Hospital Casaredo 37




Companhia da Ópera de Shangai


Sentar-se ao oco, só entre os bambus, assoviando ao toque do pipa na densa oca ao bosque. Desterrar-se. Então a lua é vinda: iluminar. In A ermida dos bambus.

 

                                                                 

O palco. A céu aberto. Mambembe. As carroças. O palco elisabetano. Vitoriano. Italiano. De semi arena. Julial. De arena. La donna di genio volubile.[1] As cortinas pesadas, as rotundas, proscênios, fossos, cordames, spots, o ponto acústico perfeito, os camarotes, balcões, arquibancadas. O circo. A lona. O morto. O sentido do vento, das folhas. Eles não sabem da ópera a metade.

 

Chang Chang ansiava por momentos de prática artística. Queria mover, de alguma maneira, a dinâmica de sua existência, alegrar-se, arejar, inspirar quem sabe. Uma companhia da Ópera de Shangai estava em turnê na Cidade do Porto e Chang Chang teve o apoio de toda equipe para trazer o grupo ao hospital colônia. Alguns colaboradores externos também ofereceram préstimos, donativos. Tanto tempo afastada de suas terras no Cantão, Chang Chang se sentia privada de algo intangível. Ela tocava piano nas tardes que escorriam. Chopin, seu compositor favorito. Saudades de casa? Da vida fora dos muros do hospital? Das filhas. Poderia ter saído com o marido, para espairecer. Desejou compartilhar arte com todos.

 

A companhia chinesa chegou à praia com o sol a despontar. A récita a ser apresentada, A ermida dos bambus, trazia poemas nebulosos para a cultura ocidental e um libreto que não se traduziria facilmente. Lembrava histórias da Rota da Seda. A beleza vinha junto, segura de si.  Os atores exalavam disciplina férrea. Iniciaram logo o processo de montagem, dos cenários, da indumentária, dos ensaios. Andavam pelos corredores reis, princesas, oráculos, campônios, bambus a cantar e tocar. A noite passa no Templo do Cimo[2] era declamada em vários pontos do Casaredo. 

 

Noite, no templo, no alto da montanha

Posso levantar a mão, acariciar as estrelas

Mas não ouso falar em voz alta

Receio assustar os habitantes do céu

 

Um dos atores deslisava um imenso e leve dragão pelos corredores, arrancando gritos e risinhos de quem por ali passava. Uma linda mulher o seguia, em trajes de rainha. Depois se soube, Vera o seu nome, do latim verdadeira, aquela que conduz a própria vida dignamente. Tratava-se de ator escocês emblemático, Kyle Género, foragido de seu país diziam, por encenar Diário de um louco, de Nikolai Gogol. A falha maior, dar vida à Dama das Camélias, de Dumas, em pleno Baile Chloichridh. Em poucos dias, a permanência na Escócia tornou-se, para o ator, impossível. Então conheceu Chang Chang. 


A tristeza pela morte das filhas havia obrigado Wong Bohai a proceder a internação da esposa, no Royal Edinburgh Hospital. No momento em que iam atravessar as portas do centro psiquiátrico, o casal presenciou uma contenção. A intuição de Chang Chang informou: uma injustiça estava sendo cometida. Melhora significativa se observou na saúde da cantonesa a partir daquele instante. Em poucos dias, graças aos contatos de Wong Bohai, Vera partiu com a Companhia de Shangai, oculto em um saco de lavanderia.


O senhor da Nossa Senhora acompanhou o dragão durante todo o dia, a pular de um pé para outro e arremedar trechos dos poemas declamados. Ia ao lado de Vera, encantado. O figurino elaborado dos atores, as máscaras, os instrumentos musicais, tudo corroborava mudança vibracional significativa ao ambiente   do Casaredo. Muitas das pacientes procuravam imitar as coreografias enquanto o ensaio transcorria na sala de atividades. Um pouco de susto, surpresa, até riso. Crianças brincavam por toda parte, era a terça-feira das mães. Portavam-se de modo irrepreensível, diante de tanta cor, som e movimento, atentas a todos os detalhes. Silêncio, cantava Vera, a tocar o guzheng, para não serem perturbados os seres celestiais.

 

Madame possuía uma escuta primorosa. Logo após o ensaio dos temas musicais, realizado fora de cena, ela cantarolou à perfeição um deles, alusivo à quietude dos bambuzais. Aproximou sua voz à técnica de canto utilizada por Vera e chamou a atenção de toda companhia. A senhora parecia ouvir-se, pois sorria ao cantar.

 

Mas só o vento da primavera

Pode compreender e explicar

Os imensos ciúmes da flor

Curvada sobre a vedação 

Na varanda

Do pavilhão dos aloés

 

Madame repetia determinado acento vária vez, para fixar a forma, sorria mais, usava as mãos para arrematar o gesto, sorria ainda mais. O enfermeiro Gaspare acompanhou tal exercício, apaixonado. Seguiu a conduzir a cadeira, também eles atrás do dragão. Apesar de todos os revezes, a voz da senhora era forte, embora lenhosa. Falhava em vários trechos, prejudicada por tosse e respiro sôfrego, o que a tornava figura estranhamente trágica, algo como um testrálio entre carvalhos-alvarinhos, que se encontram  entre o Minho e Leiria. Vera, que acompanhara a cena embevecido, ajoelhou-se diante da cadeira de Madame e a abraçou carinhosamente, sendo por ela acolhido. Madame lhe disse ao ouvido canta filho, canta mais, canta filho, canta mais, canta filho, canta mais. Vera, recomposto e cheio de vigor, já de pé, envolveu Gaspare com seu manto, em agradecimento.

 

A companhia de ópera contava vinte integrantes, que revezavam papéis. Madame sentiu necessidade de cozinhar. Gaspare calculou o dobro de refeições que geralmente preparavam. Precisariam de ajuda. A senhora vinha de um período de maior equilíbrio, lucidez, aceitou o desafio de dividir o espaço com outras mãos. A enfermeira Catarina sugeriu repetirem uma bacalhoada, a dos grãos de bico. Chang Chang colaboraria com dois pratos simples, a base de lámen e arroz. Um dos instrumentistas da companhia, que tangia um instrumento de cordas da família dos alaúdes, o pipa, tocava no corredor. Perguntou, em elegante português, se poderia praticar no refeitório, enquanto todos cozinhavam. Foi aceito com prazer, um deleite ouvi-lo, o som das cordas e sua bela voz ofereceram singularidade ao tempero dos pratos. A doutora Dung Hanh, que acompanhava os pacientes, a transitar em meio ao torvelinho, aproveitou-se de uma folga e foi ao refeitório. Conhecia o relacionamento entre Madame e Gaspare naquele sitio. Desejou interagir com eles, preparar Banh cuon, peixe grelhado a la Vong e Canh chua. Gaspare, que se mantinha vigilante com Madame, respirou aliviado com todas as ofertas. Como era bonita aquela mulher, a doutora, o enfermeiro se deu conta naquele momento. Uma sereia.

 

Com Dung Hanh na cozinha, Madame ficou eufórica. O efeito soporífero do vinho verde ingerido pela manhã havia passado, sem sequelas. Uma curiosíssima habilidade de imitação se revelou. Em breve, os gestos da vietnamita eram reproduzidos pela senhora, seus silêncios, o bailado. Gaspare observou, entre extasiado e risonho. Se não significava a recuperação sonhada para um paciente, tratava-se de um declínio da existência higienizado, poetizado, bem humorado. A doutora se divertiu com o escambo, exagerou nos movimentos com os braços, mãos e expressões faciais, o que fez o músico rir vária vez. Poesia e burlesco, era o que Gaspare presenciava. Morrer naquelas condições, o sonho de todos, médicos e enfermeiros, era no que o rapaz refletia enquanto talhava os ingredientes. Talvez fossem ideias ingênuas, porém consoladoras. Desejou registra-las em texto. Quis também que Régia estivesse ali. Sim, naquele instante, Gaspare pensou na própria morte. Todos, na casa, trabalhavam por um desprendimento humanizado do corpo. Eram exemplares tão dementados, reunidos naquele espaço caricioso. Gaspare desejou que todos os seres tivessem o direito de morrer em paz, mesmo os que cometeram crimes. Nas alfândegas, tratariam de ser consolados, enquanto recebiam as novas sentenças. As atividades laborais comunitárias do hospital colônia acendiam as últimas luzes dos pacientes e as primeiras dos enfermeiros. Muitos se salvariam de uma turnê trevosa. Este ideal de libertação pacífica era o que congregava o grupo de assistência. Desatar, soltar, enquanto ainda estavam na corporeidade. Tal objetivo enchia a alma do enfermeiro de gratidão. E que música era aquela que vibrava do pipa? O que era a habilidade daquele músico? Sua voz anasalada. Gaspare desejou cantar e tocar, ele também. Tiraria o pó de seu instrumento de cordas, assim que tivesse oportunidade.

 

 



[1] Ópera de Marcos Portugal

[2] Poemas de Li Bai

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