Hospital Casaredo 34
Levanta, rosa vadia
As ondas a escorrerem dos olhos peripatéticos: na asa da sereia pássaro, o tempo; Na cauda da sereia peixe, perigo; Na bruma da ninfa alegre, corrente a dor. Isso, aquilo, quebrou. Estou. Narciso, Tritão, adernado o barco, mirante de água. É o rio, é o rio, é o rio. Não, é o mar.
Madame apontou o lápis luneta, eriçado, diante da Julieta. Era a segunda vez que se defrontava com aquele espaço do hospital. Uma inscrição no granito informava o nome ao artefato, não se tratava de alucinação. No mais, se perdera o fio da narrativa de José. Que dia era hoje? O que sucedera? Já era hora de cozer? Eram as leis das estrelas, a compactuar com os homens. A senhora contava, quem sabe, setenta anos de idade. Guardava cacos de lembranças, talvez suas, talvez de um amor, um nascimento, uma morte. Em vários trechos de seus escritos, Madame perguntava, através da voz de José Gaetano, se valera a pena a experiência terrena, se foram cumpridas, minimamente, as metas constantes nos seus requerimentos. Admirava a vida. Apenas cismava com a jornada. Se alguém conseguia cumprir as leis, afinal. A senhora tivera sucesso em algum tentame, ou foram apenas revoltas, teimosias e resistir? O fato é que Madame vivia, com seus pontos mortos, mas vivia, lento, doloroso e aquecido viver. Não lhe faltava o momento de agradecer, por estar naquele lugar de bem morrer. Gaspare, o enfermeiro, ainda era o seu menino, aquele que acreditava que ela poderia voltar, mesmo que por instantes, a contar como viera parar dependurada na aldrava do sanatório, há tanto tempo, seminua, ferida, fedorenta, sozinha, sem nome e sem vintém.
Levanta! Luta, vadia, levanta! Claudicando, as faces descompostas, vinha se aproximando a senhora Três a urrar, pronta a jogar-se sobre a cadeira-de-rodas. Luta, vadia, luta, Luta! Vadia, vadia, vadia! Matilde, atrás dela, preparava a contenção. Antes, precisou lutar. Nem ela, nem Javier, nem Gaspare, nem Manoel deram conta de escapar das pancadas e arranhões. O surto durou cerca de cinco minutos, seguido de forte convulsão. Dava para sentir os cheiros, da energia instintual, da sexualidade infantil apodrecida, dos esfíncteres, do ódio compacto. Triste visão, de dar engulhos. A camisa de força acomodou aquele ser tresloucado, um abraço sufocante que não oferecia afeto. Era o que havia para o momento. Como se chega a este sofrimento? Quantos monstros ali, enredados por faixas e presilhas? Ninguém jamais o disse, mas todos esperaram choques naquele instante, vindos direto dos céus. Santur aguardou, respeitoso, Júlio correu a encontrar a mãe. O azul do dia era até incômodo de olhar, de tão brilhante. A maresia causava comichão.
Madame acompanhou toda cena, com uma pena jamais capturada. Os sopapos não lhe alcançaram. Após a colocação da camisa, Madame pareceu sair de um transe. Aproximou-se sem medo do fado no chão e assentou a mão direita sobre a fronte da colega, que estrebuchava. Desceu a mão com calma, algumas vezes, para cerrar o olho bom da outra, em carinho maternal. Logo o toque sossegou a paciente. Os enfermeiros retomavam folego, deitados no gramado. Matilde observou um líquido leitoso no ar, que uniu as duas mulheres. Relaxada, distendida, as cores da senhora Três voltaram à normalidade, o olho se abriu por instantes e havia brilho, gratidão. A cadeira foi-se movendo devagar. A mão da senhora tocou a cada um dos enfermeiros, onde era possível. Um joelho, o cabelo ruivo, a mão que se lhe estendia, a nuca, o ombro. Do toque vinham impulsos eletrificados, de matrizes distintas. Para cada dor, uma coloração. Madame dizia rosa, rosa, rosa, girava a mão no ar, antes de tocar cada pessoa. Santur, atento, achegou-se de Madame, o focinho em seu colo, sobre suas mãos abertas, palmas para cima. Depois dessa troca magnética, a senhora pendeu para frente, como se dormisse. Gaspare a dispôs no gramado, junto a uma palmeira, para que recompusesse suas forças, o cão deitado de comprido, grudado a ela. Um pouco roucos, os enfermeiros cantaram e riram. Fui bailar com meu batel além do mar cruel e o mar bramindo diz que eu(...)[1]. Riram, de rolar. Matilde levou a senhora Três para a contenção, na cadeira de Madame. Sabia que logo viria rebote.
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