Hospital Casaredo 35





Nove jornadas de sete anos 

 

Passada a crise, a senhora Três já recolhida à contenção, Madame, ainda encostada à palmeira, envolta por uma manta, Santur por companhia, refletiu sobre as rosas, sobre vadias, sobre o caminho que se percorre à pé. Tirou seu caderno do bolso da camisola, conferiu a ponta do lápis, olhou o entorno, a ver se seria interrompida e concentrou-se na tarefa de descrever a marcha mercante de José Gaetano. Calculou ciclos de sete anos para o que chamou de pequenas jornadas. 

 

Completou-se o oitavo ciclo de José em fevereiro, quase todos os tripulantes à bordo da Sor, exceto alguns, que pescavam em chalupas pouco afastadas do barco mãe. O comandante, como a celebrar, mergulhou no mar ao nascer do sol, pouco antes de zarparem. Abraçou a Julieta, ficou com ela o quanto seus pulmões puderam suportar e retornou à superfície. Estavam próximos à Ilha de Ano Bom. Depois de composto, José dirigiu-se ao leme e considerou, com cuidado, o que esperar da nona volta de sua roda da fortuna. A ilha acalmou suas dores na curta estadia. Viagem tranquila, para escambar toalhas de linho, bordadas a mão, por vinhateiras que fabricavam o Moscatel de Setúbal. Sopravam ventos favoráveis na ocasião e a sombra de suas desilusões ia ligeira, a maneira de cumulonimbus. 

 

A fachada do casarão que reluzia, próximo à Cidade do Porto, lhe vinha à mente faiscante, toda ela azulejaria, toda azuis e cremes e brancos. José Gaetano possuía montante suficiente para comprar o imóvel a beira mar. Como andaria a Rosália hoje, a estalajadeira que, ele sonhava, povoaria aquela mansão, como iam seus amores do mundo e seus pratos de bacalhau? E aqueles peitos perfumosos? O Donis, José sonhava mais, viria ele parar ali, no paraíso, repousar seu corpo de tanto navegar? 

 

O manche obedecia ao marujo, mantinha o rumo, ventos a estibordo, balanço de ninar. Seguiriam para Santo Antônio de Palé, a buscar óleo de palma e depois do carregamento concluído, sem demorar em terra, partiriam para Lisboa. José, a Sor, a hospedaria, os escambos e saraus. O comandante não contabilizou as correções a serem feitas, exoradas dos ciclos que viveu no mar. Se parasse agora e abrisse seu livro, perderia o rumo. 

 

Andorinhas se aproximaram da embarcação, a voejar perto dos cirrus e José entrou em transe. Anteviu um corpo nu de homem, um assassinato ancestral, traição a várias mulheres, abandono do lar, indução ao aborto, chibata, atos ilegais de toda sorte, suicídio. A visão passou-lhe diante dos olhos por um segundo e uma eternidade. O barqueiro balançou a cabeça e procurou afastar tais presságios. Como curar suas dúvidas, medos, compulsões? Seus apegos? Sua solidão sem trégua? José tinha sessenta anos naquele instante e variava, as roupas do corpo úmidas, sentia-se ferido, sem eira ou beira, a casa íntima vazia. Não se é compadecido, se aprende a ser. Então o marujo canto andorinha de asa negra, aonde vais.[1]

Depois desse desassombro diante do sol, que se punha, José passou o leme ao imediato e desceu à cabine. O diário de bordo estava junto a Rafaele. Teve vontade de despir as vestes, secar-se. Tudo soava ordem, a tripulação aparentemente ativa. Sol entre altostratus. O bucaneiro quis esticar-se, ou baixar um batel e refrescar-se na água gélida, deitar na areia branca da costa ainda visível, pescar um peixe, cozer em fogueira ao cair da tarde, vestido ao natural. Água de coco para matar a sede. Ao não realizar intento algum, o grumete calou o coração. Magoado, isso era previsto, voltou à proa e organizou turnos.  Ordenou que a tripulação tomasse um bom banho no dia seguinte. Não seria tão ruim trocar encardidos por sal. Ao menos, se poderia diferenciar olhos de narizes. Os homens rosnaram.  

 

Muito menino, José Gaetano aprendeu a pescar usando as mãos. Aguentou aguaceiros, gritaria das ondas e dos céus, ergueu e baixou tonéis, limpou excremento, feridas, sentiu fome e sede, cambou, adernou,  lutou sozinho contra o peso das velas. Só não aceitou bem o frio e mesmo assim, ao encalhar algumas vezes em bancos de gelo, sobreviveu, mesmo às feridas das pernas que o inverno abria. Deu com muitos ursos polares, também caravelas portuguesas, os balões coloridos do mar. Ao cair em fundas melancolias, José enviava sinais de alerta aos entes que ele considerava amáveis, amarrava bilhetes às patas das gaivotas. O sinal, que enviou de Cabo Verde à Guarda fez-lhe deixar de esperar. 

 

A questão era mesmo essa: parar de jogar sobre os braços dos outros o trabalho de estiva que lhe cabia fazer. Então, a saudade era um bicho? Por que José associou pensamentos desesperançados aos torrões de terra comidos na infância, não sabia. Ou sim, era o resgate da mãe que, sozinha, tomara conta dele em tempos de sarampo e difteria, mãe sem rosto, sem sorriso sequer. Mãe ambígua, seu herói. As lombrigas herdadas dessa fartura de terra saíram em coquetéis de licor, deveriam ter levado a saudade com elas. Mais tarde, foi a vez de José engolir água do mar, de perder pé. Naquela ocorrência, folguedo, um outro fruto de sua mãe lhe poupou do afogamento.  A saudade é um bicho? Parece que é. O que José Gaetano fez, afinal, para conviver em regime pouco saudável com seus pares? Muita vez, melhor não saber.

 

A vida, com seu combinado de mistérios, punha grãos de areia em ostras, para que se produzisse a pérola. Ou o mar inteiro. Evitava-se o desperdício de tempo, de toda sorte. O que ordenar ao marujo na fase que ele atravessava? Que mantivesse a dignidade. A alma agonizante, feito nó malfeito ao mastro, por aqueles que não sabem da ópera a metade, sub judice. Mentiras tem pernas curtas, José não poderia contar vantagens, não se inventa a própria viagem, não há libreto que se construa sem uma pitada de verdade. Os cálculos náuticos foram anotados, da maneira mais correta que o comandante conhecia. Sob sua responsabilidade, havia um barco de oceano que não lhe pertencia e homens, trinta e oito, de vários continentes, sob sua tutela. A imaginação o levou ao dilema: se um dia a Sor afundar, levará consigo a Julieta. Não, não levará. O corsário prontamente a libertaria, fosse ela a última cintura a apertar, antes de ele agarrar-se ao casco. José engastaria a Julieta antes, no jardim do casarão à beira mar. 

Flor de Lotus com preenchimento sólido



[1] Andorinha da Primavera, Carlos Maria Trindade.

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