Hospital Casaredo 62



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Aevum


 

Travessa das Cocheiras, Faro. O garçom jovem trouxe o lápis de pontas opostas, muito aparado. Cortês, fez-lhe sutil mesura. Sob o toldo da casa de fado, sentada a uma mesa de canto, a visão obnubilada pelo vinho, era cedo, ela abriu seu primeiro caderno de lembranças. Estava só. Na contra capa do caderno, de espiral azul, desenhou uma barca em direção ao sol, feito tema de azulejaria. Dentro do fluido marítimo que representou, ondinhas miúdas, tez macia e azulada, quase que bordou o nome Sor, caligrafia gótica. Na página seguinte plantou no alto, à esquerda, a palavra em latim, supostamente o título do prefácio. Deu mostras de que iniciaria a narrativa, porém baixou o lápis diante do copo, juntou as mãos sobre o rosto e não pode chorar. Levantou-se, tomou o que era seu, uma sacola a tira colo, e seguiria a caminhar pelas pedras, trôpega, destino incerto, talvez norte. Sentou-se, ainda um pouco, o caderno aberto novamente, e um parágrafo nasceu.


Composta como pode, cabelos fartos amarrados com fita nova, casaco púrpura de marinheiro a esconder a camisola, lavados, corpo e tecido ao rio, esteve àquela mesa a noite toda a rapariga, já não tão moça,  em companhia de um homem de meia idade, muito belo. Eles pouco falaram. Queriam mesmo os olhos um do outro, que marejavam a cada murmúrio da guitarra, a cada verso pronunciado por Alfredo Marceneiro[1].

 

Cotidiano

 

Ao juntar do piso e fechar o caderno de Madame, que fora arremessado em direção à porta, a enfermeira chefe Maria leu o parágrafo que dormia na página, razão do pequeno ataque de fúria. A cabelos de fogo, mais ouriçados estes que o usual viera antes, ralhara, acalmara, aplicara o sedativo. À maneira de contenção e corretivo, a enfermeira Matilde não alcançou o objeto da birra à indelicada, acreditando piamente que fazia o certo. Maria entendeu. Por razões tão antigas quanto as águas do mar revolto daquela manhã vibrante, sentiu a dor da senhora, a da colega igualmente. A que trazia consigo, não a pode chorar. Apenas colocou a relíquia ao alcance da mão que dormia e seguiu com sua atribuições. Entrou no dormitório cinco e se dispôs a organizar os pertences do novo paciente, o qual fazia um sono agitado, o senhor Ernesto Estridian. A lide da enfermeira chefe nos dormitórios masculinos se limitava aos pacientes e não aos seus pertences, entretanto algo lhe chamara a  atenção, de forma irresistível: dois estojos que, ao serem abertos, revelaram um soberbo clarinete de ébano e um flautim, ambos cobertos por densa película de fungo. 

 

Ernesto fora avaliado ao chegar, pelo doutor Pedreira. Trazido por uma senhora espanhola, estava apático, vomitou bile. A mulher informou, chorosa e dramática, ser a cuidadora do músico, que não recebia proventos há dois meses, que a família deixara inclusive de comprar alimentos, que não havia remédios e que ela não sabia mais como agir. Ernesto apresentava mente confusa, espasmos musculares e visão obnubilada, balbuciava apenas monossílabos. O velhinho tomou água e um caldo com sofreguidão, estava visivelmente desidratado e mal nutrido. Dormiu, logo que foi acomodado no leito, sob efeito de sedativo. A cuidadora, que se recusou a revelar o nome, entregou a maleta que trouxera, dispensou os cuidados oferecidos também para ela; queria ver-se, logo, fora daquela situação alarmante. Sentiu que cumprira seu dever humano, que nada devia e preferia nada cobrar. A equipe de plantão optou por deixa-la ir. Alev, o homem invisível, a acharia, caso fosse necessário. Soube-se, dias depois, quando o músico pode falar, detalhes suficientes sobre sua historia, dentre eles que podia pagar pela estadia.  


Maria deixou os estojos abertos sobre a mesinha de cabeceira, a ver se inspiravam seu dono. A paciência foi oportuna, o resultado veio. Ernesto tomou de uma flanela, que o enfermeiro Manoel deixara ao alcance da mão, limpou devidamente ambos os instrumentos musicais. Gilmar, o enfermeiro brasileiro, discreto, tratara os fungos e substituíra a palheta avariada, nos momentos em que o paciente dormia. 

 

Com voz sumida, a soar pela primeira vez desde que chegara, Ernesto pediu a Gilmar que o levasse ao pátio. Eram quatorze horas. Perguntou se poderia tocar o clarinete. O atendente, sensível, conduziu o homem à frente da Capela Rosália. Ernesto Estridian passou a primeira hora a testar a embocadura do instrumento, ajustar a palheta. Tocou notas longas. Impossível descrever em palavras o efeito do exercício. Hipnótico, para ser razoável. Os trechos que o senhor entoava, para bom entendedor, remetiam à Sinfonia três, de Mahler. Vieram então escalas, não de forma linear, diatónica ou cromática, mas arabescos formosos, de sutis ascendências, descidas estonteantes. Na segunda hora de experimentação, o primeiro músico a se aproximar foi Te Dan, fascinado pela sonoridade. Em breve, ambos construíam perguntas e respostas sóbrias. Dali a pouco chegou o enfermeiro Gaspare, para costurar os baixos dos diálogos ao violão. Quando o sanfoneiro chegou, e o leitor se lembre, era Gilmar, no que abriu o fole, provocou em Ernesto o impulso de rir através do clarinete. O grupo, após algumas perguntas e respostas sonoras, engatou a Asa Branca[2], entremeada por improvisos de ótima qualidade técnica. O exercício, fruído dos dormitórios, infundiu em J.G. a produção de um desenho peculiar, anotado na lousa em hora inédita.  A imagem revelava a senhora Marscha, sentada no ataúde, perfilada em seu vestido de laise, sapatos de salto alto, a deleitar-se com a harmonia do conjunto musical. Uma extensão da dama abria, de par em par, a porta da Capela, feito anfitriã de um sarau. Outra porção do ser róseo aparecia ao lado de Ernesto, a tocar-lhe o ombro com a mão direita. Ao dar com a foto do desenho, nas mãos da doutora Dung Hahn, o doutor Luiz Pedreira foi acometido por forte emoção. Após refazer-se e apreciar com vagar o trabalho, foi verificar pessoalmente o alerta da câmara fria, onde se encontrava o corpo de Marscha. Tudo caminhava de acordo. A noite do primeiro dia de guardamento chegou. 

 

Ernesto Estridian revelou-se pessoa amável para com todos. Os enfermeiros acompanharam sua rotina. Às dezoito horas ele se recolhia ao leito, sem precisar supervisão. Despertava às vinte e três, dirigia-se ao banheiro e depois perambulava pelos corredores até meia noite e quinze. Então, tomava chá no refeitório, carinhosamente deixado em uma bandeja pela enfermeira Josefine, a garrafa térmica, uma xícara e dois biscoitos de polvilho doce. Depois do pequeno lanche, o músico podia dormir até às três e quinze. Entre curioso e atraído pelo senhor que desenhava, Ernesto caminhava pelo corredor. Parava diante do dormitório em que ficava J.G. O desenhista seguia com seu trabalho, imperturbável. Às quatro e meia, Ernesto ia ao banheiro. Então saia, sentava-se em um banco do roseiral, à espera de Maria. A música que produzira, durante a tarde em tela, atrasou o relógio de Ernesto em duas horas. Conciliou o sono, portanto,  às vinte horas. À uma da manhã, depois de ir ao banheiro, o clarinetista andou até o portão um. O porteiro Silva não viu mal em o deixar seguir até a praia. Por via das dúvidas, acionou o bip de Alev, o homem invisível. J.G. apareceu logo depois, surpreendendo o porteiro. Dirigiu-se a ele com um sotaque muito carregado e cortês. Pediu para acompanhar o músico, que já ia longe. Silva sabia que aquele comportamento era estranho, porém não se opôs ao movimento, não flagrou perigo, para si ou para os velhinhos. Naquele instante pensou, simploriamente, que o hospital não era prisão. O porteiro Jeff, que em geral atendia ao portão dois, veio render Silva. Nada disse, não tinha autoridade para repreender o colega.  Tampouco Alev fez qualquer comentário. Na praia, Ernesto molhou os pés e sentou-se diante do mar, negro naquele momento. J.G., humilde, sentou-se ao lado. Trazia a lousa e o giz branco. Riscou nela um pentagrama, mesmo sem enxergar o que fazia, anotou a melodia de Mahler. Uma amizade de pauta, pausas e notas longas nasceu daquele encontro. Alev, tranquilo, deixou-os em paz. Abriu uma espreguiçadeira para Maria, que veio ao seu encontro, carecida de ar e repouso. Ela tomaria conta dos dois, a alguns passos, discreta. Combinou de chamar o colega, caso alguma emergência se apresentasse. Os novos amigos ficaram lado a lado silenciosamente, até o raiar do dia. Maria percebia, em ambos, um sorriso de satisfação. 

 

O grupo de Lian Gong chegou, a tempo de testemunhar a nova amizade. Ernesto, desse dia em diante, passou a se exercitar, J.G. ao lado. Os velhinhos acompanhavam os movimentos que lhes eram possíveis, com o auxilio do enfermeiro Gaspare. Com o passar dos dias, reajustada a andarilhação da madrugada, o clarinetista retomaria o fôlego e firmaria a musculatura necessária para bem conduzir a sonoridade do instrumento. As dores no ombro direito, que o incomodavam sempre que um enfermeiro o ajudava no banho, ou na troca de roupa, não mais o visitaram. J.G. passou a desenhar também diante do mar. A segunda noite do guardamento teve início.

 

Passaria o funeral da senhora Marscha, e então Ernesto Stridian iria à Capela Rosália para tocar, sempre às quinze horas. J.G. o seguiria, para ouvir de perto e desenhar. Era um período de estudo. O músico levava também o flautim, de sonoridade áspera, criança voluntariosa que carece doma. O homem revelou-se excelente pai. Tal prática disciplinada cativou o quarteto do Casaredo, que estudava com mais afinco, para poder acompanha-lo. Gaspare adquiriu um violão novo. J.G. encontrou mais lugares para desenhar.

 

Cadernos e canções de adeus

 

Após recuperar-se de mais um surto leve, ainda em estado de alheamento, Madame voltou a escrever em seu caderno, frases soltas, enigmáticas. Gaspare, aliviado, digitava os documentos novos e também textos antigos. O exercício fazia bem a ele. Já se contavam duzentas e dezenove laudas, cacos de histórias que se intercambiavam, sem voz definida. Várias revisões foram feitas, supervisionadas pela senhora Chang Chang, que lia os originais e o trabalho do enfermeiro. Às vezes, a senhora sugeria a Gaspare mantivesse o corpo dos parágrafos intocados, mesmo que soassem obscuros. A maior parte do conteúdo era compilação exata das anotações de Madame. Os cadernos, os já digitalizados, ficavam protegidos em um cofre climatizado, na sala do sábio Wong Bohai. 

 

A primeira partida de Amparo foi narrada por Madame com respeito. A decisão da moça deixou cicatrizes não só para a família, mas para a organização do hospital. Não podendo mais contar com ela para chefiar a equipe de vinte e cinco trabalhadores dos serviços gerais, Wong Bohai pôs-se a entrevistar novos candidatos ao cargo, todos sabemos, ninguém é insubstituível. Com a madrilenha, a equipe funcionava à perfeição. O administrador consultou sua esposa. Estavam dispostos a manter financeiramente a futura mãe, ao menos até o término da licença maternidade. Então o contrato seria encerrado, por justa causa. Calculavam, desse modo, que a moça poderia seguir seu caminho ou, quem sabe, voltar ao trabalho, ao compromisso com os filhos. Faltavam poucos dias para o parto. 

 

Javier, após várias sessões terapêuticas com a doutora Dung Hanh, encontrou a boa nova de seu talento. Voltou a ser lúcido. Sentiu, talvez não pudusse conhecer o segundo filho, porém seu coração estava pacificado. Alev, o homem invisível, mantinha o colega a par dos movimentos da esposa, embora Javier não demonstrasse interesse em resgatar a conjugalidade, ou fazer exigências. O homem invisível partilhava outros dados da fuga com o doutor Wong Lam e recebia dele orientações para cortar vínculos emocionais, caso fosse genuína a vontade de auxiliar.  

 

O relacionamento de Alev com o menino Júlio lembrava o de um avô, embora o rapaz tivesse quase a mesma idade de Javier. Espontaneamente, o mouro ensinou à criança ler e escrever. A vontade nasceu da figura da raposa, em uma página de Saint Exupéry. Júlio queria entender, ler sozinho as falas do animal, dirigidas ao Pequeno Príncipe, em especial sobre cuidar de quem se cativa. Alev trouxe vários livros com ilustrações ao garotinho, contou-lhe muitas fábulas, bem como histórias de ciganos, suas longas jornadas desde o Paquistão até a Espanha, povo de diáspora, sem pátria, sem raízes, a não ser as do coração. Os ciganos estavam destinados a seguir viagens difíceis, dizia Alev, em geral em carroções. Lembravam, de certa forma, revoadas de flamingos. Quando o enfermeiro mencionava estas aves, os olhos de Júlio se enchiam de uma luz peculiar. Naquele período da jornada, os ventos formatavam nuvens com a densidade de edredons leves. O menino já presenciara a migração das aves, com destino à Praia do Sal. 

 

A chuva escasseara nessa ocasião dorida, de separação, havia contenção para o consumo de água. A imaginação corria fértil por todo hospital. Da ampulheta, a areia continuava a verter, imperturbável. Os pêndulos seguiam a mover-se, sem pausa. Estes acontecimentos enchiam o coração de Júlio de um sentimento maior que sua infância.

 

 [1] Fadista português 


[2] Canção brasileira, composta por Luiz Gonzaga





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