Hospital Casaredo 54

 




Estado comatoso

 

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto não se precise. A lucidez perigosa. Clarice Lispector


Na UTI, o enfermeiro Gaspare foi surpreendido por ruídos além das máquinas. Kyle parecia emergir do coma, respiração ofegante, estado de agitação, tinha febre. Os cortes nos braços e pulsos, já em processo de cicatrização, informavam o grave delito. Ao erguer os punhos, Kyle desfaleceu por instantes para chamar, logo a seguir, desesperado, por um Alois. Deu-se conta da presença do enfermeiro a lhe comprimir as têmporas com doçura, ajustar o soro. Antes de retornar ao torpor, Kyle pediu água, ajuda, apoio, um lugar seguro onde se esconder. Gaspare sussurrou em seu ouvido, está tudo bem, estou aqui, está tudo bem, estou aqui. Agarrado à mão daquele anjo, com força descomunal, de estalar as articulações, o paciente sussurrou eles estão vindo, eles estão vindo.


A jornada nada exige, inspira. E são menos que segundos deste movimento. Não fora um estado de atenção perene e o progresso do mundo estaria comprometido. Gaspare sabia que a cura não era passe de mágica. Ás vezes, parecia-se com isso. A pressão em sua mão esquerda foi cedendo, o efeito do sedativo proporcionou certa brandura. Kyle olhava o enfermeiro, ainda fascinado. Antes da partida, o ator dirá que esteve diante da Lua. Extremamente atraído por aquele homem acamado, Gaspare controlou-se, conferiu-lhe as disposições, o asseio geral, ajeitou a camisola, travesseiros, a manta. Demorou-se a alisar o cabelo farto de Kyle, um carinho contemplativo. Tornou a dizer-lhe ao ouvido está tudo bem, estás em segurança, há paz, esperança. 


O senhor da Nossa Senhora subiu a um banco que ficava sob a janela interna da UTI, queria olhar Kyle. Da perspectiva de Gaspare, via-se apenas sua calvície e os olhinhos compridos, sobrancelhas feito matagal. O velhinho parecia compadecido. Gilmar viera em seu encalço e parou atrás dele, cuidadoso, para não o assombrar. Ficou a olhar, ele também, aquele gesto suave de arrumar os cabelos. A lide no hospital era perigosa, às vezes fulminante, era preciso ter estômago de aço. O enfermeiro, ciente de que o senhor o reconhecera, deu um tapinha de leve no que restava dos cabelos do amigo divertido e perguntou, se gostaria de tocar sanfona no jardim. A indecisão durou um suspiro. Ambos sentiram que outros carinhos, o do sol, do cheiro das rosas, da maresia e dos sons úmidos do corridinho seriam mais benfazejos que cenas de dor e impossibilidade. 


O que são os homens? Não se pode pensar neles como alavancas, escreveu Madame, junto a uma das rosas amarelas. Ou o ponto de apoio, o impulso, continuou, ou a pedra que se quer alavancar. É preciso um escândalo para se confirmar emergência? Gaspare fazia crer que não. 


As raposas sabem identificar esses estados de excitação extrema no ambiente. Captam no ar, quando há um tolo em meio ao torvelinho. É só tecer-lhe elogios. Não é possível explicar quando o  abocanhar acontece. Tentarei o caminho das fábulas. Está lá o corvo, uma guloseima no bico, pronto para jantar. A raposa enxerga o acepipe. Chega-se, melíflua, trauteia que bela plumagem tu tens, ó corvo, pareces uma noite de luar. Para seres rei, é só escutar que canto tens. Envaidecido, o pássaro crocita. O manjar lhe escapa do bico e a raposa, sem tardança, engole a presa. Eis o Casaredo a lidar com raposas, atores, encantados, donos da Lua. Os corvos, o alvo atual. 

 

Arquipélago das Quirimbas


Os encontros com tudo são estranhamente aproveitáveis, Madame suspirou. José Gaetano, vem ouvir esta última! O comandante da Sor procurava examinar, aprender com o que fosse. Às vezes, confuso, ele pensava instalar catapultas na barca. O homem não era de coagir seus subordinados, em geral os convocava ao convés em tal hora, para ponderarem juntos sobre enigmas de viagem. Mastigava a comida para eles. Talvez por isso, fosse presa fácil de sedutores. Um sol tão quente de primavera naquela tarde, brisa levíssima.  Estavam próximos ao Arquipélago das Quirimbas, seria bom pisarem terra firme, aportar ao menos por algum tempo. O corsário teve saudade de uma ladeira acidentada, não sabia se localizada em vila pesqueira daquela localidade. Uma surpresa o aguardou ali, na ocasião. O Alois a correr, ruidoso, a sua índole se traduzia assim. Dá-me cá tua mão, ó cantaor, assim saudou, ao companheiro das tertúlias. Os dois caminharam lado a lado, enfrentaram um platô com desfiladeiro. Penetraram uma caverna em tons azuis, laranja, amarelo, visíveis por réstias que vazavam de aberturas naturais. José começou a orar sem palavras. Não fosse um perfil conservador, que o paralisava, atirava-se aos braços do outro. O desejo era desleal. Alois se fez áspero, ao sentir a tensão. José respondeu com enfado. Um lago cristalino, ao fundo da gruta, revelou algas reluzentes. Certa suavidade, infundida pelo vento, fez os corpos vibrarem, tal qual madeira às suas raízes. O organismo do corsário impôs concórdia ao humus selvagem. Para perder-se, bastaria abrir a boca. Seria rechaçado, qual tiro pela culatra. O ambiente místico absorveu brandura e também rebeldia. Ficaram mais um pouco os dois, calados, sem ousar qualquer decisão, não havia por que.


Lá fora, o vento movia rabos de galo, o céu a sorrir. Para José, o parceiro musical era um prêmio e uma punhalada, encanto que torce as entranhas, como em uma caçada às cegas. Presente, passado, o tempo era irrelevante, a dor não cessaria. Algo que se acreditava desperdiçado figurava no gesto atual, nada além de devaneios, a Natureza possui estes exemplos de contenção. A José, coube engolir em seco. Orar, nessas horas, é um bom começo e o corsário evitou barganhas com os seus mentores. Intuiu rogativas simples, de perdão, hora de assoreamentos.  Um bando de corvos grasnou lá fora, no céu a sorrir.


deus da divina distância, sol, luz da verdade, que seu dom de clarear a mente humana me faça estro, que os brocados de ais tecidos em glosa purguem a alma. Que não seja em vão a mão na mão, a cabeça contra o peito, o pulsar nas têmporas, o cheiro quente de basílico da pasta all dente e o coração aos rasgos das horas de ampulheta. Que o vento calmante a me subir as pernas seja tônico e revigore as renúncias, as recusas, em prol do trabalho do espírito. Que o ouvido se abra ao choro pungente, orvalho apolíneo, gris da solidão, degredo e regeneração. 


Assim como veio, Quirimbas acolheu, Alois Donis partiu, caverna, lago, algas ficaram a ver navios. Uma reunião de negócios entre pares justificou a urgência. A despedida, breve aperto de mão, um choque, de atirar longe. 


Já à noitinha, diante dos grumetes da Sor, José topou consigo mais uma vez. O devaneio se desfez, a tripulação não aportou, Moçambique ficou para outra história, não era adeus definitivo. Quem socorreu a situação foi o cozinheiro, tangeu sua frigideira e escumadeira, feito gongo. Havia, para a refeição, fritada de frutos do mar e um jarro de vinho com frutas. 


Luz e sombreiros


Como explicar a necessidade de um serviço camuflado no Casaredo? Um talento não se desperdiça, assim argumentou o sábio Wong Bohai ao causídico Giulionni, enquanto lhe servia café na cozinha. O enfermeiro Alev, homem invisível do grupo, a tudo atento, nos mínimos detalhes, no sanatório utilizava-se da máxima roubo aos ricos para dar aos pobres. Entretanto, no hospital colônia, estavam diante de momento de revisão, o código de ética falhara. 


Talvez a história de Alev, resumida a um belo talho na face, que quase lhe custou a vista direita, tenha incrementado atitudes um tanto herméticas. Os colegas, até os mais jovens, confiavam naquele felino árabe acima de qualquer suspeita. Alev incluiu, em seu quadro de protegidos, o doutor Wong Lam e Madame, embora o socorro não tivesse fronteiras. Detectado o perigo, a encrenca, Alev era o homem a quem todos recorriam. Saídas práticas e eficientes sempre viriam daquele felino calado, bem apessoado, intimidador. 


Álvaro Vilar, fotógrafo do pasquim de Jerônimo Alcântara, um corvo solitário a vagar pela casa sob o manto da investigação, foi captado no zoom do enfermeiro Alev. É sabido que Vilar jamais levou do hospital qualquer rolo de filme, comprometedor ou não. Restava saber o que trazia, a cada visita, além de uma presença aziaga. O misterioso desaparecimento das películas atrapalhava a vida profissional do sujeito, que se alimentava de furos, rumores, para ser mais exato. O fotógrafo, volta e meia, visitava o Casaredo, pedia permissão a Chang Chang para transitar, registrava aparentes inocências. Quem é que já conheceu um nosocômio de portas abertas, sem regras de admissão ou alta? Mais tarde, quando Vilar entrava em sua câmara escura, as vísceras aos saltos, descobria os filmes virgens. O homem mudou de máquina vária vez, pôs-se mais vigilante a quem se aproximava dele no hospital, e mais se esgueirava pelos corredores do claríssimo espaço. 


O objetivo não era tirar fotos. Era caça. Dentro de um hospital de loucos? Quer lugar mais propício? Na última tentativa de flagrar sua presa, Vilar foi flagrado. Os brinquedos das crianças, a bolsa de Madame, enquanto ela cochilava sob a parreira, nada disso passou despercebido ao homem invisível. Apenas uma situação: entre um clic e outro, à huli jing foi entregue o jantar. Alev isolou o fato, chegara ao clímax. O gato-bravo-de-patas-negras estava em seu posto.


Dias mais tarde, no jardim das rosas, ao lado do Ambulatório, sem parecer inconveniente, Vilar conversou com Amparo por um tempo. Os mais atentos achariam tempo bastante. A capacidade de Alev em passar desapercebido era digna de nota. Com duas ou três frases, o enfermeiro moveu a torre. O fotógrafo seduzia e era, aparentemente, correspondido. O corvo Álvaro Vilar sairia faminto, contudo, sem os filmes e desmascarado. Um pacote pequeno caiu na armadilha. 


Alev se reportou a Maria, puxou-a a um canto e dividiu com ela as inquietações que o afligiam. Disse que não era idôneo para agir sozinho naquele caso. Nutria desejos pela moça, inda mais agora, com os hormônios da gravidez. Sentia que agiria de forma passional e não em benefício coletivo. Maria, cada vez mais, admirava aquele homem. O senso de lealdade a cativava. Sempre que estava com ele, acendia em seu corpo uma chama que mal conseguia conter. A senhora não se expôs,  era demais para seu íntimo, nem se permitiu sonhar. Pensou, se seria válido levar tal assunto ao doutor Wong Lam, que se via à frente com tantos dramas albergados naquela casa. O fato é que Maria também agiria por impulso e não pela lógica. Nem ela, tampouco Alev, enxergavam a extensão das consequências que poderiam advir de um suposto caso de adultério. Joana passou pelos colegas e sentiu a grande tensão. A enfermeira sabia das limitações emocionais de sua chefe. Deusa de ébano que era, ofereceu seu ouvido a Maria e mais, sugeriu um aliado ainda não experimentado: o jovem William Blackwood. 


O doutor Wong Lam já previra aquela situação que envolvia o fotógrafo. Apenas foi necessário ordenar nomes à trama. Os impulsos movem grupos, é natural. O tema a ponderar eram limites alfandegários, e entenda-se aqui liberdade para transitar em um hospital. Via de regra, todos tem direito a pronto socorro. 


Outro fato a considerar. Em uma equipe médica padrão, o impedimento para relacionamentos íntimos se estabelecia na admissão do profissional. O rompimento da cláusula resultava desligamento automático. No Casaredo, contudo, o grupo que atuava fora formado antes de Wong Bohai assumir a administração. Tratava-se de equipe coesa, exemplar, de genuíno bom senso. Não havia necessidade de cerceamentos. O estatuto dos atendentes, criado por eles, estava impregnado em suas peles. Nada que ferisse a ética ocorria até então. A construção dos sobrados deu status às relações íntimas entre os profissionais, havia agora quatro paredes para criar parábolas. 


O caso dos filmes foi tratado como exceção. Quem errou, liberou, descuidou, sofreu? Era cedo para dizer, difíceis os prognósticos. Wong Lam já precisara, muita vez, dos serviços de Alev. A casa nascera pela potência do enfermeiro. Ao longo de alguns dias de observação, foram recolhidas evidências suficientes, para fechar questão. 

 

Comentários

Postagens mais visitadas