Hospital Casaredo 57





Hora das marés


Talvez eu tenha errado a mão, dizia o breve bilhete encabeçado pelo nome Kyle. Gaspare o flagrou sobre a bancada onde Madame escrevia, no Atelier Loto. O enfermeiro deu com a mão direita na testa, realmente não desvendaria o enigma das cartas, a não ser dessa forma. Não, não se tratava de descuido, ou mesmo provocação. Madame apagara mais uma vez, lápis ainda no ar. Sem tardança, o rapaz a conduziu à enfermaria, onde a doutora Ava prestou os primeiros socorros. Ambos dispuseram a paciente ali mesmo em uma maca, para observação. Gaspare beijou a testa da senhora e foi respirar, sentado em um degrau do complexo. Pela primeira vez, precisou concordar com o colega Gilmar, trabalhar no Casaredo era perigoso. O sol anunciava as seis horas do dia nascente. O impulso foi abriu o bilhete, amassado, no bolso do macacão.

 

Quando eu penso em teu momento, penso também no meu, a redação seguia. Então me vem mais apelos: não te precipites, com nada. Melhor mesmo é não dizer nada. Sei que meu desvelo é tardio. Porém, afetuosamente afirmo,  a precipitação é irmã da revolta. Falo-te assim pois, apesar de mais velha, lenta, sou precipitada. Não há controle de danos para a precipitação. Perde-se tudo e ainda há mais endividamento, de toda ordem. O endividamento emocional é o mais pernicioso, por isso tenho insistido tanto, nada de palavra falada ao vento. Não leia o que escrevo como palavra de amigo. Palavra de sofredor, é mais justo. Poucos se dão conta do valor de um companheiro de infortúnio, não me surpreenderia o teu desprezo. Não, meu caro, não sou inocente. Estou a quitar dívidas densas. Tome este desabafo como um incentivo. Temos, qualquer dentre nós, a dádiva de reparar lances mal processados, em qualquer tempo e lugar. A lei é clara, justa. Cumprirei o que me cabe, desejo que os trabalhos encerrem pouco antes de eu partir. 

 

Eu te vi cantar, meu caro Kyle, e cantar é luz, escrever é luz, talhar a madeira é luz. É preciso sentir tal máxima, colocar intenção no gesto. É o que faço agora. A máscara vai posta, primeiro em mim, depois em ti, que não é mais criança. És homem. Homem chora, homem dói, homem fraqueja, dobra o joelho e dá à luz. Se todos se lembrassem de que a Terra é uma prisão, todos teríamos mais respeito, pela água, pelo ar, pela terra, pelo fogo – luz; pela proteção da vida.

 

Sumiço


Hora das marés, disse a si mesmo Javier, por demais dramático na manhã em que entendeu que Amparo fugira de casa. Até que descartasse o fotógrafo Álvaro Vilar do desacato, esteve ao seu lado um Alev em silêncio, consolador. Vários documentos, provas cabais, dispostos em uma caixa graciosa, com fecho, esperavam sobre a mesa da sala do sobrado, o quadro na parede em fúria. Tantos deslizes, tantas gentes no hospital os cometiam, tudo flagrado em zoom. Quem não pecou, que lançasse a pedra. 


Os enfermeiros, sentados sobre a murada sul, apreciavam o sanatório de Mont’Alto, mais calados do que Alev inspiraria em outras ocasiões. Não há o que fazer, foi o que Alev disse, a quebrar o gelo, e sua voz era uma trovoada. Ainda perguntou o que Javier realmente sentia a respeito do assunto. Pergunto-me por que me casei, respondeu o homem, mais belo, agora que se sentia ferido. Há que se pensar nas crianças, ponderou Alev. Ela deixou Júlio para trás, choramingou o soturno enfermeiro. O que você fará por Júlio, atrelou o outro? Vai aumentar-lhe o abismo? Vai renega-lo? Júlio é mais forte que todos nós, devolveu o pai. É certo, porém ele precisa de uma referência firme, alegre, assertiva, senão vai perder-se. O menino precisa, está me entendendo? Alev, como que incitado, seguiu a orientar. A mulher, em geral, carrega a fama de possuir sentimentos indulgentes. Não lhes tiro o mérito, atalhou Javier. Fato é que, no momento, fascinada ou desejosa por libertação, Amparo levou os sentimentos pelo menino consigo. Tu tens sentimentos pelos dois, Javier, não prives a criança deles. Não condenes a moça, deixa-a ir. Se um dia ela resolver voltar, ambos retomam ou encerram a história, como deveria acontecer sempre. Estabeleças um tempo. Depois disso, concluis de si para si, sem ressentimentos. A voz de Alev ganhava coloridos ácidos, era penetrante. Quantos rinocerontes e linces ibéricos gostariam de escutar os rugidos deste enfermeiro alfandegário, seu rilhar de dentes, as mentes reconduzidas por empatia, as notícias de perdão enviadas ao cais. 


Perigo


Ainda na enfermaria, Madame pediu seu caderno. Sentia-se-lhe na voz um desassossego pungente. As prateleiras das livrarias estampam, toda semana, ela escreveu, uma capa nova sobre assuntos de dissolução e dor. E há os que assim prefiram se alimentar. Entre encomendas de vingança, desejos de posse, espirito lesado, afrontado, meninos padecem, sem entender que podem escolher fazer outras coisas na jornada, cuidar, muito bem, de muitos filhos, pais, irmãos. Quantas histórias descambam para este viés da retaliação, e duram centenas, milhares de anos, trocam-se somente as posições de algoz e vítima. Haja estrelas para guardar arquivos nefandos, haja reformatórios. Haja casas de apoio a crianças abandonadas, asilos como este Casaredo. 


Ainda diante do Mont’Alto, os colegas ponderavam. Viste a menina que chegou pela manhã, Javier? Alev ampliou o gesto e deixou as mãos baterem com estrondo nas próprias coxas. Doze anos, meu caro. Vai parir seu neno sem ninguém. O que será desta mãe-criança? Da cria que está vindo? Soube-lhe a bela história de folhetim? O pai seviciou, espancou, drogou, até que ela surgiu grávida dele. Então, foi largada na praia, enlouquecida. De diamorfina, não se volta. Ainda faltam alguns fios soltos desta sua história, Javier. Com o tempo, para que nada de mais grave ocorra, tudo se esclarecerá.


Matilde, que não subira ainda à murada sul, gritou pelos colegas mesmo do chão. O pager deles devia estar desligado. Demorou um pouco e Javier a viu, gigante e esbravejando. Júlio tinha ingerido umas frutinhas venenosas que encontrara na vegetação rasteira da praia. Escapou pelo portão três, foi encontrado por Bernice, que sentiu falta dele. Parecia que o grupo perdera o controle da situação. Alguém deveria ceder.


O caco de tarde na caverna 


Em momentos de grande apreensão, Madame queria ajudar. Algo no proceder dos atendentes denunciava notícias ruins. Alguém querido estava em apuros. A senhora desceu da maca e quase se sentou na cadeira comadre. Quando deram por ela, tinha se arrastado até a lavanderia. Manoel encontrou-a exausta, apoiada em um cesto de roupas passadas, por sorte não se feriu. Ele acercou-se dela com o cuidado de sempre. Perguntou se poderia carrega-la nos braços até uma cadeira ou se ela preferia que a cadeira lhe viesse. Demorou um pouco até a senhora responder. Tocou-lhe o pulso, ali permaneceu. Ao suspender a senhora, Manoel notou o quão magra e pequena ela estava. Foi natural que a cabeça da velhinha se encaixasse sob seu queixo e ele, enquanto caminhava pelo pátio, muito devagar, cantou Lembra-te sempre de mim[1]. Que bela voz de fadista tinha o Manoel. Ali, murmurada ao ouvido da senhora, era uma joia da natureza. Quão sábio foi o inventor da voz. Quão diligente foi aquele que a desenvolveu e lhe deu textura, identidade. Quanto a voz diz de uma pessoa, quantas revelações. E o que dizer das canções, da força, da história que carregam, das vidas que embalam. O mesmo poema, a mesma melodia, o mesmo levare e a voz de quem a pronuncia, quanto auxílio. E o ouvido que frui a dádiva e a decodifica? Por alguns instantes, Madame suspirou aliviada. Morrera. Finalmente o anjo tutelar a viera tirar das aparências, transportar às essências. Flutuava, como pérola guardada pela concha, e a concha era aquela voz. Despertou quando sentiu as lágrimas do outro a deslizarem sobre seu rosto. Nunca tinha vivido uma chuva dessas. Uma imensa compaixão a moveu. Dali a pouco Madame chorava também, soluçava. 


Aquela comoção era por amor. Um pouco tarde para amar. Ou talvez o momento preciso. Manoel andou com a senhora nos braços até uma gruta, próxima ao Casaredo. Havia luz e sombra suficientes, um lago sulfuroso de estranho azul e pedras, onde se podia sentar à beira. Ambos, diante daquele santuário natural, foram recuperando a tranquilidade. Pela magreza, os dedos das mãos de Madame pareciam muito mais longos. Ela apontou adiante, mas o que via só seus olhos podiam decifrar. Os vagalumes bailarinos enchiam a caverna e cantavam, juntos, Lembra-te sempre de mim. Para Manoel, curiosa sensação. Estava em paz e ao mesmo tempo revolvido. Pensou em uma mulher. Pensou na senhora jovem, cheia de corpo, cabelos fartos, peitos generosos. Imaginou a história que a trazia até seus braços. Enxergou os filhos, dois, um menino, uma menina. Um jardim circundado por bétulas. Um trator. Um vinhedo. O devaneio não durou muito. Homem coerente, Manoel achou por bem devolver a senhora ao Casaredo, sua morada no momento. Ele estava ali, que Madame se lembrasse, sempre. Com uma voz alquebrada, rústica, Madame devolveu a Manoel o fado, os quatro primeiros versos. Depois dormiu. Ficou um pouquinho mais pesada, talvez para avisar que sim, estava viva e ainda presente. Ao cruzarem o portão dois, a senhora abriu os olhos e murmurou Júlio. Manoel a colocou em uma cadeira e a levou até o ambulatório, onde a criança dormia. Enquanto aguardava um sinal do menino, Madame tirou do bolso de sua camisola o caderno e começou a anotar, sem pressa. Bernice estava na sala, nunca a tinha visto escrever, ficou enlevada. 



[1] Composição de David Mourao-Ferreira e José Mario Branco

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