Hospital Casaredo 45







Sobre nascer, viajar e embolar, de mundo em mundo


A comemoração do dia da travessia continuava em espera. Se o leitor não se lembra do fato, foi aquele dia de deixar a Assistência do Sanatório, o abandonado, e ir povoar o casarão, onde as novas histórias de auxilio pululam. Aquela travessia de velhos loucos, incomum, a beira mar, misturada a enfermeiros bonitos, que incluíram um sanfoneiro brasileiro, a tocar Pisa na Fulô, ai, as terras portuguesas. Até direito a programas ao vivo, repórteres houve, voluntários aos bagos e macas e gritos de levanta, rosa vadia. E aquele menino sentado em um cesto, no lombo de um jumentinho, a brincar com navios de borracha, de cores primárias.

 

O hospital colônia Casaredo, que completava pouco mais de um ano de permanência no cenário do Distrito do Porto, reuniu administradores e médicos naquela tarde de janeiro, para graduar sua atuação. O antigo trabalho assistencial fora preservado, eis o primeiro item da pauta. Os métodos desenvolvidos no sanatório, transferidos ao novo domicílio seguiam, exemplares. Contudo, um estresse psíquico ecoava pelos corredores do belo espaço conquistado. Wong Bohai, ao abrir a sessão, usou o argumento de Lavoisier, demonstrou os ciclos biogeoquímicos[1]. O pai de Wong Lam queria, através do raciocínio, alertar sobre as energias deletérias comuns a hospitais focados em transtornos mentais. Como prevenção contra viciações da atmosfera, Wong Bohai propôs, de chofre, diversificar a faixa etária dos pacientes, movimento radical para o cotidiano da casa de saúde. Dividiu com os parceiros dúvidas, a responsabilidade que assumiriam, se o que propunha era lúcido,  conveniente, tanto para atendidos quanto para atendentes. Diversificar as alas, os casos, promover convivência instrutiva e ativa desde a concepção até a morte natural. Criariam um espaço à obstetrícia, para o cuidado pré e pós natal. Dessa forma, uma ponte entre nascer, viver e morrer seria integrada ao cotidiano dos profissionais ali sitiados. Quebrar-se-iam tabus em relação ao transitório, ao que flui para a fatalidade. Um trabalho profundo a desenvolver, fonte de saúde integral. O doutor Wong Lam pediu ao grupo permissão para citar um comentário geral de consultório: como quereriam ter um lugar como o Casaredo para concluir os seus dias terrestres, caso estivessem desmemoriados ou ineptos. O objeto, naquela reunião: o que possuíam estava bom? Era o atendimento ideal? Como seria mudar a rotina dos pacientes permanentes? As mães atendidas estariam bem em um ambiente compartilhado com achaques de velhice? Competências, procedimento ético, foram estes os primeiros tópicos estudados. Wong Bohai chamou a atenção para a presença de Júlio, Adele, Amparo, os residentes recém admitidos, os diferentes profissionais que se associaram ao grupo, as novas técnicas terapêuticas, muitas em período de experiência. A provocação veio: aquele era um lugar de excelência em morrer bem, dirigido aos sem eira nem beira. Estava bom assim? O quadro atual reduzia, pode-se dizer, a função social do estabelecimento. Em suma, o ponto áureo da argumentação de Wong Bohai era velhice não atrai investidores. Quanto tempo mais durariam os apoios financeiros que o Casaredo angariara? Quem manteria suas doações? Quantos desses apoiadores sugeririam grutas, ribanceiras, as ondas ou injeções letais? Teria sido este o motivo para o descaso com a antiga Assistência?

 

Os casos de abandono de familiares senis, vitimados por qualquer tipo de falência seguiam ferazes, diante dos olhos da guarda praieira, senão costeira. Os portões do Casaredo eram território agitado. Não possuir o rótulo de sanatório atraia para o hospital uma carta diversificada de clientes. Atualmente, no pronto socorro, queimaduras por hidra e ataques de peixes carnívoros eram trivialidade. Afogamentos, um desabamento, tentativas de suicídio infrutíferas, pessoas baleadas, esfaqueadas, feridas, cortes, objetos variados introduzidos no corpo, coma alcoólico, casos de estupro, intoxicações, até um naufrágio. Um parto de emergência. Um aborto induzido e fracassado, com riscos para o feto e para a mãe. Entraram também em pauta os casos de ideação abortiva atendidos, gestações de risco, abortos terapêuticos e parto humanizado. Um silêncio reverente inundou a sala de reuniões. Sim, abrir caminhos de saúde parecia luz onde havia sombra excessiva. 

 

Os temas para pesquisa e revisão se avolumaram: prevenção, profilaxia,  suicídio e violência, a defesa da vida, o respeito às etapas da vida, à diversidade humana e suas mazelas, os valores morais, o ser integral, o modo como o transtorno mental convive dentro e fora do lar, imigração, as diferentes necessidades do paciente, o tempo de internação, a grave questão da interdição, as emoções em distonia, o acompanhamento da finitude, os planos de saúde de quem sequer possuía documento de identidade. Estes foram alguns itens levantados naquela tarde de chuva torrencial. Água caia do céu há quatro dias, ininterruptamente. Uma morte na ala masculina ocorreu durante a manhã. O corpo estava no recém organizado necrotério, a autópsia fora executada por médico legista convidado. Este era outro aspecto a confabular: o forno crematório e o cemitério do Casaredo. 

 

Um dado interessante veio à pauta: os delírios religiosos, comuns nos manicômios, eram pouco observados naquela casa. Talvez pelo estágio  de deterioração das mentes ali confinadas, ou o grau de desesperança em que chegaram à Assistência, tempos atrás. Exceto pelo senhor da Nossa Senhora ou a senhora Três, que às vezes blasfemava contra anjos e santos, poucas ocorrências se verificaram no campo da religiosidade. No dia da travessia, houve manifestações isoladas de preces ditas ou cantadas. Os relatórios antigos continham poucos informes sobre fascinação diagnosticada. O caso da auto enucleação era o único. Entre os atendentes, as crenças não se manifestavam, por precaução. O cotidiano requeria ações objetivas. Todos matizaram seu jeito de ser às atividades, discretamente. As sessões com o doutor Wong Lam e a maneira como a enfermeira chefe Maria lidava com a vida e com todos garantira, até o momento, o bem estar geral. Os tesouros particulares davam sustento individual. O bom atendimento e a cordialidade, para todos, era lei. Não foram computados, na reunião, os estados vegetativos abrigados na casa. Prontos para a passagem, estes resistiriam por anos, sem mudança significativa nos prognósticos. Dormiam apenas. Precisavam de cuidados, contudo, faziam parte da rotina dos atendentes de forma expressiva. A área destinada a sepultamentos, tomadas todas as providências sanitárias, legais, comportava dez covas. Estudava-se, ainda, a possibilidade de adicionar-se gavetas – quantas -, a cada jazigo. Também estava no orçamento o forno, ainda envolto em forte tabu. Que não fundassem, naquele sítio, mais uma baia de Ana Chaves[2].

 

Cada caso, no Casaredo, era orientado pela probabilidade da palma de ouro. Esta foi uma prática adotada por Maria. Quem teria febre naquele dia? Quantos surtos? Convulsões? Quantos corpos doloridos? Quedas? Quebras de dentes, batidas de cabeça, fraturas de fêmur, de quadril? Quantos intercursos? Sim, as ocorrências eram previsíveis. Contaminação pelo contato físico e seus fluidos? Agressões físicas? O enfermeiro que acertasse a probabilidade completa podia pendurar um delicado ramo dourado, bordado em linho, na cabeceira de seu leito ou em uma parede na sala dos enfermeiros, junto de sua foto. Uma diversão um tanto tola, provocava sorrisos, brindes nas refeições. Alev fora sete vezes campeão, alternadamente. Os aspectos sombrios e luminosos da vida hospitalar desafiavam aquela geração de profissionais, uma bela história a deles. Muita coisa ainda serviria de estímulo à convivência, em geral leve e criativa. Os atendentes eram serenos, talvez por lidarem com a dor todo tempo.

 

A tarde chorosa e abafada fluía. A reunião prosseguiu, a portas fechadas. Lá fora o menino, que andava e subia em tudo, estava a se divertir, a pular poças, vigiado de longe por Alev. Alguns pacientes e atendentes participavam do folguedo, mal protegidos por capas e guarda-chuvas. Um possível resfriado era previsto, porém a alegria imperava. Os que tocavam e cantavam trataram de liderar uma ciranda e trouxeram a atividade lúdica do pátio para o salão, sem muitos protestos. Um caldo quente foi servido, toalhas distribuídas, remédios administrados, camisolas secas vestidas; cobertores nem foram necessários. Os pacientes que não  participaram da traquinagem e estavam dispostos, reuniram-se ao grupo no salão. A chuva lavava um tanto de mau humor, saudade e também perversidade. O ar estava limpo. Quarenta e três pessoas cirandavam, serpenteavam, dançavam o vira. Quando a porta da sala principal se abriu, ainda houve uma ciranda derradeira. Chang Chang e Wong Bohai, este mais reservado, aceitaram valsar. Valia a pena procurar um caminho para bem florir aquela comunidade. Eram gente bem.



[1] Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

[2] localizada na ilha de San Tomé e Príncipe, Golfo da Guiné, África Central. 

 

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