Hospital Casaredo 43






Desertos


Na primeira vez em que ouvi o senhor Amos Oz[1], contou Javier, o colega Gaspare ao lado, foi em uma entrevista a emissora televisiva brasileira. A conversa dos dois enfermeiros era regada a sardinhas fritas, ambos sentados na areia da Praia do Molhe. O tema da confabulação enumerava escritores que alcançaram notoriedade internacional. Achavam, os dois, que Madame poderia figurar entre eles. A expressão dela, sua técnica psicoterápica da regra básica, os significados das histórias que contava, suas interpretações, questionamentos, depoimentos, o teor das divagações, mereciam ao menos publicação. Estranhavam que William Blackwood, o homem das luzes, não desse importância aos relatos da senhora. William tratava os cadernos como ferramenta secundária de investigação. Para o profissional,  maior relevância decorria da prática culinária desenvolvida por Madame. O que era para se saber, um dia seria sabido, temperou Gaspare sem malícia. 


Amos Oz me tocou na primeira fala, voltou à carga Javier.  O seu processo criativo é apaixonante. Ele acorda às cinco da manhã, toma uma xicara de café e sai para caminhar pelo deserto de Negev. Volta às seis, senta à escrivaninha, munido de papel e esferográfica azul. Fica ali, feito bom negociador de tecidos, até a hora do almoço, cuidadoso, atencioso, mesmo que linha alguma seja produzida. Então o escritor almoça e, das quatorze às dezoito horas, lê os clássicos, os contemporâneos. O senhor Oz fue un punto de inflexión para mí, chico. Empecé a escribir todos los días desde la entrevista. Ya practiqué antes. O olhar do senhor Oz me sonda, pensava em voz alta Javier, desde a leitura do primeiro livro, que calhou ser Meu Michel. A partir daí, os contos que escrevo fluem, um tanto desobedientes, é certo. 


O transito entre o português e o espanhol dava asas aos abrigos de Gaspare, que permaneceu quieto, olhos colados no mar. Que cantarolasse, era bom de ouvir. Javier ainda lembrou-se da declaração de Oz na entrevista, quando disse aos sessenta anos eu perdoei meu pai. O enfermeiro esperava que o filho, Júlio, o perdoasse um dia. E cantarolava, cantarolava. Ao surpreender o pedido público de perdão emocionei-me, tomei Amos Oz como padrinho, fui trabalhar na Assistência y esperé a que pasara la calma, sin rebelarme, sabiendo que no había mucho más tiempo para especulaciones. Y tu, siempre. Foi a vez de Javier silenciar e encarar o mar. Passei a tomar notas a qualquer momento, seguiu a trautear, em uma caderneta guardada no bolso do jaleco. A companhia da maré, os ares, Javier deu a Gaspare O Conto do Pico Ruivo. 


Ao despertar da leitura, Gaspare descobriu Javier e Amparo de mãos dadas, de retorno ao Casaredo. 

 

O leitor talvez aprecie o intercâmbio entre passado, presente e futuro contido nesta narrativa, além das vozes líricas que soam de diversos pontos do tabuleiro, a contar a mesma história. Apostamos na movimentação estapafúrdia que se desenrola e seguimos viagem, contando com sua paciência e confiança e uma boa mezinha contra náuseas. 

 

Sob a parreira, os raios solares encompridavam o tempo, salpicavam de esperança a fatalidade, a de que todos morreremos, uns antes que os outros, uns menos afortunados que outros. Madame anotou perguntas que se fazia há muito. Tenho medo? Hoje ela se sentia ausente. Observou Júlio, que a namorava de longe. Ela no caderno, ele com um carvão na mãozinha, a rabiscar o chão. Ambos guardavam distância, pelo bem da mãe e deles. Onde estará o acerto, de qual sítio virá, de quais coisas queridas? Algum novo amigo? Filho? Amante? Virá quando o corpo estiver muito envenenado? Ainda caminhará, hasteará bandeiras em sua nau? Inexprimíveis encadeamentos de fatos, os da história do corsário escorriam, feito trigo para molho branco. A imaginação os atravessava, como a cortar espelhos e compor mosaico. O que José tinha posto em páginas se aproximava de mitomania. Assim se contemplava um possível final de jornada para ele, em brumas. Os capítulos armados davam ao mercante a oportunidade de entrar em contato com atores de várias épocas. Não seriam necessárias máquinas do tempo ou microcápsulas ou antimatéria, ou implantação de células fotoelétricas ou qualquer subterfúgio científico que levasse José daqui para ali. Anunciada estava a loucura, como se ideia nova fosse. Tolos. Estamos todos loucos, desde sempre. 

 

Madame parou, fez do lápis mirada. Tornou à página. Agora, o termo correto para louco é transtornado. Deixemos que o velho marujo entre em contato consigo através do que resta de entendimento, quando, onde, com quem puder flagrar, sem recursos fantásticos, efeitos fabulísticos. Piticó, Piticó, la mágia comenzó. Que José comungue as façanhas, com velho ou moço ao qual se sinta vinculado. Que venha a fúria teórica de José, a necessidade de pegar o interlocutor pelo afeto, convite simples que a regra básica faz àqueles que podem combinar associações. Correções, evitação de erros de continuidade estão programadas. A alegoria cotidiana segue, do momento de abrir o diário até a hora do repasto. Hoje, a proposta é uma salada de bacalhau. Neste ponto, Madame guardou suas coisas no bolso da camisola e tomou o rumo do refeitório. Quando chegou lá, esqueceu-se. 

 

Josefine lavava a louça e as assistentes o chão. A estação de rádio desfilava sua lista de canções matinais, a resmungar baixinho no canto da prateleira. Madame vivera uma madrugada quente e petulante de mosquitos. Parada à porta da cozinha, de onde se via a horta, pegou o lápis uma vez mais, trocou-o de mão. Ficou assim por vários minutos,  a valsar o objeto de uma mão a outra. Gaspare chegou sem assustar, há dias que a senhora não o via. Ele trazia no pescoço um pedaço de lã. Aproximou-se da cadeira e apresentou a primeira trama da cama de gato a Madame. Ela, pensativa, demorou a se interessar. Gaspare sorriu, intensificando o convite. Teriam, mesmo, que esperar o fim da faxina para cozer. Enfim, a senhora guardou o lápis, aceitou a trama, tomou-a entre os dedos e, após novo enlace, devolveu o brinco ao amigo. 


Após o almoço, regado a tilápia vinda do Brasil, assada, Madame decidiu-se por voltar ao leito. Chovia. Ao invés de cochilar, escreveu. Ainda se conservava a ilusão de mãos complementares a enviar respostas, para o tempero da saga. As respostas não viriam, que o marujo esperasse sentado. José Gaetano, que abandonara um longo fio de lã embaraçado entre os dedos da Rafaele, resmungava. O que contar sobre o Alois, sobre suas aventuras? Sentimos muito informar, quase nada. O que redigimos aqui foi escutado em ensaios musicais, respeitosa e sigilosamente. Do sonhado sucesso dos saraus, nada sobrou. José esperava escapar a um erro que, em geral, não se comete duas vezes, ou seja, envolver-se emocionalmente com gente do ofício. Melhor seria trocar, no cais, uma caixa de diamantes lapidados, que garantisse víveres, ou escolher um leito em Assistência progressista, para lá amargar os últimos dias. Apaixonar-se era proibido.


Como explicar que alguém se imante a outro, sozinho, por meio de um olhar, ou toque na pele? A Arte possui inúmeras situações geniais deste padrão, imortalizadas por mãos, vozes, corpos, sobre os engodos de querer o que não lhe pertence. José procurava valer um níquel, ou alguns cobres, ou limalhas de ferro. Estendia-se em mesuras para ser querido, a mercê de alucinações, de hipnose. Não, não queremos testemunhar, agora, fantasmas inimigos a perseguir José. Como avaliar tal situação? 


José Gaetano, desolado, andava de mãos vazias e esmorecia. Deixara-se fascinar, estava encrencado. Inventar um apaixonamento depois dos cinquent’anos é comer em demasia. Não se preenchem vazios existenciais com comida ou histórias idealizadas, mesmo aquelas que prendem o personagem no pico do Arieiro. 


Uma vez por mês, ou quando as rotas coincidiam - e isso era raro -, os músicos trocavam meia dúzia de gentilidades. José, pangaré delirante, sem por as patas dianteiras no chão; Alois, cavalo árabe. Quando dos esbarrões, José pensava: a resposta poderia ter principiado fomos atrás de uma jubarte e seu bebê. Ou, topamos com El Carrón e seu barco anti-higiênico. Ainda, um rasgo na Antonina, o casco se encheu pelos joelhos, foi uma correria de baldes e gritos. Em outro tom, no porto recolhemos uma mãe muito velha e seu filho cego. Coisas como essas serviriam à causa, casos, causos, canções de tantos mares. Nada, nada, nada.


Vinte anos separavam os comandantes em maturação, atentem para o dado. Estar transtornado é fácil, dizem alguns. 


Enquanto isso, na outra ponta de Porto Calle, Rosália padecia legalmente. Descera do mirante por uma corda de lençóis,  caminhava agora para o norte, pelas praias do litoral. Para ela, o filho que parira era morto. Há certos homens e mulheres que não sei, não sabe ninguém. Alheada, retirou-se da cena, evitou responsabilizar-se. Confiemos nos fados, que podem se compor em sete anos ou sete minutos. Séculos. Temos o cruzamento de outras formas de canção a administrar na saga. Pretendemos afinar a participação de todas elas. 


O leitor pode querer saber mais sobre os enfermeiros, sobre Alev, Joana, Josefine, a tal Bernice. A cabelo de fogo e a dama das tranças. Pode nutrir empatia pelo pequeno Júlio. Pode querer conhecer os números dos residentes permanentes do Casaredo, que só possuem prontuários e estão lá, a sujar os lençóis que o enfermeiro Manoel lava. Podem querer saber das bebedeiras da narcótica Adele, suas escaramuças de huli jing, o prazer de ver ruir a vida alheia. Há muito trabalho a ser realizado na narrativa; caso algum fio fique desatado, desatado estará.


Quebrou-se mais um mastro, vamos seguir. 


Há ainda um nascedouro, um filete de história esboçado antes, cujo desenvolvimento não se sabe é lícito revelar. Porque Madame o visse em situação parecida com a de alguém de quem já não lembrava, interessou-se em ensaiar um parágrafo a respeito. Moço, de beleza e porte tão marcantes quanto os de Javier, cotovelos apoiados nos joelhos, rosto entre as mãos, quedava sentado na areia, Praia de Angeiras, havia cerca de dez horas, foi o que se soube. Madame olhou, olhou mais uma vez. Eram quase oito da manhã, o sol cantava, a beijar as águas. Vera, a senhora murmurou, chamando a atenção de Gaspare. O enfermeiro parou de conduzir a cadeira e fixou a vista. Entendeu que a pessoa estava em surto. O melhor socorro era acionar o pager de Alev. Do nada, o enfermeiro árabe materializou-se ao lado do colega, maca à mão. Sem tardança, os dois a calcularam a gravidade da situação. Madame às vezes repetia baixinho Vera, Vera. A doutora Cusa prestou os primeiros socorros na enfermaria. Discreta, a médica flagrou cortes superficiais nos braços e um mais profundo no pulso direito, hemorragia refreada por um torniquete autoimposto.

 

 

 

 



[1] Escritor israelense, cofundador do movimento pacifista Paz Agora. Faleceu em 2018.

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