Hospital Casaredo 46





Ciranda de corda, madeira e velame



A ciranda a girar no salão do hospital. Madame permaneceu à janela, a observar Chang Chang e seu passo de borboleta. A senhora acompanhava o bailado e escrevia, melancolia, fúria e dor misturadas. O olhar de Amparo, sabemos, a mulher do enfermeiro Javier, seguia a ameaçar amuado, em outro canto. Melhor atacar esta velha parva, era de pensar, a enfrentar os infernos íntimos. Madame deu de ombros e continuou a contar sobre a tempestade que surpreendeu a Sor em plena Polinésia Francesa. José Gaetano, o comandante cismarento, pôs-se a lembrar de um episódio, uma estátua, o anjo Rafael a segurar nas mãos uma pomba em voo. O marujo apreciou esta peça em uma capela, na cidade de Florença. O enlevo serviu como embrião, para a estrutura protetora de proa que agora refulgia na barca, sob o ataque das ondas rebeldes. Em seu baú, na cabine, José guardava cópias de esboços pertencentes a Leonardo da Vinci. Em uma de suas viagens à Itália, visitou um ateliê onde trabalhavam vários jovens promissores, alguns poetas. Havia estudos e croquis da obra arrojada de Leonardo para vender. O gênio entendia, dentre muitas coisas, da estrutura de barcos. José Gaetano estudou também as engrenagens do helicóptero que o artista projetara, uma bobina e outros objetos.  Tais ideias podiam auxiliar a sua, pueril defesa contra naufrágios. A carranca da Sor, em seu dorso, possuía saliências, à maneira de crina de cavalo. Foi ali que o marujo entreteceu sua engenhoca, com as madeiras que comprou do índio Iberê. Uniu as partes em nós laboriosos, combinados ao manejo dos velames de proa. Foi possível, dessa forma, controlar os movimentos da estrutura: o oficial que estivesse no leme, auxiliado por cinco grumetes, distribuídos em pontos estratégicos, manejaria o para-ondas em ação sincronizada. Vários testes foram executados, até que a força dos homens se somou ao para-ondas harmonicamente. A proposta provocou medo e divisão de opiniões. Somente um acontecimento real, acrescidos o peso, a altura, a espessura do aparelho e o número de ondas, a força dos ventos e da chuva, os raios, a energia humana, definiria a eficácia das ações. Ou mataria a todos. 


E a borrasca veio. Devidamente fincados os homens, firmes nos cordames, o resultado antecipado pôs na face de José um sorriso maroto. Ele pensou: se o leme romper, afundaremos mais rápido. Tratou de dar batismo ao seu amigo, o leme Antares. Esqueceu do ato assim que a tempestade aumentou. Foi ali, diante das ondas, que José conclamou pela primeira vez a Nossa Senhora dos naufrágios. Para auxiliar, veio também a Senhora da Boa Morte e a Senhora das Angústias. José ordenou a todos que mantivessem seus postos, como haviam feito nas simulações. Cada um dos grumetes tomou a si os riscos, não havia o que contestar. A primeira e derradeira onda, doze metros e meio, investiu de frente, desafiando a Sor. José Gaetano berrou que bom, não precisamos cambar. Quando fez o sinal, todos puxaram com destreza e as folhas do ipê se abriram. Passaram por dentro do undífero bloco, sustentaram seu volume tenebroso, como as palmeiras agiam para se firmarem contra o vento. Gritos acompanhavam os gestos aqui e ali. Ninguém caiu. O barco deslizou, subiu. Apesar das oscilações brutas, a nau montou na crista como era previsto, desequilibrou-se levemente. Desceu, do lado oposto, a toda velocidade, batendo de chofre na água ao terminar a queda. Felizmente não havia objeto, banco de coral ou ser marinho de dimensões significativas naquele terço. Um rombo no casco representaria o fim de todos. Durante as instruções e treinos, os tripulantes se apavoraram, somaram-se os imprevistos. Cochichavam entre si, julgavam o comandante maníaco, visionário, caduco presunçoso, que os queria matar. Quando o pior passou, ainda a chover, a equipe se reuniu na popa, calada. Transada pelo medo, alguns levemente feridos, o cenário era desolador. José Gaetano, que acudia o leme e a Julieta, voltou ao posto e parabenizou a todos, agradeceu a Poseidon por terem sido abordados à  luz do dia, assim puderam apreciar toda beleza rústica do mar. Fora cortes ou esfoladuras, nenhuma baixa. Discurso sumário, sem bajulações, acabou por causar boa impressão.


Duas corvinas, extraviadas pelo mar, prometiam um bom ensopado; tinham sido salvas pelo cozinheiro, que pediu permissão para ir ao fogareiro. Levemente eufóricos, os grumetes foram atrás de rum. Somente a carranca não teve sorte. Parte da proa foi arrancada pela força do mar, em função do peso extra da engenhoca. Quem esteve próximo, no momento do estrago, zombava agora de José Gaetano e suas excentricidades, com modos inábeis e atrevidos. Ia se fortalecendo, entre os pares, um laço ameaçador: tramavam desagravo. O velame frontal estava dependurado, vencido. A carranca, enterrada para sempre nas profundezas, salvara-lhes, de certa forma, a vida. O mastro principal permaneceu ileso. Só havia reparos a fazer nas amarras e contorno frontal. Sob a embarcação tudo sobrevivera, a não ser vazamentos em alguns cantos, que não representavam maiores preocupações. Os tonéis suportaram bem os impactos.  Insetos e camundongos avariados povoavam o porão, mas era de se esperar que ainda sobrassem muitos ativos. Quanto a carga, logo seria contabilizada. Chovia com raios, mas tudo estava de acordo. Ninguém disse mais palavra sobre o evento. Faltavam poucos dias para o motim. Maden, o imediato, foi o único que olhou o comandante, assombrado. Que foi, giggio? O homem continuou ali, sem se mover.


Foi novidade para o corsário encontrar o grupo amotinado pela manhã. O barco já seco, a maior parte dos reparos realizada, exceto a reconstituição da proa. Ações ousadas eram insanas, José o sabia, porém, sempre uma aventura. O limite entre o são e o louco era tão tênue no momento, que o comandante se perguntou se seria capaz de atravessar redemoinho sem ser tentado pelas facilidades da perturbação mental. O dia de amanhã é sempre aguardado com alguma esperança. 


José Gaetano, chefe da Sor sem lhe ser dono, sabia que motins aconteciam. Nunca vivera um. Esperava pelos dias extraordinários, acabavam de superar o temporal. Convicto de que flibusteiros desejam esse tipo de emoção, desafios do mar, respirava sem esforço. Exultava. Sentia-se tão ou mais forte que Aioca. Diante do leme, José encarou a tripulação reunida a bombordo, avaliou e minimizou os danos, contabilizou como otimizar aquela situação. Perderia o controle em menos de cinco minutos.


As pessoas, bem, as pessoas eram homens barbados que sabiam cuidar de si, José pensava. Fez uma breve pausa e orou em silêncio. Pois. Mais uma vez, era a Nossa Senhora mãe a quem ele chamava, a mãe dos homens desvalidos. Orou por todos os que optariam por pisar o lado bizarro da solução. Ele, por mais que quisesse, não enlouqueceria, também não diria aos comandados que se tratava de suicídio coletivo, não lhe cabia, eles mais se inflamariam. O marujo supôs ser a carranca da Sor, imaginou-a como havia sido, disposta em ângulo de quarenta e cinco graus em relação ao barco. As chances de vergar eram mínimas, ela não quebraria. Içada em posição quase vertical, de cara com a onda, dessa vez, contudo, a pobre rompeu. E ele? O que faria agora?


Falar sobre transtornos psíquicos era intrigante e difícil, era caminhar por um pântano, entulhado de voragens perturbadoras e caravelinhas azuis. Uma vez, José Gaetano se lembrou, foi afrontar por feiticeira, que o desejava louco. Até hoje, pagava por ter aceitado tal provocação. Para a Sor, era achar outra carranca, quem sabe de cara mais doce. O que ele realmente não previu é que teria, igualmente, de achar outra tripulação, depois de muitos dias no marasmo. A jornada navegava por um triz.


Tempos após aquele brutal evento, já de volta a Lisboa, José encontrou um escultor, Frei Cipriano da Cruz. Este lhe mostrou a matriz para um anjo, em madeira náutica com largas asas, gomos vazados nas pontas. Depois de alguma negociação, José arrematou a alma do novo quebra-ondas. A Sor, agora, era munida de rádio para comunicação com a guarda costeira, leitores por satélite. José Gaetano sonhava acordado enquanto os carregadores movimentavam o anjo até o cais, não mais precisar das surpresas de tempestades ou de tripulações barrocas. Andava a dizer ladainha com mais de cem citações ao nome de Nossa Senhora, não escutava os não que a senhora devolvia. Se o fizesse em voz baixa, com o rosário em mãos, protegido pela nave da igreja, diriam dele devoto. José o fazia aos brados, a esmo, em longos passeios até Sintra, onde se refugiava no Palácio da Pena. Quando perdia a voz ou era interpelado por algum oficial, punha-se em marcha, de volta a Lisboa, e ia tomar a bênção ao frei. O religioso sentiu que a vida do comandante clamava por socorro e deu a ele um anel de pedra vermelha. Para todos os efeitos, um talismã para dias de chuva forte.

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