Hospital Casaredo 44
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Iberê, que poderia ter sido aparição encantatória
O presente mais bonito da vida para nós, em qualquer ciclo, é sentir a inspiração, é encantar-se, que é diferente de apaixonar-se. Assim Madame abriu novo capítulo de suas anotações, naquela manhã de dezembro, quase inverno. A propósito, para ela, os escritos de um dia eram passado, não voltava a eles para contemplação. Digressões misturadas a fatos, produto de seus mundos íntimos; ao menos tinha opinião.
É bom lembrar ao leitor, contudo, que encontraram um ator a chorar na praia, dias atrás. Madame não sabia, se se tratava da Praia Fluvial de Bitetos ou o que. Portugal surgia, na mente dela, num tabuleiro complexo, com mais terras e águas que na verdade possuía. Confusa, Madame pensou ter visto Alois Donis em um canto do roseiral, a sorrir e não a chorar, logo que o sol nasceu. Ficou envergonhada de perguntar ao enfermeiro Manoel se o via também. O companheiro de beijos da velhice, que todos poderiam tomar por um bruto, girou-a entre os braços uma vez e a embalou por instantes, antes de devolve-la à cadeira, a salvo. O gesto bastou para reanimar a senhora, espantar o espírito que pode seguir, a contar histórias.
Na Humanidade, somente aqueles que foram tomados pelo encanto puderam compor obras fundamentais, combinando a riqueza natural terrestre com seus desejos, Madame escreveu. Somente os maravilhados sentem esperança e por isso agem. A senhora cismarenta passava o dia a observar e tomar notas, sobre a formiga e o olhar zangado de Amparo, sem criar embargos. Glosas para a sombra que arrepia e a narcótica Adele, caída entre os arbustos, a boca cheia de espuma. Amparo, a mulher do enfermeiro Javier e mãe do Júlio, nunca se interessara por seus escritos. Tinha nojo de comer a comida que Madame preparava. Alegava não gostar de peixe. A animosidade se acentuara entre elas nos últimos dias. Madame viu o fenômeno, fingiu não ver, catalogou. Amparo sentiu. Algo estava bem errado naquela personagem e não seria Madame a consertar. Com gesto muito apropriado à sua velhice, a senhora moveu a cadeira de rodas em direção ao quarto, em um horário bom para se estar ao ar livre. Encantatória também é veneno. A enfermeira chefe Maria a transferiu para o leito. Tomou seu pulso, mediu a febre, a pressão, olhou as amígdalas, os olhos, ouvidos. Madame submeteu-se, sem arreliar. Terminado o exame, bebido o suco hidrolisado, puxou mais a manta azul sobre o peito e empunhou o lápis.
José Gaetano, o que dizer? Ele tinha, nas mãos, energia de cura. Movia com elas as palavras, contextualizava, sonhava, idealizava. Poderia fazer mais coisas, mas era isso. Por conta das palavras casadas por suas mãos, o homem pode registrar fatos medíocres que o consolavam, frutos de ilusão, contudo. O encantamento é também para coisas miúdas.
Escutara os gritos no convés no início da madrugada e subiu, aos trancos. Não era seu turno, que dividia com cinco auxiliares graduados. Estavam em mais uma missão para El Rey. O comandante chegou a tempo de ver a crista a se formar. Ia ser das grandes. Os construtores da Sor haviam instalado na proa, acopladas à carranca, várias lâminas de tronco de ipê. Usaram a mesma técnica de modelagem do casco da nau, aprendida com marceneiros lisboetas. O madeirame se abria feito leque, movimento suficiente para aumentar o flanco da proa e suportar o velame frontal. José Gaetano aprovara a estrutura após observar o comportamento da mata diante dos ventos, na última vez em que aportou em litoral brasileiro. Os ramos, ao receberem a lufada, primeiro a continham com a folhagem. As árvores fincavam raízes e então soltavam as cabeleiras em direção ao continente. Assim dançava a vegetação alta, a acompanhar as mudanças das correntes aéreas, um balé de resistência encantatória. Algumas árvores mais baixas se moldavam a este movimento, as cabeleiras perenemente penteadas em direção ao povoado. O corsário entrou na arrebentação enquanto observava o fenômeno. Com seus braços, acompanhou as várias posições das ramagens, sentindo nos músculos a eficácia da propulsão. A Sor deveria escalar a onda gigante que ora se armava, deitaria ao sabor do vento, sem ser tragada pelo volume de água. O experimento o fez nadar por quase dez quilômetros em direção a uma ilha, a quebrar grandes ondas. Fundista nato, José garantia para si boa capacidade respiratória, os batimentos cardíacos se estabilizavam enquanto ele executava as braçadas, as funções vitais mantinham tônus, mesmo sem ter-se alimentado por várias horas. A sensação era de respeito profundo, entre mar e homem. José cruzou seres deslumbrantes, entre eles as perigosas caravelas portuguesas. Agradeceu a elas por não terem se interessado por sua pele. O sol ainda brilhava o suficiente para que os animais marinhos mantivessem distância. O vento sossegou cerca de duas horas mais tarde. O corsário pisou em Itamaracá. Buscou alguém que lhe vendesse madeira própria para jangadas. Enquanto caminhava, calculou a espessura de cada viga e a quantidade de lâminas necessárias para que o engenho funcionasse. O objetivo era amparar a água com a madeira sobressalente. A nau oporia sua força à crista, escorreria para o outro lado. Porque o universo conspirava a favor, José encontrou logo a marcenaria, em um braço de mar um tanto escondido da comunidade de pescadores. O marujo pode escolher, goiabeira, grajuvira, mangabeira e açoita-cavalo, o ipê. Ficou com esta última.
O índio bandeirante que recebeu o comandante era alto, forte como uma árvore. Pertencia à nação Tamoio, habilidoso com o machado, que aprendeu a manejar ainda menino. Iberê se chamava, cordial, mais selva que homem, longe dos seus muitas léguas. Elegante, possuidor de um brilho perolado no olhar, das pérolas negras, estava pronto, sempre, para o impulso criativo. Possuía o germe da obra. Entendeu o projeto com se já o tivesse em mente. O trabalho durou o tempo do furar das ondas, deu certeza de sucesso. Logo as vigas foram talhadas. José, em mangas de camisa, se ofereceu para aplainar. Lide forte, feita em silêncio, medida por palmos. Iberê entendia e falava um pouco o português. Contou que a aldeia que o acolheu na ilha ficava a quatro quilômetros, adentrando a mata. A vibração do homem branco o tornava confiável. José sentiu-se acolhido, sintonizou com a natureza do aborígene. Não havia necessidade de palavras. À noite houve pouso, cauim e angu, uma rede estendida para ele dentro da oca. José apropriou-se da dádiva, da amizade sincera deste todo instinto humano. Se a traquitana inventada desprendesse da nau na primeira voragem, não ficaria madeira para contar história. José apostou. Para ele, cruzar com Iberê significou novas palavras peroladas. Os versos ventaram, correntes quentes, ainda não encantatórias.
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