora da limpeza pendurou a casaca, indiferente, não sem antes aspirar, muito, o perfume viril que dali emanava. O sol brilhava forte, não passava das sete e meia.


Gaspare, de humor neutro, o cansaço controlado, foi cumprir seu turno. Começou pelo dormitório das mães, queria ver Amparo. Três delas dormiam, uma dava de mamar. O leito que recebera a madrilenha estava vazio. O enfermeiro pensou em procura-la, mas sentiu que não havia o que fazer naquele caso. Alev talvez soubesse do paradeiro da mulher, porém, ficara ainda na praia, inebriado com seu dumbeque. Catarina acionou o bip e ele surgiu, por encanto, abraçado ao instrumento e também a uma garrafa de Porto. 


A prioridade, para Gaspare, era um mar de pacientes, alguns ainda excitados pelos festejos. O coração do rapaz se apertou pelo meio da tarde. Havia desconforto no dormitório masculino do primeiro piso. Cheiro de excremento e suor. Gaspare abriu as janelas de par em par, ainda era possível escutar, de memória, o xote final. Sob protestos, foram trocadas duas fraldas, ajustada a medicação do senhor Omar – o paciente se parecia com o ator Omar Sharif. A ronda atraiu o enfermeiro ao dormitório dos casulos, mas era território do enfermeiro Manoel, não quis entrar sem ele presente. Não sabia de Kyle há dias, as cartas cessaram. Tudo aquietado, o ar viciado do andar purificou-se. A lição a se tirar do quadro, nos dias de muita agitação, é melhor sentar-se, um olho atento. Havia uma cadeira de balanço no corredo. Maria a usava, quando em turno. O rapaz acomodou-se, após olhar as mulheres. 


Poucos minutos se passaram, sentiu-se a presença de Madame. Ela viera de arrasto, apareceu por detrás do enfermeiro. Se fora Maria, a senhora teria se comportado e não sairia do leito, esperaria pelo atendimento. Madame talvez procurasse Manoel, não disse. Gaspare a tirou do chão e a colocou em uma cadeira próxima, agasalhou-a com um lençol. Já ia se dirigindo ao elevador quando o olhar de Madame implorou para ficar a seu lado, como que com medo de enfrentar um sinistro. O enfermeiro teve paciência e levou-a, mesmo a contragosto. Quando cruzaram a porta do dormitório um, Esperança estertorava, ensopada de suor, a regurgitar. Gaspare depôs Madame em seu leito e, literalmente, voou para a paciente em agonia, desobstruiu-lhe a garganta, correndo o risco de ter os dedos amputados. O movimento resultou um pouco de vômito. O doutor Luiz, alertado pelo bip, chegou logo depois, para proceder socorro específico. Manoel e o doutor Wong Lam entraram no momento em que o surto deflagrou-se. Esperança se debatia como urso. Um rebote provocado por dose excessiva de Xanax, em combinação com meperidina. Tentativa de suicídio. Como a paciente conseguira acesso aos fármacos, não era possível saber no momento. A ingestão de tais fórmulas aumentou-lhe exponencialmente a fúria. A voz de Esperança foi ouvida no mar, um espetáculo horrendo. Felizmente, a equipe de limpeza recolhera todo vestígio da festa e a praia estava deserta. Meia hora mais tarde, Matilde  vestiu a camisa de contenção em Esperança, intervenção  inevitável. Todos lamentaram, a senhora vinha serenando a cada dia. Não houve meios de evitar aquele desfecho. Puseram-na, subitamente desacordada, no cubículo forrado. Não tinham como prever se  a paciente retornaria da crise. O grupo de socorristas, quase ao mesmo tempo, após o fechamento da porta da sala, escorreu pelas paredes do corredor, exausto. O dia terminava. Desde os tempos de sanatório, não viviam situação parecida. 


Quando Maria deu por si, o infarto se confirmou. Joana, ainda sob a árvore, instruiu a chefe, para que tossisse, enquanto lhe massageava o esterno. O doutor Luiz foi pontual, executou o procedimento de ressuscitação. Maria seguiu primeiro à enfermaria do ambulatório. Joana permaneceu ao lado dela. Logo o helicóptero as levou a Lisboa, para exames e terapêuticas adequadas. Clarice, que muito se afeiçoara a Joana, ofereceu-se para as acompanhar. O doutor Itaú se encarregaria da mãe, durante o tempo em que a cuidadora estivesse fora. Houve uma pausa em tanto susto, e então Gaspare lembrou-se de Madame. Encontrou-a rígida, sentada na cadeira da comadre. As demais senhoras dormiam. Por um instante, o enfermeiro pensou que Madame infartava também. Respirou com força em sua boca e começou a esfregar-lhe as palmas das mãos. Depois, solas plantares. Depois, tomou-a nos braços, deitou-a de lado no leito. Fez tapotagem[4]leve nos pulmões, tamborilou seu crânio com os dedos, sacudiu seus ombros, auscultou artérias. Lentamente, os batimentos retomaram o fluxo e a temperatura estabilizou. Gaspare prosseguiu, agora com uma técnica de respiração holotrópica[5]. Voltou ao trabalho de reflexologia[6], procurava aquecer os músculos ainda tesos. Em dado momento, soprou-lhe novamente a boca, sugou o ar a ser expirado. Pressionou-lhe as costelas na altura do baixo esterno, até que Madame abriu os olhos, tossiu, estendeu os braços e começou a chorar. Gaspare chorou com ela. As demais senhoras mantiveram-se a dormir, estavam sedadas.  Catarina chegou, a murmurar uma cantiga de amigo, Madame deu sinais de melhora. Com a ajuda de Gaspare, ajustaram a posição do leito, para que ela ficasse parcialmente sentada. Foi instalado um respirador, para melhor oxigenação do cérebro. Quanto a Gaspare, precisava descansar. Ele, porém, desejou permanecer ao lado de Madame. Acabou adormecendo, sentado em uma cadeira, debruçado parcialmente sobre os lençóis. A senhora, que se recuperava, afagou os cabelos do rapaz por algum tempo. Depois, para espanto de Catarina, tomou de seu caderno e lápis. A escrita, naquele momento, veio lenta, trôpega. A letra, no entanto, bastante legível.

 



[1] Excerto do poema Intermédio, Federico Garcia Lorca

[2] Nàná Buruku, a Mãe de Mawu e Lissa é representada na cultura Daomeana como a divindade suprema, aquela que impulsionou a existência.

[3] Personagem do poema de Manoel Bandeira

[4] Técnica da fisioterapia respiratória, chamada também de manobras e percussões pulmonares.

[5] Stanislav Grof (1931-) e Christina Grof (1941-2014) criaram a Respiração Holotrópica no Instituto Esalen, na Califórnia, nos anos 1970-80.

[6] Reflexologia ou zonaterapia é uma prática terapêutica alternativa  que consiste na aplicação de pressão nos pés e nas mãos , de forma a produzir melhora noutra parte do corpo. A pressão é aplicada com o polegar, dedos e mãos segundo técnicas específicas e sem a utilização de óleos ou loções.

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