Hospital Casaredo 48




 ‘De pai para filho. O fantasminha mal saiu das fraldas e já levando bronca do fantasma pai: cresça e desapareça’. André Ricardo Aguiar.    



Noite de sono conturbado para Madame. Noite interminável, tormenta após tormenta, mar arguto, almas afoitas, aviões enormes a surgir em meio a nuvens untuosas, raios. Vinham figuras da infância, gatos brancos, galinhas, patos, uma roda de poço. O som da intimidade dos xingamentos, a atuar feito adagas, a promulgar a balança da jornada nascente. Justitia. Imagens da juventude, vestidos de noiva, anéis multicores, parceiragens, carrinhos de rolimã, ladeiras, barcos de papel, limas da pérsia, cabelos brancos, amarelados, janelas, saraus com dança inocente e pouca luz, um ataúde em meio à sala, imagens evocativas de tristeza, à qual só se concorre quando um desejo não é satisfeito. Sons de canções solo. Um tumulto de personalidades. Amparo, Adele, Vera. José. Madame, misturada à narrativa, sofria com as febres outra vez, porém trabalhava. Não fora Manoel e a senhora teria despencado do leito. Enfermeiro bom, que sabia das carências íntimas, entendia. Beijou demorado, na testa. Medicou. Silêncio e respeito. Tomou um Júlio preocupado nos braços, que viera ao dormitório sem permissão e foi diverti-lo no jardim.

Madame chorou um bom tempo, assoando-se de quando em quando. Retomou a escrita como quem corrige a rota, era recorrente para José Gaetano, em sonho, ver-se de arrasto, sem poder usar as pernas, às vezes nu da cintura para baixo, em total agonia, perdido, inflamado. Os coadjuvantes sem rosto, só dentes, a pressionar, ameaçar. O cenário, em geral quartos, salas, escombros de demolição. O comandante, sentindo-se vencido pelas angústias, sem forças para reagir, pulsava algum orgulho estúpido, potência dos vitimizados. Rafaele, a caveira que enfeitava agora a cabine da Sor, tentava estender os dedos descarnados para resgatar o navegante, mas mal dava conta de si. Dois homens forçam um portão de residência, desses pequenos e arredondados na borda, até o arrombarem. O corsário retraído,  à janela de uma casa conhecida, chora. Homem não chora. Um dos algozes aponta uma arma prateada. José o reconhece. Alguém a quem ele se afeiçoara um dia. Alguém que agora lhe dedica ódio e está disposto a tirar-lhe a vida. José Gaetano sorri em sonho. Já está morto, apesar de temeroso. Ou estará cheio de saudade? O que é saudade? A cena se desloca para uma sala de taberna, onde as mesas abrem clareira e a assistência eufórica bate palmas, marcando a zarzuela. Uma menina de uns treze anos é sustentada pelas axilas e ri da brincadeira de rodar. Veste camisinha branca com babados no peito, os botões já violados na altura dos seios jovens, rosto redondo de boneca, aureolado por uma touca que deixa ver cachos dos cabelos castanho-ruivos. Olhar dúbio, ébrio, lábios vermelhos, um tanto entumecidos. Orar, para José Gaetano, era cantar sem texto. A saia, de tecido rústico marrom, sem anáguas, menina aldeã, arrepanhada até a cintura, deixava ver pernas torneadas e tingidas de ouro, pelo brilho das velas; não havia pelos pubianos. Conforme o rodar acelera, as pernas da menina se abrem e os dentes da assistência se arreganham para a oferta. José está atrás da lente, enfeitiçado. Herói de merda, pensa em salvar a menina, mas o desejo o imobiliza. Orar, para José Gaetano, era cantar sem texto.    

                                                            

Debruçados sobre um mar de leis, Wong Bohai e Giulionni, o advogado causídico do Casaredo, estudavam juntos os fundamentos, para dar nome aos pacientes permanentes que já possuíam, em alguma parte, registro civil. Buscavam um jeito simples e justo de resolver a questão,  na mais perfeita harmonia com os direitos humanos, constituição portuguesa, código penal. Tantos refugiados, exilados, pagavam pela aquisição de nomes com os quais fazer suas compras às feiras. Pensavam, os dois, em usar da mesma prerrogativa. 


Wong Bohai, pelo lado pessoal, nutria pouca estima ao colega advogado. Algo no magnetismo do outro o incomodava. Jamais soubera de qualquer burla na lei que este tivesse praticado. O colega tinha certo prestígio na península, era chamado a advogar causas importantes do âmbito humanitário. Giulionni conversava com Wong Bohai em inglês clássico.  O primeiro e contundente argumento, livre-arbítrio, praticamente encerrava o caso. Algumas pessoas optam por serem proscritas, caro Mr. Bohai. Não querem ser identificadas, nomeadas. Não se importam em ser um número, uma estatística marginal. E não é asselvajar-se, pensemos nisso. Quais são as bases dos eremitérios? Um apreço pela solidão, pela inação. Nem é contemplar, meditar. Diferente também, de ir contra a corrente. É desfiliar-se, ignorar a ciência, a filosofia, a religiosidade, o status humano ou qualquer outro. É o niilismo per se.  É ignorar-se do e no mundo material. É esperar que algo caia do céu. Por alguma razão – para que não ocorra algo pior - , ficam no orbe, aceitam os gafanhotos e o mel que encontram, pensam que ao acaso. Um dia, se encostam a uma árvore e puf. Ou se penduram a uma aldrava, continuou o administrador do Casaredo, nus, sujos, famintos, enregelados. Houve um silêncio humano na sala, interrompido aqui e ali por um canto de pássaro e pelos resmungos dos pacientes que lidavam na horta. Wong Bohai e Giulionni se levantaram. Ao pararem diante da janela, puderam avistar o mar da Cidade do Porto. A sintonia mudou. A alguns quilômetros se via o cais, os barcos, velames. Ambos tinham vindo de outras paisagens. Sentiram saudade.

Wong Bohai contou ao colega a história, a enfermeira Maria a dividiu com ele, em um café da manhã. Uma irmã carmelita descalça resolveu calçar sandálias e bradar à porta lateral do sanatório, há cerca de quarenta e cinco anos. Juzarita se chamava, nome afeito a tempos de dama da noite. Um êxtase religioso a tirara das ruas após aborto provocado e não concretizado. O ato, por pouco, não lhe custou a vida, em longa e dolorosa hemorragia. Juzarita foi recolhida ao carmelo da freguesia da Vitória em êxtase, dizia estar diante da Senhora da Boa Morte. Remendou-se com vésperas, remediou-se com mais vésperas. A gestação chegou a termo e o destino do bebê foi a roda dos enjeitados. Foi-se o êxtase. Silenciou de boa vontade a Juzarita, esqueceu-se da alcunha, fez os votos. Ficou Irmã Martírio. Vez por outra, contudo, tomada por visões risíveis, estremunhava, babava e causada desespero entre as demais irmãs silenciosas e descalças. Até o dia em que marchou sozinha, por livre e espontânea vontade, até o sanatório. A freira bradou por dez dias consecutivos, já recolhida a um leito. Clamores, rogativas, mais vésperas, te deums e outras vigílias. Foi trancafiada em uma cela, bombardeada com rios de ducha salgada, provocou medo e desordem entre um grupo de tuberculosos que repousava no hospital. No décimo primeiro dia, arrastaram a mulher até a sala cirúrgica. O intento era uma lobotomia, muito em voga na ocasião. Quem faria o procedimento seria o diretor da casa, cirurgião psiquiatra recém formado, franco atirador conhecido e renomado. Qualquer gritinho e bingo, lá ia fora um pedaço sagrado do lobo frontal, para a alegria dos experimentos científicos funestos. Foi a caminho do cadafalso que Irmã Martírio teve novo e marcante êxtase. Quedou-se de joelhos e produziu, no próprio corpo, eletricidade suficiente para enviar os dois enfermeiros que a sustavam direto para as paredes laterais. Pasmos, feridos, os dois homens testemunharam a abertura de uma espécie de portal diante da senhora, onde luz de brilho intenso, diferente de tudo o que se vê como luz na Terra salmodiou cuida dos enfermos, irmã, foi para isto que vieste a este orbe. Assim como acendeu, a luz apagou, a mulher nua ergueu-se, tão digna em sua nudez de velha que fez os homens, ainda fixados às paredes, chorarem. Irmã Martírio foi a passo curto e decidido até a sala do diretor do sanatório, apresentou-se com um brilho de fogo nos olhos e assim, nua, requisitou uma ala para tratar de vinte indigentes, daquele dia em diante. Seria seu contributo ao mundo e traria paz àquela casa de saúde. Dez anos a irmã ficou à frente da empreitada, com mãos elétricas. No ano de sua morte, chegou ao sanatório Maria, a atual chefe dos enfermeiros do Casaredo. O nome Juzarita foi o segundo a sensibilizar Wong Bohai, que se mantinha firme no propósito, encontrar uma solução legal, para outorgar identidade a cada residente permanente da instituição que ora administrava. O pai de Wong Lam respirou profundamente e aceitou Giulionni como parceiro. Não se arrependeria. 


Os dias dos residentes permanentes do hospital colônia caminhavam a passos acanhados, nem sim, tampouco não. Sem surtos eloquentes, alarme, sem alegrias. Os atendentes iam bem, alternavam, entre si, quinze dias de férias. Tal movimento implicava gente nova a transitar pelos corredores, temporariamente. Caso alguém, nesse grupo periférico, se adequasse à comunidade de prática, seria convidado a integrar o quadro de assistentes, médicos e demais funções necessárias. 


Como bom redator de jornal, Madame descreveu o movimento que antecedia a Festa da Travessia quase sem rasuras, misturava fatos cotidianos às histórias de José, Alois e Rosália. Não sabemos onde se leu que coração cresce em toda parte, esta a primeira frase de mais uma página do caderno, escrita sob a parreira, naquela bela terça-feira de sol, dia de crianças a correrem pelos jardins. O som do mar tomava o ambiente, ia, vinha, como se aprovasse os novos arranjos. Coração se embrenha entre as varjas, mato molhado, beira de riacho. Por desejar crescer, em o coração tudo cabe. Eis que palpitava o atelier da doutora Dung Hanh, um coração nascente, às costas de Madame. A senhora contemplara a porta harmoniosa que se abria, convidativa. Ainda não se animara a entrar, o faria em dia de chuva. 


Ao novo espaço logo se filiou o terapeuta das luzes, William Blackwood, aficionado do bordado. Espontaneamente, o rapaz aproveitou a brecha e engajou-se. O grupo nuclear respirou aliviado, o primeiro ponto da pauta daquela reunião com Wong Lam fora ajustado, com louvor.  Também aproximou-se da sala o instrumentista chinês e seu pipa. Se o leitor não se lembra, trata-se de ex-integrante da companhia de Shangai, o senhor Te Dan. Chang Chang, que não cansamos de reforçar, era mãe do doutor Wong Lam, sua lide com costura, outros trabalhos manuais e Chopin, ocupou uma das vagas de criação artística no atelier. Aos poucos, os residentes permanentes do Casaredo, a grande maioria, executavam no espaço alguma tarefa. Eram beneficiados não só pelo ambiente, mas pelo trabalho realizado por eles próprios, que funcionava como injeção de bom ânimo. 


Para Madame, não escapou à curiosidade um professor de canto, recém chegado, a executar vocalizes com a senhora Dois, na manhã em que o atelier abriu as portas. Era bem entrado nos anos o homem, de boa aparência, chamava-se Isidoro Brando. Soube-se que doara fundos para ele e mais dois que precisassem, a fim de obter honradamente moradia no Casaredo. O cantor fora resgatado pela guarda praieira, vagava diante do mar, aos prantos, água pelos tornozelos, sem coragem de adentrar as ondas. Debilitado e confuso, foi atendido no pronto socorro, pernoitou na enfermaria e no dia seguinte requisitou um leito no dormitório masculino. Não queria retornar à família. Aceitou a visita da filha; esta partiu logo, entre triste e aliviada, posto que não fora nem uma nem duas vezes que o pai a acusara de ladra de partituras e descuidada, entre dos e fás. Ele havia requisitado à filha, além de poucos pertences, dois métodos de canto que deixara sobre o piano da sala de sua residência em Estremoz. 


Wong Bohai conversou com a moça, explicou-lhe legalmente o ato do pai, ao apadrinhar uma menina órfã da maternidade. Lenira, o nome da filha de Isidoro, não entendeu muito bem o que queriam dela. Falaria com o marido e os irmãos sobre o assunto, já de posse da cópia do documento assinado por Isidoro, em que acusava pleno juízo e fazia doações. Tratava-se do inventário de uma vida profícua na ópera. O cantor separou parte dos bens que possuía para pagar o asilo. O restante deixou, em partes iguais, para os três filhos, incluída uma parte para o bebê ainda sem nome, nascido naquela manhã em que ele mesmo fora recolhido ao hospital. Porque havia inspiração no gesto, o bebê foi adotado, dias depois, por Lenira e seu marido, que não podiam engravidar.

 

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