Hospital Casaredo 36
Amor, qual palavra, só palavra. Tua mãe, a extrusão do amor, é andarilha em terra santa de tudo, ó marujo. Tua mãe te trouxe meio que a força, meio por querer a este mundo e tornou ao mar, à cata de si mesma, para que tu aprendesses a marear. Sereno, pó roxo e vermelho, susto de mãe. Amar a si, antes de sair a distribuir amor.
Madame chorou à noite, como se a chuva brotasse de si. Manoel, durante a ronda noturna, observou os movimentos da dama, que não dormiu. Tomou seu pulso vária vez, doou seu abraço úmido e a deixou com suas dores. Joana procedeu de forma parecida. Enquanto devolvia a senhora ao leito, após a micção, cantou-lhe cafuné, cafuné, é de San, San Tomé, vem de lá, das Luanda, tem cheirinho de zimbanda le le ê, le le ê, le le ô le le a[1].
Os pingos demoraram a cair naquela visão marítima, um cheiro gasto de madeira em combustão, não dava para chorar assim por tantos irmãos, restava achar pronta solução. O aguaceiro, depois de muito custar, veio caudaloso. Enfim, o corsário dormiu um sono perigoso. José Gaetano levantou-se, ainda de olhos fechados. Dirigiu-se à pequena escada que levava ao convés. Parou ao primeiro degrau. Custou a tomar ar e quando o fez, engasgou-se, tossiu. Mesmo assim, permaneceu a dormir sobre o degrau, apoiado ao madeiro da nau. Ponderou em voz alta, eu fiz tudo isso para te agradar. Tens uma má vontade de gelar os ossos, José rangeu os dentes, balbuciou. Ah, os filhotes, muitos filhotes de pássaros mortos, muito sangue sobre o gramado, ainda os ouço piar. José via Rosália em trabalho de parto e não sabia. Ela esperava, braços abertos, que o homem contasse, se abrisse. Ele se calou. Ela teve outra contração. Era a consciência a pedir, gentil, ó marujo, vela mais por ti. José despertou do fenômeno exausto, um tanto ansioso. A saudade veio, com gosto de torrão, ou será de bicho? Encadeou, escandiu, escrevinhou, escrutinou, estendeu a espuma além do ar. Rosa sobre os lençóis de sangue e José queria uma sereia. Trouxe o verso cantado ao seu serviço. Cafuné, cafuné, trauteava a preta no cais de Ana Chaves. Contou grão, escolheu, esfumou, enterneceu-se, embalou fantasmas. Nada disso alteraria o curso da viagem. Eis o ofício do transtorno sem nomeação. José entardeceu, entristeceu-se, que é quase dissolver-se, viveu em mausoléu, nu. Tornou a mover-se, inventou desculpa, aproximou-se, combinou voltar, arranjou pretexto, pairou em um bordão, pôs-se sob o tapete. Ninguém o poderia julgar por falta de empatia. Cada instante exalava seu quinhão de experiência, arado, lavra. Cada ir e vir preservava apenas o discurso, nu. A ação morria. Esquecer-se. Se tudo é ilusão, palavreado em uma carroceria, há este pendão em nós, boias frias, catadores de promessas no mar.
O nascer de mais um dia encontrou Gaspare e Madame, o caderno aberto diante do surto de José ou dela, dava no mesmo. Um prato de aveia fria, sentados os dois na bancada do refeitório. Ele a estender-lhe a colher, ela a aceitar os bocados com resignação. Havia mascavo, hortelã, canela e leite na receita, o enfermeiro preparara. A senhora tinha uma escara feia na lombar. Um curativo de hidrogel era trocado de pouco em pouco. Havia sinais de melhora geral no quadro. O copo de vinho verde a esta hora transgredia a todas as normas e lógicas. Gaspare mergulhou a colher da aveia na taça e deixou que a senhora sorvesse o bocado. Na segunda colherada, Madame apossou-se do copo, tomou-o de um gole só. Eram lágrimas, lágrimas dos dois. Gaspare serviu-se de outra taça e colocou mais líquido na da senhora. Esperavam, os dois. O que, não se sabe. Esperavam juntos e isso amenizava a não ação. Gaspare lembrou-se de Régia, do som úmido do peito em seus últimos dias. Madame olhou para o rapaz. Filho, filho, cantarolou. As cores permaneciam nas faces da senhora, sensação de brevidade e tonteria. A senhora Três fora sedada mais uma vez, por conta de nova crise. De volta ao dormitório, após a contenção, a paciente enfrentava seus daimons em sonho, tristes esgares do corpo, em denúncia lasciva. Ao ouvirem o canto de Joana, todos os fantasmas foram bailar diante da âncora no jardim, em silêncio. O som de um alaúde interrompeu o fluxo marítimo, não muito longe dali. Mais alguém andara insone.
Comentários
Postar um comentário