Hospital Casaredo 55
Crise
O início da noite guardava claridade alaranjada, a primeira estrela brilhava no céu, a lua ainda não se deixara ver, era quarto minguante. As luzes da cidade do Porto foram acesas. Da murada sul, o mar em sutil murmúrio, as gaivota já instaladas em seus ninhos de dormir, ofereciam calma. William Blackwood e o doutor Wong Lam galgaram seu posto com facilidade e a brisa marinha ajustou seus pensamentos. Imaginaram, diante da deslumbrante paisagem, o mundo tal qual era, pulsante e disposto. Elevados do chão como estavam, os médicos equiparavam forças, a conversa teria caráter informal, sem o rigor terapêutico, não tomariam decisões. Ambos gostariam, naquele instante, de ter asas.
Sucumbir à sedução, Mister Wong, sei que se trata de invigilância. Há, contudo, um tom divertido neste enredamento, como se fosse possível tocar o desejo de pertença. Não sei se me faço entender. É como preferir uma taça de Merleau a nada, irresistível beberagem, entorpecente. Ser aliciado é, também, lição para o caráter, teste para as virtudes que despontam, para a perspicácia, ajuda a reconhecer-se vivo. Uma questão de escolha, melhor o elogio a nada, para aqueles que não tem sustentação moral. Talvez tenhamos um impasse, quanto a quem detém o poder da manipulação, se merece este consideração ou repulsão. Usei os sinônimos todos para podermos ponderar. Se o humano é privado de abraços, o que lhe sobra senão aceitar o aperto invisível do engodo? Sir Blackwood, o que me põe em estado de alerta são as crianças, envolvidas neste halo persuasivo, uma delas ainda no ventre materno. Um silêncio de tonalidade gris se adensou, suspiroso. Sei que Júlio ficará bem, doutor. Ouso dizer, continuou Blackwood, eis um menino privilegiado, com vários bons pais e mães substitutos, que ele elegeu, até entre os pacientes. Caso o menino volte para seu lar de origem – acho pouco provável -, seu desenvolvimento ainda poderá ser saudável, ele tem mais discernimento que muitos adultos. Uma pausa mais longa convidava a falar sobre dor de separação. Sobre a criança no ventre, Blackwood continuou, é preciso aguardar o final da gestação e o nascimento. Só a mãe tem poder para decidir. Uma sutil rachadura na equipe pode ocorrer, atalhou Wong Lam. Confio no encantamento produzido pelo último Lian Gong, doutor, confio na equipe. Sei que a parturiente tem se esquivado das terapias, o insulamento pode reforçar-lhe a melancolia. O que realmente me incomoda é: que faremos da huli jing? Finalmente vamos caçá-la?
O consultório de William Blackwood recebia a maresia como passe de mágica. Leve na decoração, dava lugar a duas poltronas, a chaise longue, almofadas no chão, um tatame, banco de meditação, uma bola grande, uma estufa sempre acesa, um pequeno incensário sobre o aparador, flores dispostas em três vasos de porcelana azulada, uma estante de livros. A iluminação variava com o tipo de terapia oferecida aos pacientes. As sonoridades ambientes eram coloridas de bordões graves e variações melódicas sutis, vindas de caixas amplificadoras muito finas, da altura da parede. Também se escutavam ruídos da natureza, talking drum ou bowls nas gravações. O terapeuta tornou-se amorável ao grupo, por sua quietude, calma, gentileza, discrição. Ele auxiliava na dissipação das confusões mentais, equilibrava a todos em poucos minutos. Até a senhora Três participava das sessões, tornara-se mais leve. A equipe de atendentes passou a procura-lo como profissional, com hora marcada. Cada um trazia seus sonhos, fantasias, traumas, desejos. A sexualidade, a inveja, a posse e a convivência na casa foram temas corajosamente expostos e elaborados. Os laços de amizade se aclararam entre todos, não romperiam facilmente. William propunha exercícios de expansão do pensamento, abertura das fronteiras do conhecimento, convidou a todos a estudarem juntos sobre inteligência espiritual. Sugeriu também uma revisão dos estatutos verbais, não verbais e maior afinidade com as leis da Natureza. Orientou-os a mergulharem em seu mar interior, aceitar as garrafas pet ali sepultadas. O mais alquebrado dos socorridos foi Javier. Família desfeita, filhos em suposto perigo. Havia algo mais no caso, que fugia aos domínios do terapeuta. Blackwood, em não podendo alcançar o rapaz na gênese daquela história, passou Javier a Itaú e este precisou agir com prontidão, pois se tratava de ideações suicidas a dissipar. O martelo, que Javier acionava tão bem junto aos pacientes, era preciso que o usasse em si próprio, tarefa prolixa, às vezes demasiada. Era a vez do rapaz se expor às ondas do farol, experimentar seu próprio medicamento. Foi Dung Hanh, quando a batalha parecia perdida, quem orientou uma boa fórmula de ação para este caso.
A doutora Ava Cusa, em relatório a Wong Lam, informou que Amparo seguia bem com a gravidez, que completava vinte e oito semanas, sem riscos para ela ou para o feto. Das outras pontas do novelo, vinha a notícia de que Álvaro Vilar não apareceu mais no hospital, desde a última máquina fotográfica surrupiada. A narcótica Adele sofrera um coma alcoólico no mesmo período, adicionado de cetamina.
Foi naqueles dias de congestão no Casaredo que o fato se deu. Amparo atravessou o portão três, depois de uma briga sem testemunhas, de tapas, puxões de cabelo e uma navalhada superficial no ventre, vinda de uma Adele muito perturbada. Amparo perdeu o tino e só não tirou a vida da agressora pelos chutes insistentes que o feto lhe dava. Navalha vencida, foi o objeto cortante para um bolso da bata que cobria o corpo bonito, grávido de fúria. Era terça-feira. Amparo, recomposta, os hematomas quase não se os via, beijou o filho na testa, deixou-o a desenhar com a doutora Dung Hanh, disse até logo a Onofre, o terceiro porteiro e caminhou para a praia, sem levar qualquer objeto além das roupas do corpo e o bebê em gestação. Alev, precavido, contou a Maria onde ficara desacordada Adele, com marcas pretas de dedos no pescoço e foi atrás de Amparo, sem ser notado. Na estação ferroviária, não surpreendeu o teor do encontro.
Bailan las gitanas, miralas el rey; la reina, con celos, mandalas prender. Por Pascua de Reyes, hicieron al rey un baile gitano Belica e Inés. In Cervantes.
Alev voltou ao Casaredo dali a alguns dias, pela madrugada. Trazia os braços e o rosto perigosamente lanhados. O doutor Luiz Pedreira deu-lhe guarida e socorro, Blackwood veio com luzes, o enfermeiro estava acabrunhado. Informe algum vazou à casa sobre a situação. O espião cumpriu o resto de suas férias trancado voluntariamente no sobrado. Só aceitava as visitas de Maria e a convivência com Santur. Manoel, companheiro leal, deixava o invisível em paz, depois de lhe trocar curativos e medicar.
O que foi feito devera
Na visita diária à UTI, em seu turno ou como visitante, Gaspare aproveitava para acrescentar ao pote as novas cartas que chegavam a Kyle. Mais uma fora entregue pela manhã. Onofre acreditava serem, tais cartas, de um único admirador, trazidas por mensageiros diferentes. À procura de alguma possível ajuda, Gaspare teve o aval da equipe para ser o guardião daqueles documentos, guardados a chave.
Boa tarde, muita paz. Amanhã é mais um dia de mergulhar nas energias menos edificantes do exibicionismo. São energias ruins. Tu já percebeste que existem mulheres em correspondência a este tipo de vibração. Giram em volta daquela luz mortiça, feito mariposinhas. Há um campo maior, neutro, de aprendizes nos casulos. Ainda não se decidiram por esse ou aquele tipo de energia. Estão curiosos, abertos.
Aqui é que entram meus apelos. Tu tens um campo energético um pouco mais lúcido, robusto. Não sentes prazer ou necessidade de exibição. És vocacionado. Posso estar errado sobre isso. Teus personagens se colocam, luz lunar, e irradiam paz, a quem caminha ainda nas sombras – tu podes observar outras mulheres, a mim. Procuramos algo mais leve, naturalmente bonito, com brilho sereno, mesmo que tu estejas naqueles dias em que te comportas feito bombinhas de São João. Não queremos estar perto de ninguém que se esforce tanto para brilhar e só faz perder o brilho. De ridículos, bastamos nós, entende?
Eu precisaria me expressar melhor a respeito, dar mais elementos para fazer-me lúcido, eu também. Eis o meu ponto de vista. Ele não é a verdade. É um ponto. Exibir-se faz parte de uma fase do desenvolvimento humano. Exagerar nesta experiência gera transtorno, doença.
Aqui há outro ponto que só agora se esclarece para mim. Até ontem, eu imaginava que tu estivesses disposto a resgatar o parceiro da sombra, que estivesses pronto a se sacrificar, doar tudo o que tem, a ver se ele sai do umbral onde se encontra. Esta é uma missão válida. Se tu me afirmasses que é isto, é missão de resgate, ainda assim eu diria só de um? Por que só ele? É possível acompanhar o que digo?
Somos todos seres vivos, sim? Então, estamos em igualdade nisso. A fraternidade consiste em dar vez e voz para todos os seres. É neste ponto que eu me coloco, buscando resgate para ti, enquanto não sei ou não quero resgatar o outro.
Este é o apelo inicial: resgata-te. Para ser missioneiro, tu terias de oferecer teu sacrifício lá atrás, terias de sujeitar-se a ordenação. Tu escolheste o caminho da Beleza - não confundir com Reflexo Iridescente da Concha[1]. Tu não és vulgar, clichê. Estou afirmando isso, tu tens valor, dom. Não imagino que tu precises que alguém venha validar-te. Tu és um ator que não precisa, mesmo, mendigar amor. Muita gente te ama e fim. O mundo pode arribar, tu podes não achar nada de nós. Nós vamos te amar, porque somos afins com a luz lunar.
Eu quero um dia chegar ao pozinho de certa sandália, ou seja, quero missionar, tirar sujeitos sem eira nem beira da chuva. Ainda me falta chão, literalmente. Até lá, saio ao relento a ver se a Lua está lá, menos cheia que ontem, para me consolar e alertar. O astro tem certos poderes. Já pedi, muito, lá nos meus vinte anos, para a Lua dar-me O Príncipe da Branca. Veio-me uma aspirante a atriz, um tanto exibicionista. Peço-te que consideres, que fiques firme, para entrar em cena amanhã de cabeça, no campo neutro, a fim de influenciares àquelas gentes. Dá uma chance para donas que procuram a lua. Elas conhecem o próprio lugar. Te abraço com amor.
A lua do Casaredo
Blackwood tratava de aplicar suas mezinhas enfeitiçadas. Propalava interferências benéficas no campo mental de todos os assistidos. Os banhos de luz apaziguavam intolerâncias e equilibravam as dopaminas. Regulados conforme as necessidades de cada consulente, eram banhos em paisagem sutil. A pessoa em tratamento às vezes permanecia deitada, às vezes realizava movimentos no chão, outras vezes dançava livremente pelo espaço. Outras vezes ficava sentada em uma poltrona, de frente para uma parede iluminada com a cor do tratamento. Na maioria dos casos, as lâmpadas azuis e verdes vibravam mais que as de outros matizes. Chang Chang, muita vez, ia tocar as Variações Goldberg nas sessões. Os gráficos comprovavam, a obra musical acelerava a permeabilidade celular.
Os boatos, o enfermeiro Gaspare concordava com a colega Matilde, inspiravam cizânia. A desavença entre Amparo, a esposa de Javier, e a narcótica Adele dera o que falar e nada. O sentimento de raiva experimentado por Gaspare, impossível de ser expressado, soava azucrinante, inquietava o coração do rapaz, que nem assim perdia o bom humor. Talvez pelo seu tempo de comédia, ou para não morrer, soterrado pela dor, Gaspare ousou pedir a Chang Chang que convidasse, no dia em que viesse a roda girante, uma cantante famosa, que traduzia bem o quadro como ele o via. Volta e meia o rapaz era flagrado a gemer pelos corredores, em uma imitação hilariante de uma canção. Exageradamente melismática, lá vinha o aaaaaaaaaai mi corazón esta empezando padecer desde que yo te conosci mi dulce bieeen[2]. Gaspare, súbito, parava de cantar e gesticular, umedecia os lábios, relaxava o corpo e seguia com seus afazeres, como se nada houvesse de errado. A ação provocou gargalhadas às pacientes em melhor estado por alguns dias. Exceto Madame, que sofria a dor do filho. A Gaspare custou muito a ópera, mais que a Alev, até que a Javier. Faltava-lhe a legitimidade, o direito de sofrer. Nada daquilo precisaria estar acontecendo, assim pensava o enfermeiro. Era como um surto de cólera, ou gripe. Viera, devastava por um tempo, depois manteria um ritmo controlado, pela própria praga, por vacinas, fármacos, pela mão generosa da Natureza. Por dois meses, Gaspare e Javier deixaram de cruzar o mesmo turno. Javier chorava e Gaspare dava uns tabefes em um saco de esmurrar que Blackwood instalou em sua sala. Gaspare não dormiu em casa no período. Blackwood e Itaú o chacoalhavam, cada vez que vinha retomar seu turno.
Gilmar aproximou-se de Gaspare. Tinha lá suas reservas com ele, também algo o cativava, a cordialidade acima de qualquer outra motivação. Música, a ferramenta que os uniu. Passaram a se encontrar no sobrado de Gilmar, para tocar e cantar. Te Dan, o músico chinês, fez companhia a eles. Em alguns ensaios, Blackwood apareceu com a teorba, instrumento mais grave que o pipa. Eles não sabem da ópera a metade foi a primeira récita que organizaram. Abria com um poema de Fernando Pessoa[3], primeiro tema musicado pelo quarteto. Os ensaios para tal evento aconteceram diariamente, perto da meia noite, para ela se chegar ou passadas, um pouco, as doze badaladas. Nesse horário, em geral, não havia surto, febre ou morte no hospital, o que lhes dava sossego para trabalhar nos arranjos. Parecia, a reunião musical, uma conversa ligeira entre sombra e luz, uma combinação elegante, de vozes, sanfona, pipa, teorba e alaúde, mais o baixolão, instrumento recém adquirido por Gaspare. O encontro soava um choque de culturas, fusão de estilos. Música tradicional chinesa, tarantela, baião, song, sonoridades ainda rústicas, por amadurecer. Foram momentos solenes, de cura, que só percebia quem estava lá, no mesmo ambiente que eles. Tempos mais tarde, Chang Chang passou a integrar o grupo, a tocar cravo e espineta. O grupo achou por bem alterar o local e horário de ensaio, logo após a primeira récita, com dez peças. Passaram à sala de reuniões, que se mostrava mais reservada e distante do sono dos demais, na hora em que os pássaros chamavam o sol, quando o galo cantava, passadas as três da madrugada.
Foi em uma dessas noites de música. Madame dormitava e contava história, no pátio dos sobrados, sob um guarda-sol que a protegia do orvalho. Fazia muito calor. Gaspare vigiava a paciente da janela. A relação da senhora com o sono refletia entreveiros desde menina. Sonhos medonhos a faziam recusar-se a ficar, à noite, no dormitório, havia dias. Madame fazia escândalo, quando alguém ousava sedar-lhe. Contava que os monstros de portais escuros atacavam, ferozes, aos berros, queriam matar. Naquele ensaio, mergulhada na escuta de Quantas sabedes[4], a senhora deixou versos que inspirariam o trabalho de William Blackwood. Madame descreveu, breve, sua mente confusa:
não sei oncotô, oncovô e não era para eu estar perdido
José Gaetano não foi posto diante do mar para estar desvalido
Em um dos dormitórios masculinos, a voz gemia e elevava-se, aos brados
venha me valer
Mãe das águas
Vem Julieta
cambada toda
vamos zarpar
A mente move padrões, sentimentos inconfessáveis, que se interconectam, embaralham no ambiente, e são movidos pelo vento. Onofre, o porteiro, fumava do lado de fora da guarita. Distinguiu o velhinho de pé, sobre o batente da janela do primeiro piso. Acionou, aflito, o bipe do enfermeiro Manoel.
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