Hospital Casaredo 39

 


joaquim cortês


o surto do riso



‘Não é só o sal que diferencia rio e mar: mas o irremediável’. Guimarães Rosa

 

Sim, todos sabiam, o encontro comemorativo do dia da travessia, que presenteou com o Casaredo, estava pendente. Poderiam ter-se satisfeito com a ópera, porém havia toda região vizinha à Cidade do Porto e outras herdades para agradecer. O auxílio seguia seu curso, vindo das mais diversas mãos europeias, o hospital, em pouco tempo, tornara-se centro de excelência, assunto de calçada e noites de fado, festas de santo, a alegria da população avançada em anos. As urgências do serviço hospitalar iam adiando a tertúlia. Álvaro Alcantara, toda semana, postava uma nota na agenda cultural, que os portugueses estivessem atentos, logo estariam celebrando. 

 

Na madrugada em que a senhora Três teve seu primeiro acesso de riso os enfermeiros perceberam, era necessário abrir um espaço para o descanso. A senhora Três  gargalhava de forma tão aguda, espalhafatosa, que pôs em polvorosa a casa toda. No começo da crise, o som acionou  gatilhos em outras pacientes. A senhora Quatro passou do som metálico, de alguém estrangulado, ao grave contínuo de uma baleia. As demais gritaram, urraram, babaram, bateram-se, sujaram, pularam da e na cama, arrancaram cateteres, puxaram cabelos, golfaram, gemeram ainda mais, correram pelo cômodo,  agrediram-se umas às outras, aos berros de levanta, rosa vadia em vários tons. Rasgaram as vestes, jogaram lençóis em meio às suas porcarias. Os enfermeiros se lembraram de que, no dia da travessia, o mote solitário levanta, rosa vadia, tinha afugentado algumas gaivotas. Trataram de o cantar também.

 

Javier foi chamado às pressas. Era o único que, com sua simples presença, podia unificar aquela algazarra em profundo em inconformado gozo, quase divino. O rapaz postou-se no meio do quarto, vestido de vermelho e dourado, subiu em uma mesa, e bailou. O clímax veio como que por encanto, acalmou o bramido, tal qual tsunami. Javier lembrava Vicente Escudero[1], uma rocha em Cala Macarella. A senhora Três arrojou-se ao pé do móvel e, com uma urgência aflitiva, sugou por algum tempo a ponta do sapato de Javier, que secou o movimento das pernas e continuou a palmear. A paciente ofereceu-se por fim, na face de um só olho, a boca desdentada, um fio de sangue a escorrer pelo lábio, a implorar o beijo ressuscitador. Riu mais, agudos que penetravam feito adaga, debateu-se ainda um instante. Fulminada pelo surto, desfaleceu, para acordar somente dias depois, mais demente ainda, na sala de contenção. 

 

Amparo, a madrilenha, o leitor a tenha como esposa de Javier, moradora do Casaredo desde o dia da travessia, assistiu ao transe coletivo, Javier no ápice dele. Olhava tudo, entre horrorizada e extasiada. A moça, num arroubo, atraiu para si o filho, que fora afastado da cena pelo enfermeiro Alev. No jardim, o menino a espernear, a mãe o sufocou com beijos e lágrimas. Demorou-se em soltar a criança, que já arroxeava.  Levou, também ela, alguns dias para adquirir forças e executar suas tarefas novamente. Passou a sofrer com enjoos. As colegas previram outra gravidez a caminho. O marido não a pode socorrer, a Amparo não, coisas da vida, de quem não sabe amar acima das antipatias. Embora frio, Javier temeu pela sanidade da esposa. Temeu pela própria integridade. Júlio, o filho pequenino, Javier procurou não enfrentar. Alev fez as vezes de anjo tutelar para o menino, enquanto esperava abrandamento das coisas, pois acreditava que tudo era bem. Ainda um detalhe sobre este quadro que apenas se esboça: no gran finale do surto coletivo, após Javier ter descido da mesa, alarido diminuído, o enfermeiro bailaor sofreu assédio intenso de outra paciente. Suas calças foram rasgadas com os dentes e por pouco não houve ferimentos graves. Sua coxa esquerda, bem próximo à virilha, guardaria dor e marcas de mordida por meses. Caminho breve se abria para a família Alejandro, legitimado naquele ataque, Amparo por testemunha.

 

A madrilenha se recompôs como pode, sem socorro dirigido. Adele, a raposa de nove caudas, permaneceu por perto, oculta pelas vigas dos corredores. A huli jing revelava sangue nos dentes, aguardava. Alev, invisível, vigilante, intimamente se recriminou, não tivera reflexo suficiente para evitar o desastre, deu prioridade ao menino. Fazia parte do treinamento dos atendentes adquirir anticorpos para arcar com aquele tipo de situação. Para Amparo, foi exposição em demasia ao perigo, o chão lhe fugiu, a segurança do hospital não a acolheu, entendia que loucura era lá com os loucos. A moça não possuía fibra moral suficiente, para suportar o quadro infernal que presenciou, puseram-se à prova os seus nervos e seu afeto. A responsabilidade pela própria saúde e equilíbrio, manter-se seguro, era premissa individual, em todas as ações do hospital. Pena, Amparo não costumava ir às sessões do doutor Wong Lam, embora Javier e os demais enfermeiros tivessem tentado demove-la a cuidar de si.

 

Matilde e Gaspare tiveram compaixão quando atenderam Amparo na enfermaria, porém calaram, sob o olhar duro da enfermeira chefe, Maria. Um movimento em falso e cairiam, todos, na armadilha da raposa. Queimariam lentamente no caldeirão da ilusão, a de que prestavam algum socorro. William aprovou a ação, enquanto ajudava o enfermeiro Manoel com os lençóis. Estava aturdido, o terapeuta também. Foi tomado de surpresa pelo alarido, ao passar em frente ao dormitório. Mostrou-se eficiente e brando, deu alento a quase todas as pacientes, no furor da crise. A única que se manteve quieta em seu leito, durante todo o surto coletivo, foi Madame. Caderno apertado contra o coração, um pouco temerosa, imóvel, observou cada detalhe. Pode, quando tudo se acalmou, pintar aquele quadro bizarro com tintas fortes. Descreveu cenas fabulísticas, talvez de forma ingênua. Em dormitório próximo, no piso superior, o desenhista J.G. concentrou-se em outra situação. Ele representou um vulto escuro, coberto de pelos chamuscados, atrás de uma viga. A entidade aguardava os resultados de um incêndio premeditado, olhos esbugalhados, rictus na face, a seringa nas mãos.

 

Madame percebeu a presença de Manoel no dormitório. Ele a olhou aliviado, ao encontrá-la fora do pandemônio. Afagou seu cabelo, cada vez mais ralo, e foi controlar os danos do ambiente. O rapaz possuía um magnetismo que curava profundamente, ao menos um pedacinho do padecer de quem compartilhou daquela crise. Talvez Amparo precisasse somente de um gesto desses, mas essas coisas é preciso merecer, assim é o mundo. Atenção vidrada no marido, até compreensível, a jovem desdenhou do outro cavalheiro. Precisava instruir-se em proteção, através do próprio esforço e o faria, pela dor. 

 

Manoel foi catando as peças de roupa jogadas, ainda aproveitáveis, salvou colchões, travesseiros, fez de tudo uma competente trouxa bem amarrada e partiu, certamente para o local mais aprazível para Madame, a lavanderia. Fazia tempo, ela não ia lá e não sabia que agora o local era bem diferente. Ah, se meu rodo voasse, ela cantarolou. Manoel passara por Amparo no corredor, quando era levada à enfermaria, olhou-a nos olhos. Porém, a moça só fez baixar os seus.

 

A deusa de ébano, enfermeira Joana, chegou ao Casaredo com o alvorecer. Era seu período de recesso. Mesmo com direito a aproveitar mais um dia com suas particularidades, arrumar sua casa, envergou o macacão e veio também ao dormitório, ainda a tempo de orientar a equipe de higienização, em missão de paz. Conferiu tubos, máquinas, um olhar piedoso a envolver tudo, panorâmico, todas as mulheres foram contempladas com ele. Uma filha que acolhe mãe doente, resignada, era assim que Joana se doava. O canto que ela entoou lembrava deserto, portal vermelho, dianas guerreiras, cavalos céleres. São Vicente foi buscar São Cipriano que lhe desmancha desengano[2]. Um frêmito corria pelas vértebras quando se escutava aquela voz, funda como o Tiberíades, mais ainda quando não havia palavras inteligíveis. Soava como aromatizador de ambientes, não havia melhor. Sua passagem deixava especiarias no ar. Quando a esperança, por fim, aqueceu alguns corações, Joana foi ver Amparo e lhe tocou o ombro, com vigor, tirando a moça da estupefação. 

 

Por fim chegou o enfermeiro Gilmar, sanfona no peito, a tocar o Negrinho do Pastoreio[3]. Aquela cantiga exerceu um toque de defumador e tudo apaziguou, exceto algum choro, aqui e ali. Todas as pacientes dormiram, logo depois da visita. Também ele foi ter com Amparo. O músico foi fechando o fole da sanfona, devagar. No caminho, passou por Adele e com um ch, afugentou a paciente de seu esconderijo. Aproximou-se do leito da esposa de Javier e respirou devagar, com ela, enquanto lhe mostrava os dedos dormentes da mão esquerda. Contou que vinha evitando o doutor Luiz, que o ia assustar com a possibilidade de não mais poder tocar, ou dar assistência, caso descuidasse das artrites. Agindo assim, Gilmar experimentou com Amparo uma técnica de acolhimento, sem repreender-lhe as fraquezas, apontando as próprias.

 

Alev pegou Adele em um pulo.

 

Nesse ínterim, Matilde avaliou a necessidade de reforço de sedação, trocas para cama, camisolas limpas, curativos. Não foram requisitados casulos ou talas ou imobilizadores. Banhos, Gaspare e Maria dariam horas mais tarde, quando as medicações fizessem efeito. A enfermeira dos cabelos ruivos, alvoroçados, apenas tratou de supervisionar as mudanças de fraldas, higienizar os corpos anestesiados com toalhas úmidas. William participou desse mutirão. 

 

Para redução de danos, durante todo episódio das risadas, a presença do doutor Wong Lam foi essencial. Ele parecia muitos, aqui e ali, a apaziguar ânimos, neutralizar contendas. Lembrava um personagem de animação. Em dado momento, Gilmar gracejou uma melodia de samurai em seu improviso no fole. A agilidade e precisão do doutor, a beleza de seus gestos dinásticos, o seu magnetismo, em breve fizeram voltar a calma, após o ataque a Javier. O doutor se pôs como veludo, tal qual a elegância de certos vermes verdes sobre as folhas. Inebriante, ao mesmo tempo assustadora, a atuação surtia efeito além do principio do prazer. Os homens, nos dormitórios dos piso superior, não foram contaminados pela crise das mulheres. Lá estava o doutor Itaú para remediar, auxiliado por Catarina e pela nova atendente, Bernice. A doutora Dung Hanh ficou no ambulatório, junto de Josefine e do doutor Luiz Pedreira, para atender os rebotes e Adele.

 

As mãos de Wong Lam, ao sobrevoarem os corpos sem os tocar, criaram campos de força de muitas cores. Era perceptível a malha energética, a proteção oferecida aos dormitórios femininos. Sua técnica se irmanava à de Willian Blackwood. Suscetível ao tratamento, Adele sentira fisgadelas aqui e ali com o medicamento invisível e, por instantes, suas forças sumiram, por isso se esgueirou para o corredor. Ela tivera uma recaída séria por aqueles dias. Ingeriu, de uma vez, sessenta comprimidos para dor, roubados ao ambulatório. Foi submetida a lavagem estomacal, esteve em isolamento e recebera alta naquela manhã. Quando todos pensavam em respirar, a moça atacou Javier e, logo após, entrou em delírio. Ao ser supostamente descoberta por Alev, pediu que lhe amarrassem às pedras, que a deixassem a mercê do mar. O enfermeiro a conduziu ao leito da enfermaria. O silêncio dos atendentes era mais analgésico que qualquer sedação. Wong Lam conclamou a todos, que confiassem, haveria cura, com cicatriz.


Todas as mulheres, menos Madame, foram induzidas a dormir por vários dias. Um sutil espectro cadavérico permanecia no ar. Wong Lam proporcionara transe pacificador. Não fora possível sanear completamente o ambiente. A ordem era manter os frutos – ninguém se perderia. O torpor onírico serviria como bálsamo, inclusive às paredes do prédio. Vária vez, Madame enredou parágrafos para comentar aquela ocorrência. Não conseguia – e sabia disso -, captar a beleza do fenômeno, tampouco o que viria de todo aquele alvoroço. Por alguma razão, o caos permitiu a ela descrever o dia da partida de José Gaetano, quando ele soube da gravidez de Rosália. 



[1] Nas décadas de 1920 e de 1930 o bailarino e coreógrafo Vicente Escudero, amigo de Picasso, montou espetáculos flamencos orientados para o teatro e que transformaram o estilo do baile, acrescentando movimentos inspirados no cubismo e no surrealismo das artes plásticas. Publicou vários livros e desenhos. Sua obra mais importante foi El decálogo del baile flamenco.

 

[2] Tradição oral brasileira

[3] Neguinho do pastoreio. Acha o meu amor pra mim. Ou corto seu devaneio co’a nega do pixaim. Não adianta me olhar feio, não posso viver assim, minha vida está no meio e parece que está no fim. Se não escrevo e não leio, te transformo em querubim. Meu nego do pastoreio, acha o meu amor pra mim.

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