Hospital Casaredo 47
Por conta de tantas coisas
Mas eu olhava este menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. (in Riobaldo e Diadorim[1])
O doutor Wong Lam enfrentava um dilema. Não havia material de estudo que apoiasse, como ele precisava, sua tese sobre campos gravitacionais pessoais. O trabalho com expressividade e corporeidade, realizado na praia, dava ao médico asas, enquanto cientista, mais como poeta. Wong Lam entendia que havia urgências a cumprir, tinha os prontuários dos pacientes antigos diante de si. Agora eram oitenta e sete pessoas, a maioria tratada por número, senhora ou senhor, mais o prefixo de contagem, à maneira dos encarcerados. O médico questionava esse tipo de identificação, herança da Assistência. Um, dois, numeração repetida entre os dormitórios masculino e feminino. Os pacientes foram identificados dessa maneira por ordem de chegada. O nome Madame inspirou Wong Lam. Ela assentia quando a chamavam, Madame. Não era mais a senhora Um. Há que se pensar, antes da senhora Um, os pacientes que havia eram algo como os lençóis embolados da lavanderia, embora sempre muito bem atendidos pelos enfermeiros, os sete oficiais. Em alguns momentos, Gaspare pedia a Madame para escrever o próprio nome. Ela escrevia Gaspare. E sorria. O senhor da Nossa Senhora aceitou a alcunha, mas não atendia se o chamavam assim.
Chang Chang, como sabemos, mãe do médico cantonês, reuniu os atendentes na sala de atividades, todos se encontravam de pé, atentos. Wong Lam, dando inicio ao que parecia ser um treinamento, os chamou Um, Dois, Três. Todos olharam intrigados, sem ação. O doutor mudou de tática. Chamou Maria, Gaspare, Javier e assim até o último participante. O dono do nome se adiantava um passo. Maria fez a mesura usada no Lian Gong ao doutor. Os demais repetiram o gesto. Enfermeira Chefe Maria importante, disse Wong Lam. Marias desimportantes. Quanto Gaspare existe? Quanto Javier? Na China, pouco prefixo compartilhado, cerca de oitenta mil por quase um bilhão de pessoas. Mesmo assim, cada um indivíduo, o primeiro nome. Nome de coisa. Flor. Pássaro. Estado de matéria. Atitude. Até coisa ruim, para afastar entidade má. Escreve prancheta, medita importância nome. Por que nomear? Memória, pertença. Desde quando identifica seu nome quando o escuta? Existir. Pertencer. Estar. Sozinho. Junto. Um sentido. Um idioma. Comunicação. Elo. O que representa nome para si, para outro, para ambiente? Sanidade atrelada nome? Como nos reconhecemos? Como atribuímos função, importância, distinção, dignidade? Qual número seu no organograma Casaredo? Do doze ao um, avalia! Em ordem crescente, perfilaram-se Matilde, Joana, Alev, Manoel, Javier, Gaspare, Maria. Os sete oficiais da Assistência. Gilmar era muito humilde, muito estrangeiro. Catarina, Josefine, Bernice ainda não sabiam como se posicionar. Amparo não se moveu. Não pertencia ao panteão. Catarina, ainda titubeante, ocupou a oitava vaga, por formação acadêmica e por ter sido a primeira substituta durante o período chamado de rodízio, o que antecedeu a mudança para o Casaredo. Gilmar, pela lógica, ocupou a nona posição. Por mérito, ele era chefe da ala masculina. Josefine e Bernice estavam contentes por integrarem a equipe, representavam reforço, revezavam bem a décima vaga. Eram respeitosas, muito bem tratadas, requisitadas por todos a todo momento, o que denotava valor.
Raramente havia coisas das quais não se pudesse conversar e resolver em conjunto no plantel do Casaredo. O impasse atual, como engajar a esposa de Javier, sem exigir dela o que não podia doar. O melhor para os pacientes, à luz dos aprendizados na área da saúde, este era o objetivo do grupo. Em os velhinhos estando bem, tudo ia bem. Amparo vinha quebrando ostensivamente a regra, de forma gratuita. Os atendentes ensinavam e aprendiam uns com os outros. Era uma comunidade de prática[2]. As participações periféricas eram prontamente estimuladas a entrar em órbita com o grupo nuclear.
A tarefa dos profissionais naquela manhã, primeiro dia da primavera, foi dividida em três momentos: primeiro, aproximar William Blackwood do núcleo. Segundo, dar nome a cada um dos pacientes. Terceiro, mais delicado: auxiliar Amparo a decidir o que fazer. Da posição dela dependia, entre outros aspectos, o bem estar do bebê Júlio, que vinha sofrendo com os rompantes da mãe.
Chang Chang fez, então, uma surpresa ao grupo, antes de os enfermeiros se retirarem para as atividades do turno. Pediu licença ao filho, com um carinho enternecedor. Contou que viria à praia, por dois dias, um parque de diversões modesto, com direito a barraquinhas de alimentos, jogos, espaço para encenações, mambembe, títeres, atrações de circo, música, danças folclóricas e uma roda girante. Era, finalmente, a celebração do Dia da Travessia. Todos foram convidados a mostrar seus talentos no encontro. O grupo agradeceu muito a iniciativa, todos careciam de energias salutares, vindas de ações diferentes do trabalho.
Outro ponto da reunião foi exposto mais tarde, em particular, junto aos sete oficiais. Wong Lam falou sobre a narcótica Adele. O psiquiatra contava com Chang Chang para enquadra-la. Não havia espaço para melindres e escaramuças no Casaredo; em alguns momentos, o quadro da paciente saia do controle, quase feria as normas naturais da casa. Havia muito trabalho a fazer e um pouco de suspense no ar. Como dar nome a tanta gente? Como dar vida digna a uma criança que crescia em um hospital? E Amparo? E Adele? Eis os cochichos de corredor naquela segunda-feira com cheiro de flor. Um parque na praia. Que ação gentil.
A força de um esqueleto
Em meio aos fuxicos e novidades do Casaredo, Madame contou, em seu caderno, sobre como Rafaele entrou na história do comandante José Gaetano. Orar, para ele, era cantar sem texto, era nomear dores, amores, classificar, qualificar. José tinha um fetiche, colecionava. Eram quinquilharias e cruzes. Parecia, tal acumulação, uma extensão dos seus rezos. Tais relíquias se tornaram, para o navegador, objetos de devoção.
O comandante da Sor entrou, uma vez, em uma taberna em Rosslare e deu de cara com a carranca mais graciosa que já vira. Era um esqueleto humano, tamanho adulto, encontrado à praia de Sandbancks. Sobre o achado corriam as mais tenebrosas histórias. Um pretenso restaurador o cobrira com resina e betume, dando à ossada um tom que lembrava o cobre. O esqueleto ganhou imponência tal, pendurado por correntes à viga mestra da sala, que podia passar pela carcaça de um nobre, um anjo caído, por conta de arcadas dentárias excessivamente abertas. Muitos saudavam o esqueleto, ao adentrar o salão, Sir Blackwood! Os que haviam ultrapassado a quantidade tolerável de cerveja, respondiam ao cumprimento com um Save the King!!! E caiam na gargalhada. José olhou demoradamente a peça. Pelo número de costelas, soube logo que se tratava de uma mulher. Ao se deter nos ossos pélvicos, deduziu que a dama, muito jovem, falecera em trabalho de parto, um último grito alteado. Sozinho, como sempre se sentava nesses lugares, José escolheu uma mesa a um canto. Pediu uma caneca de bebida que não tomaria, um prato de carne e batatas. Continuou a admirar o esqueleto, agora de perfil. Ninguém se interessou em quebrar-lhe o encanto ou fazer companhia. O barulho era tamanho na sala que ninguém percebeu a murmuração de uma Ave Maria. José Gaetano estava profundamente comovido. Não chamou a atenção, posto que parecia tão alcoólico e bizarro quanto os demais. Uma mulher de má fama se aproximou, apenas para dizer que tinha fome. Ele olhou para ela, em lágrimas, lhe passou um dobrão, o prato, a caneca intocada, bem como seu acento. Ao levantar-se, José decidiu perguntar ao dono da taberna se lhe venderia o esqueleto. Contrafeito no início, o taberneiro mudou de opinião quando a bolsinha de moedas tilintou à sua frente. A taberna decadente poderia ser reformada. O taberneiro poderia simplesmente viajar para longe, nada o prendia naquele país. O que o mofino conseguira de graça, como uma piada, lhe rendia agora pequena fortuna e, de certa forma, alforria. Pediu a José Gaetano que esperasse o último freguês sair. O sumiço do esqueleto se transformaria em um mito novo, possibilitaria ao taberneiro evadir-se com notoriedade, envolto em mistério. A mulher de má fama testemunhou o acordo, sem saber-lhe o valor de troca. Obteve mais quatro moedas para inventar a história que bem lhe aprouvesse, picante e sensacionalista. Para a marafona tanto fazia, dava-lhe arrepios aquele cadáver impudico, acorrentado de pernas abertas, como que torturado, executado, a assombrar o ambiente. Teria algo medonho a contar nos leitos que visitava, talvez lhe recompensassem melhor pelos serviços de fornicação.
O esqueleto, já na nova morada, ganhou outra postura. José, com jeito de artífice, quebrou-lhe a mandíbula, para unir as arcadas caprichosamente, nem se notava a fratura. Cobriu-o com uma capa de gaze, que deixava à mostra parte do peito e o que fora uma coxa. Um chapéu florido, discreto, o véu puxado sobre o que fora o rosto. Uma taça de estanho, uma moeda de prata para segurar. José Gaetano acendeu uma vela pela alma daquela mulher e pediu ajuda à Senhora da Boa Morte. Lembrava, a nova composição, alguém que encontrou o santo graal. O marujo não voltaria mais à localidade onde a comprara, não soube como terminou a saga do taberneiro.
Agora José podia cumprimentar sua Rafaele todos os dias. Pensou chama-la Genevieve, achou ofensivo. A expressão cadavérica lembrava, de longe, o pintor Rafael Sanzio. Colocou-a sentada ao canto da escrivaninha de sua cabine. Meteu-lhe, enfim, um monóculo e uma cigarrilha na boca. Antes de assentar a caveira em seus aposentos, o marujo conversou demoradamente com a Julieta, que não enciumasse, pois se tratava de um resgate frágil demais para ficar em lugar da sereia sepultada no mar. Por alguma razão lá dele, ou porque os sinais da senilidade já vinham, José Gaetano escreveu em uma tabuleta todos os seres humanos são comuns, nascem para procriar e sumir. Prendeu os dizeres logo acima do chapéu da excêntrica dama.
Por conta de uma estória de caveiras
Nomear os pacientes. Tratava-se de tornar indigentes legítimos? O que representava a empreitada, Wong Bohai procurava dar-lhe fundamento legal. Eram todos maiores de idade, a condição lhes permitia isenção de impostos e independência. Só não lhes garantia pouso, comida, vestuário, assistência médica e odontológica, tampouco ir e vir. O Estado os ignorava. Para todos os efeitos, estes humanos estavam mortos. Sem família, acolhidos pelo Terceiro Setor. Havia largados em todos os lugares da Terra. Havia cruzes em toda paisagem de Portugal. Havia albergues. Havia favelas. Havia sanatórios sórdidos, instalados em ilhas distantes, para presos de alta periculosidade, dementados. Sanatórios em cidades, para filhos, pais possessos, para se levar estrondosos tabefes e choques.
O administrador pensou no filho, na saga daquele médico que o honrava, que o perdoara. Uma coisa era dirigir um hospital onde os pacientes se renovavam, tornou a ponderar de si para si. Outra, lidar com pessoas que permaneciam ali e nada possuíam, sequer um nome que as identificasse. Tão grave a situação, que teriam sido abandonadas a uma gruta, sem remorso ou quem lhes reclamasse, não fosse a intervenção de Wong Lam.
Wong Bohai conversou, à mesa de jantar do sobrado onde moravam, na Vila Nova do Casaredo, com esposa e filho. Conjecturaram sobre o desaparecimento da equipe, por alguma razão. Os que a sucederiam, teriam a mesma deferência pelos moradores? Ou seriam, todos, jogados ao mar, sem a necessidade de inquérito? O imóvel pertencia agora à família Wong Chang, o doutor Wong Lam era herdeiro natural. Na falta da família, a casa principal voltaria ao patrimônio do Estado, como já acontecera anteriormente. Havia vários pontos a selar, portanto. O primeiro dizia respeito a garantir que os pacientes ficassem bem, enquanto houvesse empatia para com eles.
Por conta de Riobaldo e Diadorim
Há quem não se lembre de Vera, ator escocês, fugido de seu país e acolhido pela companhia Lán sè de Tàyiáng. Deixamos o ator aos cuidados da doutora Cusa, após socorro realizado na praia. É do conhecimento de todos que o ator, em ato desesperado, cortara-se e um dos cortes seccionou nervo importante do braço direito, além de dutos sanguíneos vitais. Está vivo, estado geral estável, porém inconsciente. No bolso de seu kimono, foi encontrada a seguinte missiva
Kyle,
Um infinito de coisas me vem. Imagens. Cantigas. Trilhas. Portos. Céus. Temperaturas. Tormentas com vento. Raios. Vulcões. Neve. Desditas. Desaires. Encontros. Partitas. Partidas. Partos. Cremações. O trabalho do artista maior, tão distante, bilhões de anos de construção, de projetos, protótipos, experiências. Viagens. Realocações preciosas. Fico curiosa, se a equipe primeira era tão desengonçada quanto a segunda, a de Ayr. Um viajante, crianças de pano. Mulheres andarilhas. Crianças de pano. Uma choupana. Pano. As roupas no varal. Canções de saudade. Um rio. O rio dos olhos, baixos. A energia mais pura, mais perfeita, o amor, a envolver tudo. Mergulhado no amor, que poderia bem ser azul, o homem cisma, um pouco atrás de tudo, cisma o que saldar, o que depurar, o que esperar dos ciclos sem fim, provas e mais provas e outros mundos a conhecer, outras crianças. Outros panos, paus. Partitas. Partidas. Uma mulher sonha com a cauda, deixada há poucos metros, o seu uivo de sereia peixe que já não soa. Outra mulher cede, sereia pássaro, cede pelos ombros, a carga que lhe vai no peito e ela nem se dá conta. As canções de acordar se irmanam às canções de partir. Não se pode lamentar, alma alguma parará para ouvir. O que há, diante dos panos, da rede, é a esperança. Esperança esquisita, doída, de deixar ir. Como vai a maré, que quando volta já de outro mar informa. Não deixa de ser espantoso, dar com a memória, que um blackout apagará.
Eu te encontrei há dezoito anos, senhor Kyle Génere. E foi um bom encontro. Eu te perdi de vista poucos dias antes da gravação de Cantigas de Portugueses. Eu te encontrei de outra feita, para elencar as cantigas de ninar, que poderiam ter sido de tantos cantos deste mundo. Dentro dos dezoito, dez anos se passaram. Com a graça das memórias de tradição oral, as cantigas vão seguir, enquanto as mães tiverem leite para amamentar. Eu te encontrei há tempos, senhor Kyle Génere, e não foi por um acaso, acidente. Foi para aprender a deixar ir. Ainda não fui aprovada nos exames.
Talvez eu quisesse depurar melhor a imagem que cruzou por mim, veio ter comigo numa rua da Baixa[3]... acho que eu estava viva, quando do terremoto de Lisboa. Acho mesmo que estou por lá, sob um quartzo de uma calçada da Alfama. E, isso é mistério, acho que te conheci, mesmo, nessa ocasião... Sopram ventos adversos[4], mas estamos todos bem.
Para ti, meus desejos de liberdade.
Hana
Sabedor de que o enfermeiro Gaspare se interessaria, o invisível Alev lhe confiou o envelope. Foi como dar às achas um atiçador.
[1] Do livro Grande sertão veredas, de João Guimaraes Rosa
[2] pessoas que se unem, em torno de um mesmo interesse. Trabalham para melhorar o que fazem, ou seja, resolução de problemas coletivos ou aprendizado diário de determinada técnica, através de interação regular. O termo, comunidade de prática, vem da Teoria Social da Aprendizagem, de Etienne Wenger.
[3] Poema de Álvaro de Campos
[4] Composição de Manoela de Freitas
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