Hospital Casaredo 33
Mar de rosas
Canta uma canção bonita falando da vida minha vida olha o que é que eu fiz olhos nos olhos quero ver o que você diz o aço dos meus olhos e o fel das minhas palavras palavras calas nada fiz no meio da mata ouvi o piá de dois mutum passarinho amarelinho já pousou já fez seu ninho tudo em volta é só beleza céu de abril e mata em flor flor de ir embora é uma flor que se alimenta do que a gente chora blackbird singing in the dead of night fly me to the moon a lua quando ela roda é nova lua lua lua lua por um momento meu canto contigo compactua(...) assim cantarolou Madame, por mais de uma hora.
Wong Bohai instalou no hospital colônia um Pronto Socorro e um Sistema de Triagem para pacientes. O atendimento expandiu, na medida da divulgação. Passavam pelo PS muitas pessoas com diferentes padecimentos, oriundas também do antigo sanatório. Os Amigos do Casaredo se tornaram bons parceiros, prontos a auxiliar àqueles que precisassem de transporte, pouso, estabelecer contatos internacionais e outros serviços de emergência. Médicos e residentes convidados cumpriam escala no hospital, agendas lotadas. Um dos dramas atuais era receber pacientes abandonados ao portão ou à praia, vítimas de exilio, fugitivos de guerras. Nos últimos dias, cinco deles foram instalados em vagas provisórias, alguns amputados, outros bastante enfermos. Alev tratava da recomposição de cidadania, procurava parentes, conexões para asilo temporário, cuidava das campanhas de doação. Como agir com altruísmo nessas condições? Onde as leis de proteção à vida? Luariz Sezna, tinha grande ascendência sobre os projetos desenvolvidos, uma ponte entre governo, empresas e terceiro setor.
Outra providência instituída por Wong Bohai foi oferecer alimentação e remédios para os que batessem ao portão, independente de idade cronológica e histórico. O que mais se viu em situação de risco foram grávidas, algumas, vítimas de abuso, algumas sem ter para onde se dirigir. Vários solicitantes se ofereciam para limpar os jardins, vidraças, até banheiros. Dois homens mostraram-se capacitados para prestar serviços gerais ao hospital e foram admitidos, após período de experiência. Até o coveiro adveio desta peregrinação.
Aos poucos, o organograma do hospital colônia tomou forma. Estabeleceram-se limites naturais de ação, novas diretrizes para procedimentos de vária ordem, bem orquestradas, as mudanças, pela enfermeira chefe Maria. Chang Chang se manteve junto aos atendentes, para aprender, escutar e compreender as demandas de todos. A inauguração dos sobrados representou renovação dos votos, tanto para os profissionais, quanto para os moradores do espaço hospitalar. Havia agora as horas de visita, que se fazia ao médico, ao enfermeiro, para tomar chá, comunicar-se, como em uma aldeia, herdade, quinta. O sentido de permissão, de ir, vir, entrar, sair, estar, permanecer, foi-se afinando. Havia novos jardins para plantar, roçar, regar, havia os objetos de arte confeccionados pelos pacientes, a enfeitar mesas, as paredes e portas das novas moradias. Havia crianças e animais no ambiente. O cultivo das amizades, dos filhos solidários, dos leitores, contadores de histórias, acalentadores de todo padrão, um passo após outro, decisivo e exemplar, que o Hospital Casaredo dava em direção ao acolhimento fraterno.
A observação do esgueirar da raposa de nove caudas, que se movia, silente, em todos os redutos, era exercício para os mais atilados. O bichinho era mais enganador que mau. Aliada de Alev e Matilde, Chang Chang facilitava o movimento de ambos, tornando mais leve a provação que enfrentavam. Madame a tomar notas, esboçar o que via. Seus registos passaram a auxiliar Alev, como um mapa de atuação, como prevenção e monitoramento de danos. As paixões humanas, se todos as soubessem tratar.
Levanta, rosa vadia
Os escritos de Madame serviam também para conter seu humor. Sentada sob a parreira, a senhora dava forma a pequenos contos interligados, onde José era o protagonista. O comandante lia seu diário de bordo na voragem da tarde. O texto recordava as aflições de um último sarau, canções de saudade no repertório. Todas as apresentações, em geral, eram sofrimento para o comandante, que vivia, em elas, suas alucinações. A mente lhe gerou, na ocasião, aranhas enormes, homens com o rosto coberto por trapos, mulheres violadas, vertidas em sangue coagulado, a maioria vitimada por cortes sobre e abaixo do coração. Falta de fôlego, um sintoma recorrente para o marujo, antes, durante e após cada recital. Difícil manter-se estável com tão pouco respirar. Era mais do que José achava justo para doer. Os receios de interdição o perseguiam. No machucado mais profundo de sua alma, ainda abraçava-se à imagem do capitão-mor, não conseguia ceder e deixar partir. Cantou ceifeira, ceifeira, linda ceifeira, eu hei de casar contigo[1]. Os parceiros de palco, a empunhar papel de festa eram, para José, donos dos astros, os relógios da maturação, poderíamos pensar. Se todos fossem sincronizados com Greenwich, que mérito teria a escola terrestre? Há que se explicar melhor: José sabia da necessidade do acompanhamento para o cantar, da formação de um conjunto harmonioso de músicos. Talvez não soubesse se cercar, daqueles mais afins com ele. É bom que todos entendam: trata-se de escola especializada o Planeta Azul, com currículo exigente, classes heterogêneas. O estudante – que somos todos -, matricula-se em diferentes matérias, referentes à reforma do caráter. Não há reprovação, apenas repetições (exaustivas) das lições. Foi em dia de semana, encontro de cavalheiros. José choveu. Produziu granizo na arte. O corsário cantou todo o Ártico. Imaginação das matracas, vício dos apegos, que tanto azucrinavam quanto acalentavam e é este o sintoma mais grave. Mui devagar, o marujo evolou na voz toda esperança e enredou novos personagens ficcionais, que desfilavam a cada fado, alegre ou triste. José não queria morrer, mas morrer às vezes o visitava. Um universo fantasmático, povoado de seres a que os cambojanos denominam Tevoda, passeava dentro do homem abissal. Expressar-se era melancólico, porém igualmente terapêutico. Talvez escrever, nestes momentos tensos, tenha salvado a jornada de José.
Foram longas caminhadas de finalidade incerta, navegações sem mar e, mesmo assim, peculiares. Se todos aqui presentes pensarem carinhosamente, não se tratava de exórdios sem porvir, porém o epicentro da crise, início da cura, portanto. Caso conheçam a descrição de um surto químico, terão aqui o mesmo quadro traumático, com maior ou menor estrago. O Universo trabalhava de maneira sutil com José, sempre a favor de alguma coisa que o fizesse seguir adiante, melhorado. Eventos de crise põem a perder a alma mais tenra, é sabido. Ou o ser ali, no olho do ciclone, se aceita. José tinha o mastro, o leme, a camisa em trapos, a Julieta, a Rafaele, nada além de um lápis e folhas avulsas, às vezes blocos de anotar. Uma melodia pontilhada de melismas voltava a todo momento, sirena, a consciência que avisa. Quanto mais cedo o comandante procurasse ajuda particularizada para estes refluxos emotivos, mais rápido a parte que cabia a ele do campo magnético da Terra seria restaurada. Assim acirrara o físico inglês, na remota consulta que tanto chocou nosso José Gaetano, o poverello. Uma palavra carregada de poder – concernimento[2], era reiteradamente citada nas memórias do diário de bordo.
O corsário pisou no cais da baia Ana Chaves a cambalear. A Sor, desalmada, a Julieta, fincada ao fundo do lodo, a Rafaele a fumar. Disposto a atirar seu diário naquele monturo histórico, José expos sua alma sem foco. Mais um pouco e ele estarreceria os conhecidos, posando de transtornado, sonâmbulo a esmolar junto às messalinas. O problema de um desvairado é que, em perdendo a razão, perde a serventia social. Perdem-se direitos humanos, passa-se a peso do Estado, foi o que o físico tentou enfatizar.
‘Sem palavras ... Cem palavras são o suficiente? Sem palavras! Sempre lavras... São elas sempre palavras? Cem!... São para lavar! Pralavrar! Palavras livres... Sem medo são! São cada uma cem! Cada cem são uma! Sempre uma...’ A.D.
Saudade. Os versos chegaram às mãos do bucaneiro no meio de um carregamento de tecidos, oriundo da Caxemira. Na baia, os estivadores só encontraram o envelope porque o baú caiu do guindaste e espatifou entre malotes e gente, gente, gente, expatriada. Surtiram em José, tais versos, reação adversa à esperada. Solidão agreste, inconformação, desesperado, José Gaetano foi para o leme e corrigiu a rota para 32º13’11”, latitude sul. Tecidos, se mercava em qualquer porto. Temia, com seu gesto bruto, adentrar a região equatorial, onde ocorrem as calmarias mais longas que se pode suportar, mas era melhor fazer alguma coisa, ou morreria.
José conhecia as calmarias, de outras viagens. Achou por bem mandar sinal de alerta à guarda costeira. Para que? Perdido de si, fragilizado, o espírito todo acima do mundo, quereria partir com algo concreto, rumo ao sul. A autopiedade se transformou em ondas de seis metros, encharcou suas vestes novas. O marujo ia, aos poucos, antevendo sua condição de pária. Quereria permanecer nesse estado? Fazia sentido seguir viagem, feito filhote de jubarte sem mãe? Seus escritos, repetitivos e de nenhum valor estético, revelavam-lhe a verdade. Deficiências magnéticas atraem outras, tornam-se redemoinhos. José, para consolar-se, imaginou se aquele amigo idealizado, mais moço, precisaria também de escuta, alguém em quem confiar. Certamente José Gaetano não se mostrara confiável, senão teria sido diferente, era assim que entendia. Ele podia influenciar alguém positivamente, pela experiência de vida que detinha, não como alguém sábio, superior. Confiável. Era a única palavra que lhe vinha. Ainda lhe faltava compreender o sentido da consunção, das provas pungitivas. Sentiu-se muito mal, inútil. As leis dos astros são muito claras, José pouco sensível para as compreender. As leis separam os homens, para que nada de pior ocorra. José Gaetano era poupado de naufrágios irreversíveis e não sabia. Tempos distintos, matérias distintas, trajetos distintos lhe foram oferecidos, era pegar ou largar. Alguém deveria renunciar. Que fosse ele, o humano a mais tempo na Terra. O marujo galego genovês seguiu adiante, mão firme no leme. Cantou dos ventos adversos[3]. Tornou a tecer redes. A rosa vadia viria, na longitude quatorze.
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