Hospital Casaredo 56








O torvelinho e as imersões


Habituados a testemunhar decisões equivocadas, e estamos falando de atentado contra a própria vida, os enfermeiros detinham um tempo excelente para conter os danos. Joana e Manoel adentraram o dormitório e o senhor da Nossa Senhora pendia perigosamente, seria uma queda sem volta da janela. Deslisaram, sem o menor ruído, sem chamar a atenção dos demais pacientes. Alguns, mais ou menos lúcidos, torciam, aos gritos, para que o companheiro de cela pulasse. A sedação do senhor da Nossa Senhora foi feita ao mesmo tempo em que o imobilizaram, Joana a cantar seu apelo a Iansã[1]. Tal gesto calou os demais pacientes, que iam sendo acudidos, um a um, pelo diligente Manoel, a produzir sons afins aos que se usa com cães adestrados.


Enquanto isso, no dormitório feminino, Gaspare acomodava Madame, que dormira sobre suas anotações, ao relento. Pairava no ar certa urgência. A música produzida no ensaio inspirara identificação, responsabilidade. Antes de seguir com os outros, o rapaz sentiu desejo de olhar Kyle na UTI. Como dizia o sanfoneiro, trabalhar no Casaredo era perigoso. As máquinas produziam os ruídos padrão, a respiração do ator era sôfrega, entrecortada. Antes de sair, Gaspare tirou do bolso do macacão mais um envelope, este lhe queimava as mãos. 


Kyle,


Hoje, muitos de mim se juntaram, para ser-te vento. Convocamo-nos, primeiro, porque não tínhamos cidadania e decidimos ir direto ao Consulado. Depois, pelas várias cruzes que marcam nossas partidas, dos velhos campos europeus, os corações mais doídos oriundos de terras portuguesas, italianas, espanholas, polonesas, muitos a levar o sonho à Cidade Luz. Gente refugiada, deportada, que muito ama e, portanto, necessita muito de amor. 

 

Uma mistura de filósofos, cientistas, religiosos e gente de ofício, artesãos, desenhistas, músicos, atores, bardos. Também se juntaram a nós os da costa de África, os das mercancias, a vender fumo, cachaça, charutos, tecidos para roupas, especiarias, os que se recusaram a vender gente e armas de fogo. Tantos, de procedência ancha, antes das naus, uns andarilhos dos desertos e montes e charcos e margens de rios. Todos com o mesmo ideal, o das brigadas de incêndio.

 

Queríamos ter uma canção de água para te cantar, nós que, pelo menos uma vez ao dia, sentimos aquela fisgada das labaredas, nos joelhos, mãos, ombros, pescoço, estômago. Da alma, nem falaremos. Queríamos ter o poder de aclarar, com o fogaréu, as causas anteriores das aflições. Não nos foi dado este dom. Sabemos, meio chamuscados em nossos engodos, das causas atuais delas. Se nos atrevemos a dizer-te da empatia que sentimos pela tua causa, é porque os caminhos das compostelas estão nutridos de dores parecidas com as tuas. 

 

Sempre que há comoção, aqui na tropa, lembramos do Zeca Afonso[2] e vibramos o Eu vou ser como a toupeira. Não basta, não cura, porém é certo que acolhe as eletricidades, contém as malhas do fogaredo. 

 

Estamos contigo, à beira da tua cadeira de tarefas, a murmurar as forças da hidra, a ver se te levantas, logo cedo, e montas no cavalinho de madeira que carece de buril. 

 

Chegamos a mais de cem faces, sem nome ou âncora. Vozes de vento, brisa da primavera que não tarda. 

 

Saudamos o luzeiro que deixas sobre o velador, graças. 

 

Recebe o nosso calor, alberga todo este povo em teu estábulo. Oferecemos-te silêncio. Histórias há muito esquecidas, quantos amores, quantas reparações, quanta possibilidade de retorno. 

 

Sempre contigo.


 

Chamar pelo nome, a ordem cósmica


Os atendentes daquele turno decidiram iniciar, no torvelinho, a tarefa de nomear os pacientes. Durante toda madrugada Joana, Manoel e Gaspare percorreram os corredores com suas pranchetas. Maria se juntou ao grupo às três da madrugada, Matilde com ela. Blackwood aderiu à empreitada pelas quatro. Wong Lam, às quatro e trinta. O grupo concluiu os primeiros tentames pelas cinco. A manhã nascia. O quarto de Madame foi o primeiro a distinguir todas as mulheres. Um sentimento de compaixão amainou todos os pesares no Casaredo.


O doutor Itaú, por uns tempos, deu aulas de Historia da África na cidade de São Paulo, Brasil. Neste primeiro dia de batizado aos pacientes do Casaredo, Itaú contou aos atendentes do turno da manhã sobre a Árvore do Esquecimento e sobre a Porta dos Sem Retorno[3], lendas sobre ritual feito com africanos escravizados, antes do embarque – dar a volta sete vezes ao redor do maior baobá do continente ou atravessar um portal de pedra em direção ao mar, na praia do Bazaruto. O ritual servia para selar àqueles que, embarcados nos tumbeiros[4], abdicavam de suas raízes; era reforçada a promessa de não perseguirem ou odiarem seus captores. Itaú contou também sobre as dificuldades de firmar uma história verdadeira sobre grupos étnicos que não sabiam ler ou escrever. Em especial, como era custoso dar nome a pessoas e acontecimentos que as envolveram em tamanha dor, com critérios sustentáveis. O médico ficou em silêncio por longo período, os enfermeiros reverentes. Por fim, concluiu o pensamento com certa alegria, afirmando como era bom poder ressignificar a existência de muitos homens e mulheres pelo batizado, pela imersão. Dali em diante, os pacientes pertenceriam à história nascente do hospital. 


Sentado entre Gilmar e Javier na murada sul, o psiquiatra meditou por longo tempo. Um ritual era realizado, também ali no Casaredo. Tratava-se de um grupo de mulheres e homens sem pátria, que atravessaram o portal ou a ponte da sanidade. Cada um com sua diáspora, êxodo, exílio, refúgio, expulsão, deportação, aventura, abortamento, desistência, sonhos perdidos, liberdades além da Terra, amores que os abandonaram, amor que não amaram, quebra com padrões de vária ordem. As mulheres, podia-se dizer que atravessaram a porta estreita. Sozinhas. Os homens, dos confins dos mares, nadaram à praia. Sozinhos. Itaú não segurou o choro. 


Em cada dormitório, um enfermeiro deu nome a um paciente. À senhora Quatro, Gaspare chamou Marscha. Volta e meia ela sumia, a qualquer hora. Nenhum porteiro jamais a viu passar, não havia registro nas câmeras. Iam encontra-la a caminhar à beira mar, um pé sobre as primeiras espumas. À senhora Dois, Alev chamou Rasguito, ela sempre rasgava suas camisolas. Certa feita lhe deram uma fralda, bordada por Chang Chang com passarinhos. Então Rasguito  parou de rasgar.


A senhora Cinco recebeu de Matilde o nome de Jojubah. Gostava de jujubas, se acalmava quando lhe davam um potinho. Jojubah separava as balas por cor, depois devolvia-as ao recipiente, sem provar.  Para a senhora Seis, Manoel deu o nome Ana. O rosto dela lembrava uma imagem de Sant’Ana que ficava no nicho da porta de entrada do hospital. Catarina chamou à senhora Sete Lume. Seus olhos pareciam a chama de um lampião. Joana chamou à senhora Oito Vira. A senhora voltava ao mundo quando escutava os cantos do folclore português. Maria demorou para nomear a senhora Nove. Somente quando o sol nasceu, a chefe escreveu Alba. Javier, que estava por demais triste, chamou à senhora Três Esperança. Comparou-a ao Mito de Pandora. Esperança abrira a caixa, arrancara fora o remorso através da auto enucleação, manteve assim a perspectiva de viver em paz. Era o que o rapaz desejava para si, sem precisar arrancar um olho ou outra parte que considerava impura em seu corpo.


Os enfermeiros combinaram fazer singela festa a cada um dos pacientes. Sem pressa ou tumulto, sussurravam o nome escolhido ao lado do leito, enquanto o paciente ainda dormia, batiam de leve três palmas, acentuando a última. Manoel esculpiu, para cada um, bonitas tabuletas de maneira, com o nome e um ícone entalhados. Afixou-as na parede, diante de cada leito. Alguns já possuíam ali seu retrato, pintado pela narcótica Adele. Em pouco tempo, os atendentes falavam dos pacientes com mais intimidade, carinho. Os dormitórios cercaram-se de atmosfera muito leve. 


Uma fogueira foi acesa diante do sobrado de Gilmar e Te Dan na noite seguinte. Ali, os músicos confraternizaram. Cantaram os próprios sonhos, ambições, todos estavam onde quereriam estar? Depois de muitos ajuizamentos, sem responder de fato à pergunta, ficou outra no ar. Os idosos daquele lugar, estavam onde queriam estar? 


Das galés aos saraus


Madame, na noite que sucedeu a tentativa de suicídio, parecia enamorada. Alev foi escalado para a monitorar. Ela descreveu, em seu texto, a visão de bailarinas sob o arvoredo que fundeava os sobrados, todas luz. Umas muito pretas, jabuticabinhas, outras amarelas como certas jacas, outras róseas, outras índigo, outras em tons que não se conhecia na Terra. Eram do tamanho de vagalumes, talvez um pouco maiores. Cantavam trovinhas ininteligíveis.  Passavam o tempo, tais pirilampos, a valsar e soprar pequenos bambus. Desferiam sobre a pele das coisas dardos de clorofórmio. A senhora não tinha, por ora, a medida do sim e do não. Dormia. Escrevia. Cozinhava. Sorria. Voltava a dormir. Disparava pelos corredores com sua cadeira, a sete quilômetros por hora. Às vezes resmungava, caso algo lhe doesse, os quadris, o pescoço, a cabeça, o estômago, os dedos das mãos. Ao dormir, sumiam as árvores e ficavam os pirilampos sedantes. Os seres de luz batiam palmas e chamavam por uma tal de Rosa Roso Rosum. Assim que despertava, Madame tornava a puxar o caderno do avental e escrevia, não tão rápido quanto antes. Rosa, Roso, Rosum. O estilo do texto, amaneirado em alguns pontos, prometia chegar em algum lugar, mesmo que fosse ao olho de um redemoinho. 

 

Alev não perdia Madame de vista. Em dado momento, surpreendeu o caderno abandonado sobre uma mureta do corredor. Encontrou Madame na vila dos sobrados, emborcara a cadeira, próxima ao arvoredo. O enfermeiro a recolheu ao dormitório um, medicou, deitou-a em seu leito, acarinhou seu rosto. O caderno foi-lhe devolvido. A página aberta contava que José escrevia mais que um que diário de bordo, era  o melhor remédio para mestres da marinha, uma folga aos remadores. Rosa, Roso, Rosum. Alois. Alouette. Loire. 

 

Tempo difícil aquele das galés, lembrou-se o comandante. José estava satisfeito, superara o estafante início da adultez, hoje recebia patente, um quarto de século cumprido com honra, precária, mas honra. O momento passou logo e não lhe arrancou pedaço. Foram-se, contados aos dedos, os dias de estar em solo firme. José testemunhou as mais excêntricas mercadorias no cais, por trinta anos. Jamais quis vender gente. A analogia entre o início de carreira no mar e conhecer Alois queria por alguma ordem ao seu coração maltratado. Os saraus, tornados souvenir, figuravam certo ar diletante. A dor não fora tão intensa quando se viram fracassados ante a mercancia de uma récita, Alois e ele. O conde Gameleira não lhes deu crédito, criou os mais requintados empecilhos, negou-lhes soldo, lugar, imersão. Ninguém se perdeu por isso, é fato. Ambos seguiram com seus codinomes, Alois Donis e José Gaetano. Cada qual retornou ao seu navio e o conde ao seu castelo. Que passassem, todos, muito bem.  

 

No tempo das galés, as mãos de José sangraram, os feudos se armaram em lona de circo, com trapezistas, malabares, bailarinos, ursos, palhaços. Os costumes, leis, calendários, celebrações tiraram férias. O mesmo ocorreu com a turnê sonhada pelos dois comandantes de fragata, um deles se entendendo mortalmente enamorado do outro. Se havia algo a lamentar, era não ficarem juntos, por causa nobre, pelo fazer musical. Há separações cósmicas, sempre para o bem, José só entenderia isso muito depois. O corsário seguiu, a entregar os vinhos sob sua responsabilidade, estava fadado. As pessoas seguiram a acasalar, deixaram crianças largadas no mundo e o sistema de ciscar o terreiro se manteria ad aeternum. Era confiar e orar em silêncio.

 

José se habituara ao balanço das ondas, ora pois. Quando em terra, ele gingava, gingava o dia todo. Comia em pé, sardinhas fritas enroladas em jornal, encostado a algum trapiche e seguia, andarilhava, observava a feira, bebia de seu cantil e gingava. Em um começo de noite, José foi surpreendido no cais, quando olhava o céu. Ele ouviu uma guitarra chorada, a acompanhar voz máscula. Coitado do José e seus arroubos. Em geral, tais lembranças lhe causavam sérios engulhos. Vergonha, muita vergonha, por procurar afeto sem o ter para dar. Caminhou até a duna e o viu. O homem que tocava parecia cansado, parecia de papel. Era bem apessoado, escanhoado, camisa aberta no peito, calças arregaçadas, alpercatas, chapéu panamá batido na testa. José aproximou-se, escutou. Em dado momento de pausa, atreveu-se a uma abordagem. Noite quente, não? É, boa para dizer galanteios, respondeu o outro. Encabulado, José sorriu. Sabes alguma cantiga de mar, perguntou? E o homem lhe cantou barqueiro deita o barco ao rio, barqueiro deita o barco ao mar, mas olha que o barco vira lá no alto, cuida que eu não sei nadar.[5]  Boa voz, harmonia peculiar, certa melancolia. Não se pode caçoar de José. Acontece de se encantar, muita gente, com esses homens bossa, não era mérito do marujo, a jornada apenas começava, um carinho só lhe faria bem, pensava.


José Gaetano refletiu sobre este encontro apenas quando se sentiu maduro. Fora o jeito do gajo, o apego às cantigas, armadilha mortal para José. Fora o ar de sonso do cantarolador. Ficaram os dois a deitar conversa fora, o que percebiam da feira, aquele instante quase breu, de pouco vento. O marujo rapazola admirou seu interlocutor, que se manteve imparcial. Fechado em botão, José anteviu no encontro promessa, das sérias, era sempre assim. Um varão, capaz de expressar-se com tanto sentimento, mesmo que este tanto fossem as ilusões de um coração tolo. O comandante novel ainda não compreendera que espelhava no outro seus anseios por companhia. Eram suas as saudades refletidas no outro. Somente suas. O seresteiro sentia o que sentia, nada que fosse endereçado a José. Estava mais para gabar-se, exibir-se, não é o caso julgar tal ostentação. Não se pode dizer que o modinheiro tenha sido desonesto. Naquela noite da voz máscula, o marujo cegou. Perdida e veladamente, cegou. 


Sem saber como agir, desafiou a morte súbita. José foi para cima do cidadão, ofertou-lhe seu melhor poema. O outro, escolado, prático, aplicou-lhe descompostura sem o descaderiar. José, teimoso e inconformado, prosseguiu no investimento por mais alguns dias, chegou a inconveniências. Se José alguma coisa aprendeu dessas descortesias, o amor é nada disso. O paneleiro descobriu-se, isso sim, presunçoso. Um tempo mais e José se deparou com o parlador, acompanhado de uma dama longilínea, bela como a própria Aioca, uma palmeira. Dançavam os dois a beira mar, nus. José Gaetano gostou demais das enguias desde então. Dali para diante, uma sucessão cada vez mais delirante de gafes, outros personagens e frisson, até conhecer Alois. Depois dele, tudo resultou no encontro com a Assistência.




[1] Ossi avanju/ ossi avanjuê/auê bumburu sema/ Orossi avanjuê

[2] Cantor-compositor português

[3] Monumento da UNESCO na região de Uidá, Benim, África. Representa o local da maior deportação verificada na História, da qual alguns puderam retornar.

[4] Navios de comércio humano

[5] Tema tradicional português 

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