Hospital Casaredo 38




Encontros e despedidas



A preparação para a vinda da ópera chinesa havia acontecido por videoconferências. Chang Chang fez as chamadas, propôs esclarecer vários aspectos da visita, combinou detalhes. A senhora forneceu um quadro preciso, o estado de coisas do Casaredo. Eis a razão, portanto, da flexibilidade do espaço de concentração do elenco. Novas dinâmicas foram criadas, para aproximar a audiência peculiar e tranquilizar os atores. Os camarins foram organizados por todo os recantos do hospital. Um ator podia ocultar-se por uma porta e reaparecer adiante, transformado. Ou podia compor o personagem diante de olhos curiosos. A missão de cura prodigalizou mudança na proposta cênico-musical. A sacralidade excedeu o palco. Os pacientes em condições puderam assistir aos ensaios, tocar o figurino, as máscaras, até foram, alguns, maquiados, envoltos por tecidos brilhantes. 

 

Chang Chang, que não pudera oferecer paz às filhas, em seus momentos finais, revitalizou a alma ao encontrar-se com a Ópera de Shangai. Os leitores devem se lembrar, a companhia viera ao hospital colônia para apresentar A ermida dos bambus, com poemas de Li Bai. A administradora esteve em todos os setores, de assistente de elenco a camareira. Alguns versos da récita lhe eram familiares e foram entoados com delicadeza, enquanto conduzia pacientes ao jardim. 

 

Por que razão morar nestas verde montanhas, cantava ela. 

A flor do pessegueiro cai na água, 

encontra outro mundo além do humano.[1]

 

 

O Casaredo respondeu ao chamado da Arte. Chovia beleza e jade, em um lugar povoado pelo ocaso. Chang Chang adiou, por momentos, a própria melancolia. Prestou tributo à vida, reverência ao companheiro, ao filho, abençoou a prática cotidiana da maternidade. Cada segundo foi confortado, valorado com experiências criativas, atos misericordiosos. A visita de Vera, amigo de outro período tenso, foi fundamental. O doutor Wong Lam ergueu os ombros ao respirar, a mãe estava segura. Wong Bohai sentiu leveza, beneficiou-se em igual medida. Os pacientes, atendidos com o carinho habitual, suavizavam-lhe as lembranças. A família Wong Chang trocava olhares de bambu, reencontrou a paz. 

 

Álvaro Vilar, entre displicente e silencioso, fotografou bons momentos naquele dia. Jeronimo Alcantara chegou bem cedo, queria flagrar conflitos, contar fofocas médicas em seu pasquim, causar frisson. Chang Chang prontamente o advertiu, não fosse o jornalista incorrer em perjúrio. 

 

Os preparativos para a récita, prevista para iniciar às dezessete horas, foram tão ou mais ricos que a culminância. As histórias particulares colhidas aqui e acolá sugeriram, inclusive, novas estrofes, improvisadas pelo versátil Vera. A ronda aos dormitórios, no turno da manhã, contou com o elenco, que fez graciosa propaganda sobre a encenação, distribuiu flores e bambus pelos jarros, vasos, janelas. A sensação de frescor perdurou por muitos dias. A magnificência e penetração do espetáculo cênico-musical surpreendeu aos médicos. Vera, a grande musa, opinião geral. Durante o desenrolar dos atos houve silêncio, atenção, até suspiros, risos, lágrimas. Um público terno, este seria o comentário dias depois, no tabloide de Jeronimo Alcântara. O jornalista atingia pouco os corações dos leitores, quando não havia algo constrangedor a servir-lhe como mote. Todos no Casaredo e mesmo o diretor da ópera sentiram que foi melhor assim, o texto blasé daquele folhetim de média circulação não atrairia personalidades indesejáveis ao hospital, tampouco comprometeria a trajetória da companhia. Apenas um rolo de fotos partiu com Vilar dessa vez, poucas estampas ilustrativas do evento. O sumiço de seus instantâneos mais caros causou-lhe frio nos ossos e desejos inconfessáveis.

 

“Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas.” Guimarães Rosa

 

 

Madame prestou atenção em Dung Hanh durante vários dias, com ares de apaixonamento. As digressões são individuais, retratos do íntimo. Olha-se uma floresta de bambu e vem deserto. Esfumaçam, quaisquer destas paisagens. Simplesmente se acendem formas, na mente, no coração. São leituras, pinturas, poemas, canções, cochichos, olhares minuciosos para uma rosa, uma folha de parreira, uma andorinha. Recordações de caminhar ao lado. Outro par de olhos, mirado por dentro. 

 

A arte de representar o entorno, das mais diversas formas, salva existências, assim refletia  Dung Hanh após a récita. Escolheu estar só, a caminhar pela orla. Distanciou-se alguns quilômetros do Casaredo, o céu estrelado, sem luar. A moça observara reações delicadas na plateia, despertas pela iluminação, sons, movimentos das cenas, pela atuação, em especial, de Vera. Dung Han percebeu que chegara o momento propício para implantar uma sala de ‘banhos de luz’, o sistema da fototerapia. Apostava no método de tratamento, um condutor de reminiscências, dos processos criativos. O seu fluía com o entrelaçar das linhas de pensamento em grous. As aves esvoaçavam em suas telas, a contar sobre embotamentos e libertação. Dung Hanh apostava na revolução, assim ela nomeava o processo vivido por mãos que mal podiam sustentar agulha, pincel, ou mover a roca. Do gesto endurecido nasciam toalhas, lençóis, saias, xales, bolsas, bordados, à perfeição. Quando a doutora atingiu a passagem das pedras, pode observar, por algum tempo, o vulto que realizava os exercícios de Lian Gong. Juntou-se a ele, elegante.

 

Ao amanhecer, pouco depois da partida das gentes da ópera, a senhora Oito depôs o último ponto na asa de um grou, sorriu e faleceu sobre o trabalho. Uma réstia de luz, refletida de um pingente, incidiu sobre ela durante o último respiro. O novo terapeuta bordava a um canto, uma barra em ponto inglês para toalha. Mostrou-se prestimoso socorrista. Acionou o bipe da enfermeira de plantão, Joana, amparou o corpo da paciente sobre a maca, sempre havia uma a mão, para onde quer que se fosse. Dung Hanh retornava do mar neste momento, a tempo de presenciar a retirada do corpo do ateliê. Como quem colhe um recém nascido aos braços, ninou o bordado da senhora Oito e o estendeu sobre um bastidor. O próximo movimento que Dung Hanh fez foi suportado por Wong Lam, que acolheu o desmaio, qual pássaro ferido.

 

William Blackwood, o aplicador de técnicas lucificantes, guardou o próprio trabalho em seu estande. A imposição de mãos produziu efeito visível. Blackwood higienizou o ambiente, suavizou a aura produzida pelo passamento, beneficiou a quem viria trabalhar mais tarde. O rapaz não encontrara, até o momento, ocasião para propor o tratamento que sabia realizar. Integrava-se sutilmente à equipe, talvez pelo seu temperamento soturno. Pensativo, William ocultou o coração triste sob um manto de presteza. 

 

Horas mais tarde, após o preparo do corpo a ser enterrado, o terapeuta das mandalas foi à enfermaria, onde se encontrava a senhora Oito. Não se surpreendeu, ao deparar-se com duas pessoas às quais rapidamente se afeiçoara naquele hospital, Madame e Gaspare. Após o funeral, eram dezesseis horas, William foi tocar teorba perto da Julieta. Joana o flagrou ali, sozinho. Conversaram os dois, até a lua deslisar em direção a Ourém.



[1] Baseado na tradução, em português, de um poema de Li Bai

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