Hospital Casaredo 63
Matizes dos dias contados, água pouca e espera
Não estamos preparados para olhar através, além, para altiplanos, ia dizendo o doutor Wong Lam enquanto fluía, através dos movimentos de expandir o peito do Lian Gong. O cantonês se dirigia a ninguém e a todos. Nós só vemos, mal, aquilo que está ao nosso alcance material. Ainda festejamos desfiles com exércitos vencedores, os belos corpos, os monumentos gigantes, de preferência aqueles intangíveis, os palacetes e iates. Mesmo nós, que temos alguma amorosidade, não estamos prontos para voos arrojados. Até sabemos, de alguma maneira, perdoar àqueles que nos ferem. Wong Lam olhou firme na direção do bailaor e de Alev, e seguiu para a série de movimentos de despregar as asas ou soltar as escápulas. Perdoar a nós mesmos, continuou, asas soltas.
Era manhã de sábado, poucos dias antecediam o nascimento do segundo filho de Javier. Exercitem olhar o mar, o psiquiatra continuou a instruir. O que veem? Até onde? Até quando? Exercitem mergulhar seu porão interior, seu fundo do mar. Acendam os lumes dos seus peixes ogros. Tomem referências. Observem, por exemplo, a forma como se expressa o senhor J.G. Cada um de nós interpreta as lousas de maneira diversa. Um simples evento alucinatório, para alguns. Alguns rabiscos feios e incompreensíveis, para outros. Uma interessante tradução do último desejo de alguém, ainda. Sobre ser cremado. O vestido longo e sapatos de salto alto, um último ato de agradecimento. Foi assim que a senhora Marscha mereceu, J.G. registou. Um enterro sob um sicômoro. Faltará tomar o trem, para repousar no cemitério, Capela do Farol de São Miguel Arcanjo. O desejo, não foi possível realizar por inteiro. Wong Lam iniciou nova transição de movimentos, para então levantar o braço de ferro. Fiquemos atentos, continuou. Nossos pacientes tem despertado, mesmo que por instantes. Nós temos acordado. As notícias são interessantíssimas, curiosas, dão arrepios, dão consolo. Conservo o oráculo[1] na cabeceira da cama e todos sabem que o consulto, estudo. Por mais que essa revelação deprecie a mim perante a academia, são pontos de apoio, todos precisam de um. Lógicos, sempre mutáveis. Moro atualmente no ocidente, aprecio o modo de pensar do ambiente, não julgo. Junto as ideias da Europa ao meu estreito saber. Encontro o caminho do meio. Assim chego aos diagnósticos, determino prognósticos, sem pressa. Wong Lam concluiu o pensamento e desenhou no ar os quatro últimos movimentos da série. Estamos contentes, por podermos dialogar sobre nossos costumes, hábitos. Tudo está bem, não deve ser diferente. Que estas conversas se alonguem, aprofundem e nos mantenham unidos, atentos, prontos para os dias que virão, amplos, mais do que se pode esperar de nós.
Sintonizada, flexibilizada em suas convicções, a equipe seguiu para o desjejum, os turnos se cumpriram e, com a aproximação do ocaso, aqueles que podiam se dirigiram à Capela Rosália, onde a senhora Marscha aguardava seus votos finais. À noitinha se completariam as setenta e duas horas de espera, a primeira cremação iria acontecer no Casaredo. Alev vestiu a anciã, um tubinho de laise rosado, confeccionado pela senhora Chang Chang. Eram dela também os sapatos creme, um pouco maiores que os pés da morta, recheados de algodão. Assim desfrutou seus últimos momentos a senhora Três, teria gostado de se ver no espelho. Manoel se comoveu, ao arrumarem o corpo no ataúde, uma caixa de poesia. Controlou-se, não quis parecer fraco diante do homem invisível. A boca do forno era assustadora, apesar dos adereços que a contornavam. O último instante do corpo, talvez para renascer no céu, assim Manoel entendia. Alev, que nunca externava seus princípios, murmurou a prece Allahumma ighfer li-hayina wa mayitina, wa shahidina, wa gha-ibina, wa saghirina, wa kabirina wa zakarina wa onsana. Allahuma man ahyaytahu fé-ahyehu ala al-islam wa man tawafaytahu fetawafih ala al-iman.[2]
Adeus
Depois da partida de Amparo, a madrilenha, Alev andou retraído. Executou suas tarefas com o apuro de sempre, dedicação a toda prova. Ele só relaxava, o mínimo, quando levava Madame à parreira, ou quando cuidava do menino Júlio. A senhora sempre pousava a mão no braço do rapaz e ali ficava por um tempo. Quando Alev se sentava ao lado dela, era tocado no rosto, com cuidado, nos lugares onde os arranhões deixaram marcas. Os toques foram diluindo, com sutileza, cada sulco. Só uma pessoa perspicaz como o doutor Wong Lam percebia este detalhe, o processo de cura. Algum tempo depois, de convívio íntimo entre paciente e enfermeiro, os ferimentos superficiais cicatrizados, Alev finalmente teve coragem para iniciar a terapia com o doutor.
Se o amigo quer localizar-se, abriu a sessão aquele homem de estranho poder, o de se fazer invisível, pense no Miradouro do Estuário do Douro, pense na antiga ferrovia do Douro, em Vila Nova de Gaia. De qualquer forma, é lugar inventado, porque é assim a cabeça de um mouro. Compromete-se a geografia, ele que é mestre em cavalgadas a camelo e a ocultar os mistérios do coração. Por terra, a madrilenha seguiria Douro acima; para penetra-la, Douro abaixo, voltaria ao Atlântico. Margearia a água do Farolim de Felgueiras, até mais ou menos a Capela da Senhora da Pedra, tendo um ponto de apoio no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e aí, onde os caminhos todos se cruzam, estaria o cerne, em meio a mil e uma noites[3]. Então, não é possível descrever ao certo como a mulher foi dar à estação ferroviária, a nossa Amparo, aos quase nove meses de gestação. Fúria. É claro que é forte, jogou bem a capoeira com o doutor Itaú, de escandalizar as colegas. Por essas e outras é que se atracou comigo, o invisível Alev, o que bancou o todo selvagem com ela, a lhe prometer luxúria e vida farta em Medina. A madrilenha meteu-me as unhas na cara, unhas que o sabão ainda não usurpou, no peito, nos braços e onde mais alcançou, mordeu-me a língua, quase que me cega. O derradeiro golpe deixou este gajo presunçoso ajoelhado sobre a bitola ibérica, enjoado. Amparo subiu no vagão sem olhar para trás. Ao olhar para frente, chorou. E a alma do invisível Alev quase feneceu. Eis o que é possível informar no momento, ou o que disse um homem um tanto embriagado, desacordado, diante de um médico de valor.
Alev passou a vigiar os passos da moça, assim que sentiu-se melhor. Soube, pelos informantes, que ela estava em algum aldeamento em Gerês. Todos no Casaredo pensavam que fora Álvaro Vilar, o fotógrafo do pasquim, a estar com ela antes da fuga. Isto realmente se deu, apenas por dois dias, muito antes do equívoco sem precedentes. É certo que o bandido tratou de atravessar a fronteira e evadir-se, por outros motivos, contudo. Tomou um navio e estava no Marrocos, livre da policia internacional, por ora. Amparo era, como se diz, sem eira nem beira. Depois do falecimento do pai, só tinha a pequena família que constituiu com Javier.
Em Gerês, Amparo contou com uma senhora cega, que a tomou como guia, teve cama e comida por curto tempo. A cega não suportava choro de criança. Quando entendeu que pusera ao seu serviço uma grávida, dispensou-a. Os dias de pouso terminaram. A primeira oferta de Alev, para que Amparo voltasse ao hospital, ao filho, resultou mais uma cena, dessa vez em praça pública, regada a impropérios e uma barriga imensa, a vermelhidão do talho de navalha à mostra, fruto da rusga entre a narcótica Adele e ela, não fazemos ideia, se o leitor se lembra desse fato. Gente agressiva, na defensiva, era do que se tratava toda história. O motivo central, ser alguma coisa, ter alguém, crer em algo, encontrar sentido. Um tanto de ingratidão, também poderíamos apontar. Pensaram, os moradores do distrito, que Alev era o pai da criança, não quiseram intervir na confusão. A segunda tentativa de levar a parturiente para casa, dias depois, o próprio Wong Lam foi fazer. O médico, que a encontrou na cadeia, contou à dama o que seus pais estavam lhe dando, que ela olhasse seus rendimentos no banco e também que o regalo acabaria em pouco tempo. Amparo, orgulhosa que era quis objetar, mas algo naquele cantonês a fazia reverencia-lo. Jamais lhe faltaria com respeito. Engoliu a sobranceria, para aflição do feto, a mexer-se e chutar sem parar. Resolveu voltar com o doutor, no conforto da furgoneta.
No Casaredo, a senhora Chang Chang contou à equipe das decisões da família Wong Chang, do apoio oferecido a Amparo, do resgate. A moça seria atendida tal qual as mães do ambulatório, com direito a seis meses para organizar a vida, sob os cuidados da casa. A vez do marido, Javier, de posicionar-se, chegou. O rapaz cobriu o rosto com as mãos e chorou, copiosamente. Era compreensível. Todos entendiam que, entre um casal, há cinquenta por cento de responsabilidade nos erros e acertos. Que traição não ocorre de hora para outra, se é que houve alguma. Chang Chang fez um sinal com a cabeça, despediu a todos com a elegância habitual e aproximou-se do bailaor. Tratou-o como trataria o filho. Permitiu que ele chorasse. Depois estimulou-o a expor suas dores. O rapaz só podia balbuciar, que sentia muito não saber amar. Chang Chang, em dado momento, lhe tomou as mãos. Contou a história de suas meninas, tão jovens. Do quanto seu coração ainda sofria. Era como se tivesse o útero oco. Disse que faria muito gosto em educar os filhos dele, se fosse preciso. Que o rapaz se sentisse um grou, para voar dali e voltar, num próximo verão, se assim o desejasse. Javier, mais calmo, pediu à nobre senhora para aguardar a conversa com Amparo. Alguns dias seriam necessários, o pós parto, as decisões seriam tomadas sem precipitação ou prejuízo para as crianças. Chang Chang suspirou, aliviada. Temia que o rapaz partisse, deixasse Júlio para trás. Nada disse ao enfermeiro, mas sua apreensão pesava no ar.
Mente obnubilada
Madame, bandeiras a meio mastro, custava a reagir. Os dias que sucederam as partidas de Amparo e da senhora Marscha foram confusos. A paciente sonhou vária vez com a companheira de leito, sentia-lhe a falta. Não se pode dizer que fossem, as duas, apegadas. Partilhavam, sim, a mesma solidão afetiva. Difícil imaginar o que é dividir um quarto com senhoras decrépitas, dependentes em tudo, o que se sente ao testemunhar surtos recorrentes, sem privacidade. Destinos cruzados, dores semelhantes, forças semelhantes, medicamentos específicos. Como explicar que a jornada de alguém é, quem sabe, uma visita breve ao país querido, aos desafetos do passado, a alguma vitória de virtude, à esperança de encontro mais nobre? Madame não viu Marscha caída na areia e isto, em termos práticos, foi melhor. Não viu a senhora vestida de laise, de olhos fechados, a segurar o lírio na mão. Não soube qual par de sapatos Chang Chang lhe deu. Não podia imaginar-se morta, ou ser lambida pelas chamas. Viu Marscha assentada na gruta, envolta em halo róseo, uns cabelos brilhosos, enfeitados de pirilampos. Marscha lhe beijou as faces, os lábios, sorriu, circundou seus ombros com guirlandas de luz. Madame sentiu, no primeiro olhar, medo de ir ter com ela, era ambiente novo. Despertou desse idílio em vertigem. Desceu do leito sabe-se lá como, para aliviar-se na comadre. Quando Gaspare acudiu, Madame tinha um arranhão feio na parte de trás da coxa esquerda.
O que justificava seguir em frente, para Madame, era escrever. Assim o fez. Tomar um café e olhar os cordames de um teatro. José Gaetano aprendeu que não se devem sobrepor os cogumelos ao refogar, senão não douram. Os dias de unir a voz em primeiras chuvas. De conhecer o sabor do vinho verde e azeites gregos, ervilhas, lentilhas, feijões. Ou de ousar dizer versos autobiográficos. Os dias contados. Intensos, demorados. Arrasados, inflamados, infeccionados, cuidados. Uma colmeia de abelhas africanas nos intestinos. E então os dias da vazão, dois rios. E depois, os intermináveis dias de esperar, que viessem outros dias infernais. Piracema, pororoca, o mar aberto, a afetividade da solidão. Às vezes o trio musical, Alois, Olivairas e José, se apresentava em tabernas no cais, a contar histórias de Conímbriga e do Mondego. Eram ocasiões de falar sobre as coisas um do outro, o que lhes ia no momento, os filhos que chegavam, duas meninas, um menino. Alois, as sacolas de pendurar, os caldos, a ginjinha. Iam e vinham, esses homens de Netuno. Eclipses. Não havia conflito ou maior afeto. O corsário José Gaetano quase que esquecia da Rosa. Estranhamente, adquiria nova consciência de si, das responsabilidades, das penas. Rosa voltava em sonho, mais branca, descalça, desgrenhada, de camisolão imundo e peitos à mostra.
A Cidade do Porto estava movimentada naquele final de outono. O cais estalava de gente, especiarias e histórias cotidianas. Lavar, engomar, cozer, arar, semear, surrar, verbos que continuavam a enternecer o distrito. Rezas, benzeções. Noite branca da Senhora-a-Branca. Ritos, preleções. Cortejos. Carnavais. Féretros. Casórios. Ocorrências. Novos espíritos a chegar. Os dias guardavam singelas lembranças. Feitos bucólicos eram comemorados em tempo de brisa e sol. Eça de Queiroz tinha razão: nos falta um crime do Padre Amaro aqui. Os mercadores negociavam aos berros as demandas, entre eles nosso amável bucaneiro. Dessa vez, José Gaetano pretendia transportar mais passageiros ao invés de carga, todavia a rota dava prioridade a produtos de primeira necessidade, a serem distribuídos nas ilhas habitadas do Atlântico Norte.
Fazemos votos sinceros, de que o leitor recorde o citado líder da Sor, seus amores e móvitos e que ele vai às voltas com inimigos ocultos, influências indeléveis para seu coração batalhador. A atual rota abrigava uma vontade imperiosa de estender prancha a tais intrusas, até para que seu diário de bordo produzisse páginas de ação. Subiu à nau um diácono, o Sena. No aperto de mão adveio a decepção, a impossibilidade de diálogo. Logo após o Sena, embarcou um ancião acabrunhado, notadamente um druida. Estavam ali dois humanos, soberbo um, telhudo o outro, com quem o comandante esperava recolher instrumentos auxiliares, de dominar algozes invisíveis. Equívoco, uma vez mais, expôs-se e não devia. O druida deu de revelar cancros, contou ao diácono a visão que teve, de um filho abandonado de José. Bastou, para o marujo ser duplamente ciliciado, em minutos. O corpo de José Gaetano não soube verter os venenos, as químicas cáusticas, e deu de adoecer. Felizmente, ainda se demoravam no cais. Pouco o comandante pode escrever sobre esta ocorrência. Viajar adoentado, com aqueles dois patetas a lançarem o fogo do Hades sobre ele, era tortura dispensável. Foi a primeira vez que José deu a Sor a outro comandante, o capitão-mor Alfonso Uchoa, jovem mercante basco, de passagem pelo Porto. José quedou-se no distrito, a convalescer. Seria improdutivo incendiar seu organismo com mezinhas obscuras. Cometera, sim, um erro grave, não era o caso de matar-se, era reparar o malfeito. Onde tudo isso ia dar? Quanto chão para gingar?
Quando assenhorou-se de si, José percorreu à pé a trilha até Vigo, como que em peregrinação. O mar das terras do seu nascimento deu-lhe testemunhar assombroso fato. José Gaetano, seu costume de ocultar-se entre as pedras à noite, a observar a praia, armou o cenário. Madrugada, punhal ávido, um cantil. O corpo da dama ficou à mercê da maré, o corpete, a camisa a saia a anágua as calçolas. As ondas pungentes ensartaram pedaços daqueles panos destroçados. Um último encontro, ao que pareceu, e não houve o que salvar. À traição. O que se quer de uma mulher? Na Terra inteira, o que se quer? Maternidade. Bondade. Castidade. Uma escuta, neno, leite. Uma doida, uma maçadora. O que José testificou ali? Um fratricídio, após violento abuso. Quando ele despertou, estremunhado, a manhã ia alta, ondas supinas. José Gaetano, estômago engulhado, deu voltas na areia. Nada revelava sentido. Um fado de Carminho, um quarto. Sua consciência a cobrar tento.
Um coração que se partiu
Que está sem nada pra dar
É este quarto vazio, é este quarto vazio
Onde nem lá cabe o ar[4]
O mar de Vigo, traduzido em plâncton, em uivo, em palavra sã, acolheu José e o banhou. Três meses passou ele assim, em silêncio. Homens conseguem ficar quietos. José refletiu sobre os símbolos da jornada, de sono, de sonho, de vigília. Pensou na ira que o esgotava. No que gostaria de dizer. Fazer. Sabia que inspiração não movia ação. Ficar parado era remédio. Sem Alois, sem Rosa. Sem José. Esperou. Da janela da estalagem, o bardo consultou os mapas. A Sor retornaria, isto era bom. Em vinte de dezembro, José Gaetano tornou à nau e lhe fez um poema. Seus olhos de viajor seguiam o horizonte azul de metileno, base de seus cálculos, longe do céu, perto demais da terra. As estrelas eram seu livro de cabeceira. Saudade do Donis, melhor dizer privação. A Rosa agora estava nua, ferida, a mão pendurada em uma aldrava. E agora, José?
Hoje os versos deram de embolar. E foi uma pendenga entre sextante, carta náutica e luneta. Um não encontrar metáforas, um caducar sem sabor. A fé, em seu rezar, entoou velha ladainha. Almejava se salvar. Sor, acolhe meu cantar.
O mar, a resistência, o parto, a música, a compaixão, a morte, o esquecimento, conviviam em comodato no Casaredo, quando o doutor Wong Lam voltou da viagem de resgate. Alev sumiu-se no sobrado. Gaspare não tomaria parte na cena. Tampouco Javier. Os homens. Amparo chegou ao ambulatório com contrações a cada quatro minutos. A doutora Cusa acolheu-a com bondade. O pensamento corrente: maternidade, ato caridoso. Fora disso, carceragem. Nada era de julgar, apenas um ar férreo, a cobrir tudo. Ava, a par da situação da família de Javier, chamou a enfermeira Bernice. Em menos de meia hora, o bebê viu a luz da atendente, mamou leite de doação e agora dormia, enrolado em tecido, as mãozinhas protegidas por pequenas luvas. A mãe descansava, um tanto ausente, sem leite para amamentar. Estavam ali começo de jornada e final simbólico de relacionamento, unidos pela lua crescente. Há algumas questões que não se explicam para a maioria dos humanos, não há razão que dê suporte. O coração se cala.
À beira da praia, em meio a barracas que se erguiam, Javier estava pronto a cumprir o que combinara com a senhora Chang Chang. Aguardaria autorização da obstetra para conversar com a esposa, da qual pretendia se despedir dignamente. Seria humano, fiel à temperança do próprio caráter. Cada ponta e salto de sapato quicado, cada tablao que pisara nos últimos tempos, vincou-lhe a alma de serenidade. Não era ele, eram Júlio, Esmeralda, era também Amparo. Era o Casaredo. Era o flamenco. Era a arte. Nada seria descuidado. Não havia dúvidas sobre a paternidade, Amparo pediu o teste. Não era este o ponto.
A menina, Esmeralda, foi recebida com reservas por Júlio, Javier apresentou-lhe a irmãzinha na noite do nascimento. O garotinho a susteve, contudo não sorriu, nem quis oferecer-lhe a mamadeira. Estava como que desconfiado. Ainda não vira a mãe, mais de um mês se passara. O menino negava que ela estava acamada, que não pediu para vê-lo. Matilde esteve perto durante todo tempo, para que ele não se sentisse órfão, para que soubesse esperar. Só no colo dela ele aceitava se abrigar, apenas por alguns minutos. Chang Chang estendeu as mãos igualmente, o menino as tomou com respeito. Júlio só pode chorar tempos depois, junto de Madame, quando aceitou que a mãe partira. O instante do encontro entre irmãos, J.G. o registrou. Foi o primeiro nascimento em sua lousa. A senhora Marscha esteve ao lado do pequeno ser, a afagar-lhe o cabelo, amparava os braços da criança maior, que se recusava a acolher o bebê.
A senhora Chang Chang havia preparado a Feira da Roda Girante na praia, em comemoração ao Dia da Travessia. A festa ocorreu três noites após a chegada de Esmeralda. Uma lua esplêndida despontava no mar quando as primeiras luzes foram acesas. Aqui também é bom lembrar ao leitor, do dia em que a ala da Assistência do Sanatório Marítimo do Norte foi transferida à pé ao Casaredo. A história era bonita, valia a pena celebrar.
Uma cantaora espanhola de vulto aceitou apoiar o evento e realizar uma récita de abertura naquele lugar idílico, com músicas de seu álbum En un mundo raro, além de outros sucessos, como Las Palmeras, canção preferida do enfermeiro Gaspare. Um tablado foi erguido ao lado do palco principal. Um grupo de bailaores sevilhanos se apresentaria após o show. Tendas foram harmoniosamente armadas ao redor do palco, para servir de concentração e camarim aos artistas. A Desembargadora Luariz Sezna viria, alguns políticos locais, diretores de outras casas de saúde, dentre outras personalidades. O jornalista Jeronimo Alcântara colheria dados para sua crônica. Uma jovem gentil era sua nova fotógrafa.
A roda girante, multicor, deu tom romântico à angra. Quando o sol dormiu no poente, aquele monumento jorrou luz sobre a mata marinha. Girava ao ritmo das ondas e do realejo. Os apaixonados entraram na fila. Os solitários puderam chorar tranquilos. A noite prometia. Aroma de pipoca, castanhas assadas, algodão-doce, maçã-do-amor, sardinha frita, cerejas frescas, pasteis-de-Belém, pudins de clara, travesseiro açucarado, olivas, sangria, brilhantinas e colos femininos misturavam-se, condescendentes, à maresia. Músicos dos distritos próximos instalaram-se entre as barracas de petiscos, produtos da terra, do mar, importados de Espanha, França. Disputavam pacificamente as pausas do palco para inserir ao ambiente voz, formas, estilos e instrumentos musicais os mais variados. Bailava-se com os pés na areia. Cantava-se em coro. Passeavam as mãos enlaçadas, braços dados, costas à mostra. O olhar percorria as permissões, o sereno.
O quarteto musical do Casaredo não tocou naquele evento, o repertório que amadureciam cabia melhor em ambiente fechado. O sanfoneiro, contudo, não pode ficar de fora na festa. Chang Chang encomendou-lhe um encerramento alegre, duas horas após o show de Martírio e do Tablao Sevillano. Gilmar tocou, acompanhado por Alev no dumbeque, com direito a fogos de artifício e um dragão, trazido por amigos de Te Dan. Gilmar fez contato com um zabumbeiro seu amigo, que cursava pós graduação em Coimbra. Gaspare se deu bem ao tocar o triângulo. Clarice Silva, além de ser excelente sambista, tocou tamborim, pandeiro, címbalos e castanholas. A esposa do zabumbeiro, Lalita, prendada no acarajé, fez questão de montar uma banca do quitute perto do palco. Ficou famosa durante a festa. Estava armado um bom forró de pé de serra. Até Martírio, que programara partir assim que desse seu bis, deu logo três e ficou, para dançar com Manoel madrugada adentro.
Todos os pacientes que podiam caminhar circularam pela praia durante algum tempo, acompanhados por voluntários. A senhora Chang Chang providenciara para todos calças pescador, camisas, sandálias e vestidos leves de algodão. Ninguém diria serem moradores do Casaredo, apesar de alguns precisarem de fraldas. Todos sorriam, atuavam, dançavam, cantavam, socializavam. Os voluntários estiveram por toda semana no hospital, participaram de treinamentos e estabeleceram vínculo com quem conduziriam. Receberam instruções para trazer de volta o idoso, ao primeiro sinal de instabilidade. Maria, Joana e Josefine estariam de plantão, em alternância com Matilde e Catarina, todas com seu momento de estar na praia garantido. Os pares caminharam pelos corredores da casa, pelo pátio, até os portões, acompanharam a montagem das barracas. Uma relação de confiança se estabeleceu entre o pessoal do hospital e essa gente boa do voluntariado, presente e disponível. Se os pacientes não tinham família, tinham a comunidade solidária, que lhes doava carinho sem nada pedir.
Fazia pouco tempo, a partir da notícia dos partos realizados pelo Casaredo, as mães passaram a ser contempladas com mimosos enxovais, fardos de alimento, doados pelos moradores de Vila Nova de Gaia e outros distritos. Até ofertas de lugar para morar e cuidar dos filhos houve. Muitas mães se firmariam a partir deste intercâmbio, passariam a prestar serviços essenciais em diferentes localidades. O selo da parceria comunitária foi divulgado também naquela noite festiva.
Madame fora à praia em sua cadeira, antes de a festa começar. Alev a seguiu com sutileza, embora ela fizesse gosto de sua presença. Quem a acompanharia, à noitinha, seria Gaspare. A senhora se aproximou de Javier, que trouxera o filho para brincar na areia, o cão Santur sempre com eles. Alisou a cabeça do animal e ficou assim, perfilada diante do silêncio.
Outros contos de Javier
Javier ofereceu a Madame os Contos de Orcabal para ler. Foram compostos em apenas um parágrafo ou mesmo uma frase. Sem ser pretencioso ou almejar o posto de escritor, Javier dava vazão a sentimentos desta maneira. Era preferível escrever, dançar, do que os comer ou beber ou fumar, como faziam alguns conhecidos seus. Estendeu as páginas a Madame, arquivadas em uma capa resistente, de couro marrom. O primeiro conto descrevia a saga da esposa em Gerês.
Era uma vez uma maleta, um vestido alargado, as cartas de começo de namoro e uma foto de família. O cobalto mar à tarde, o desenho do menino, a cauda do cão. Do enquadramento, inteligente e simples, esperança. A sala de parto, as contrações. A mãe deu à luz com suor copioso e um ou dois gemidos, foi o que contaram. Seus seios ainda firmes não verteram leite. A moça não disse ai. Três dias mais tarde, partiu. Deixou para trás a maleta e os filhos. Diz-se que seguiu com uma trupe de ciganos. Conto do vigário.
Madame demorou-se diante do texto e então repetiu seu gesto conciliador. Segurou o pulso de Javier e ali permaneceu, enquanto Júlio erguia mais uma torre do castelo na areia. Quatro personagens a interagir com a umidade, a aspereza e o sal, um ou outro siri que ousava por as garrinhas fora. Madame percebeu a precariedade dos próprios dedos dos pés, o inchaço, a cor. O quão belos eram os pés daquele bailaor. Ela ainda não o vira dançar, ficaria apaixonada. Ergueria o corpo murcho, tremeria sobre os calcanhares, teria os lábios beijados e de novo amoleceria, que os quadris já não eram castos. Cada qual e seu mar. Por alguma razão, encadeou, de memória, os termos cabeamento, hidráulico, elétrico, de cobre, fibra, conexão com o divino que se fazia e desfazia. As cavernas que as pessoas inauguram entre si são de dificílimo acesso. É como falar de Al-hisan, em aramaico ou qualquer idioma comum, sem dizer de onde o conhece. Cada qual e seu conto, seu ponto. Madame olhou para o rapaz, para a criança, para Santur em posição de descanso. Javier compreendeu, contentou. Seguiria perto de Madame, perto deles, até que os dias se cumprissem. Bailaria em dias de folga. Sentia-se forte. Lúcido. Havia, agora, Esmeralda.
Da moça que veio de Gerês, sabia-se que repousava na enfermaria do ambulatório. Ela, muda. A situação criada era, de certa forma, inteligível. Quando uma mulher era dona de si? Madame deixou pai e filho diante do mar e foi visitar Amparo. Uma ponta de orgulho as separava em muitos mares, um rosário de ressentimentos por filtrar, quando uma filha tem sua mãe. Amparo escolheu calar. O caso da narcótica Adele, o que poderia ser feito a respeito? A pergunta de Madame ficou no ar. Por fim, Madame desculpou-se pelo pouco que doava. Estendeu a mão sobre o coração daquela mulher e desejou reconstrução. Amparo então contou que, enquanto esteve em Gerês, foi visitar um presídio de mulheres, local que achou mais adequado ao seu estado. Foi pedir abrigo, talvez trabalho. A carcereira se compadeceu, pela barriga proeminente. Indicou-lhe a mulher cega a quem deveria procurar. Amparo foi acomodada em um banco no corredor da prisão por aquela noite, para não ficar a mercê da chuva. Exausta, pode ver e ouviu outras mulheres a chorar, a acariciar-se nas celas. As mulheres, aproveitando-se do ruído apneico da carcereira e dos trovões, falaram durante a noite inteira. Histórias de abusos físicos, psíquicos, privações, uso de drogas, comércio do corpo, dinheiro contado e nenhum, dos momentos de muita precisão, da falta de escolha, de escrúpulos. Da solidão. Amparo foi considerada, em parte, diferente delas, permaneceu de fora na conversa. Ao se despedir, a futura mãe murmurou que não poderia ser livre enquanto as mulheres permanecessem presas. A guardiã das chaves deu de ombros. Amparo sentiu falta, enquanto narrava a cena de cárcere, do cheiro de raposa molhada que a policial rescendia, do regougar. Madame apenas murmurou que gestar criança pregava muitas peças. Que tudo haveria de ficar bem, se a mãe fizesse o bem.
[1] I Ching, O Livro das Mutações.
[2] “Senhor Deus! Absolve os nossos vivos e os nossos mortos, aqueles de nós que estão ausentes, tanto as crianças como os adultos, os homens como as mulheres! Senhor Deus! Àquele a quem Tu permitiste viver, faze-o viver no Islam e àquele a quem retiraste a alma, faze-o abandonar este mundo sendo crente”.
[3] Contos populares do Médio Oriente e Sul da Ásia; foi apresentado ao ocidente, em 1704, por Antoine Galland.
[4] Fado, Carminho
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