Hospital Casaredo 31
Amores e moradas
Equilibrado, precariamente, sobre a murada sul do Casaredo, quis esquecer-te, amigo.
A ancianidade altera a perspectiva do belo. A demência senil alerta. Há o recurso do saber consolador, que não é banco de dados, é tesouro intransferível. Há também sentido no velamento da memória, coerente com o que se cultivou durante a existência. Quanto a perda do controle dos esfíncteres, o doutor Wong Lam dizia, simples, é da natureza. Tomavam o sol de verão, divididos nas mais criativas atividades, perto de sessenta e cincos senhoras e senhores, pelas cercanias do hospital.
Bem afastados deste quadro gentil, aproveitavam a folga Gaspare e Javier. Iam eles, sentados lado a lado sobre a murada de perto de quatro metros, ao sul da construção. Olhavam o perfil da Cidade do Porto e pensavam no próprio viver. O tempo cavalga sem cessar, leva com ele a beleza física, o vigor, traz maturidade. Às vezes, os colegas se encaravam, em silêncio, atinavam sobre as mesmas coisas. O convívio no novo hospital seguia as normas da fraternidade. O trabalho era dinâmico, rico em tarefas estimulantes. Nada de excessos ou pressão desnecessária. Cansaço, pouco sono, sustos, os riscos habituais da profissão. O cotidiano de um enfermeiro era imprevisível. Ambos receberiam, em breve, certificação como terapeutas, habilitados em várias especialidades. Contavam pouco mais de trinta anos, poderiam optar por formação universitária, mesmo mudar de ramo. Eram livres para ir, vir.
Javier incluía em seus movimentos a família. No horizonte, o final da tarde se anunciava, róseo. Algo, quem sabe a brisa marinha, os fez perguntar o que buscavam. O que os movia? O hospital colônia oferecia-lhes o embate com seu maior temor – a perda do domínio sobre si, sobre as mínimas coisas. Nas sessões em grupo, o tema da demência era preocupação corrente, conduzido com tato e otimismo pelos médicos. O desequilíbrio assombrava os sonhos, constantemente. Para atenuar este temor, uma das técnicas artísticas aplicadas aos enfermeiros, pela doutora Dung Hanh, era encadear, em uma serpentina humana, o máximo de canções possível, a partir da primeira ou última palavra cantada. Aquele participante que não recordasse canção quando lhe chegasse a vez inventava, o que provocava reações variadas, ou passava ao final da fila. O exercício estimulava a expressividade, soava como histórico pessoal, facilitava diagnósticos, sugeria prognósticos. Quantos conteúdos vieram à tona naqueles temas musicais, quantos dramas sem começo, sem final, quantos idiomas a dizer dores e dificuldades sociais, morais, traumas diversos. Em algumas ocasiões, a solução se apresentava na própria canção.
A lua foi aparecendo, quase plena. É bom que se saiba que, para galgar o muro, era preciso escalar uma pereira que já começava a desfolhar, a chamar outono. Para ganhar os galhos, muitos voltados para o céu, uma escada improvisada fora construída por Alev, pioneiro no esporte, expert na arte de espionar ou apenas contemplar. Com discrição, o enfermeiro foi apresentando o paraíso a cada um dos colegas. Apenas um não pode subir, pânico de altura. Alev ousou, e o mostrou também aos médicos. Havia vários obstáculos para se chegar àquela parte do hospital, uma vegetação cerrada. Nenhum profissional cogitava um paciente a se arriscar por aquele sítio, era gesto quase olímpico.
Somente quando reconheceram a arenga dos vândalos, tão perto dos ouvidos deles, Gaspare e Javier se deram conta. O senhor da Nossa Senhora, mão no leme, a outra a empunhar uma espada de ar, oscilava perigosamente para diante. Subira ao parapeito, a dobra ritmada dos joelhos a ponto de o espatifar na plantação rasteira lá embaixo, do outro lado. O velhinho berrava a rogativa a intervalos regulares, encompridada com avante marujos, o comandante vai achar um tesouro em Cabo Verde. Nossa Senhora dos vândalos, rogai por nós. Se o senhor da Nossa Senhora quisesse chorar, como era comum, cairia. Javier foi o primeiro a erguer-se, feito a cauda de um felino. Mais próximo do paciente, pode se chegar e entrar no jogo, surto. Bradou comandante, o ataque se faz pela popa. Precisam do senhor lá, dá-me o leme. O senhor da Nossa Senhora, afoito, virou-se no momento em que Gaspare o amparava, a evitar a queda. O abraço forte serviu como contenção e obrigou o homem a sentar-se. Enfim, o choro veio. Uma cantiga de marinheiro o foi trazendo de volta ao perigoso mundo. O paciente perguntou se sonhava, se morrera, se Nossa Senhora o vinha buscar. Veio Maria, a enfermeira chefe, a galgar a árvore. Ela o acolheu nos braços, ao pequeno velhusco trapalhão, que lhe enlaçou o pescoço a soluçar. Gilmar subiu logo atrás. Amparou a descida de ambos e colocou o senhor da Nossa Senhora na maca, prontamente sedado. Não houve reprimendas, represálias ou retirada da escada. Ao contrário, no dia seguinte os três médicos visitaram a engenhoca, subiram à murada e ficaram um tempo sentados lá, a olhar o horizonte. Será que se via dali a Santa Maria da Feira? Entre Gaspare e Javier um acordo silencioso, o de manterem a amizade, por muitas luas.
O enfermeiro espanhol e a esposa se encontraram sob a parreira, Gaspare assumira seu turno. Só se falava no acontecimento do senhor da Nossa Senhora, porém o casal, mais silencioso que no tempo da troca de mensagens entre a Assistência e a Ribeira do Cavalo, embalou-se em um abraço, por algum tempo. Disciplinados, ambos evitavam externar afetividade em público. Aquele embalo era o máximo de intimidade a que se entregavam, raramente, ocultos pela vegetação. Javier beijou a esposa à maneira italiana, o dedo a descer da testa à ponta do nariz. Às vezes, o gesto contornava também os lábios. Aprendera o procedimento com Gaspare, causava grande efeito. Naquele momento, o par não estava a sós, a sombra não se fez notar sob o manto da noite.
Júlio estava sentado em um sofá do dormitório um, entretido com dois de seus navios e um terceiro, multicor, que Alev lhe dera naquela tarde. O bebê dividia a cama ora com o pai, ora com a mãe, ora com Madame, às vezes com os três na mesma noite. A alegria contagiante da criança continuava a servir como lenitivo aos pacientes. A questão era: De que. maneira administrar um menino sadio, de quase três anos, a brincar entre velhos dementes? Pois parecia missão para o menino, sacerdócio. Júlio tinha tato. Para encontra-lo quando sumia, era buscar em um dos dormitórios, ou na horta, ou sala de atividades. Obediente, atento, sabia sempre onde achar o pai e a mãe, quando se sentia encrencado. Os enfermeiros o tratavam com carinho. Bernice, que fora doula de Agrado, voluntariou-se como babá, para atender às necessidades de Júlio durante o expediente dos pais. A moça interessou-se pelo trabalho do hospital colônia, foi admitida como estagiária junto aos médicos do pronto socorro.
Amparo adaptou-se à rotina do Casaredo, era eficiente, ciosa. Limpava pessoalmente os dormitórios dos atendentes. Chefiava vários auxiliares de serviços gerais com braço fraterno. Não faltava quem fizesse festa a Júlio enquanto ela estava na lide. Sutil cansaço e tristeza transpareciam no rosto da moça. Faltava algo para si naquele ambiente, sentia-se adoentada na alma. O encontro do casal no jardim preencheu a lacuna por ínfimo tempo.
A vida humana é pertinente e molhada, estranhos acentos hipnóticos compõem seu manancial. Há sempre um guardião protetor, de plantão, basta afinar as percepções. Não demorou muito, Chang Chang incluiu uma visita de crianças ao Casaredo às terças-feiras, com direito a grávidas e filhos pequenos. O primeiro encontro foi dia de renovação para Júlio. O tio Pierce veio, três semanas mais tarde, buscar o menino para conhecer os primos, Vicente e Ismália, que já estavam grandinhos, interagiam minimamente. Amparo quis ir com eles, com o argumento de retribuir, um pouco, a ajuda que a irmã lhe dera no passado. Javier aceitou a situação. Estava só mais uma vez. Gaspare e ele tornaram as visitas à murada cotidianas.
O conforto do lar dentro do espaço do Casaredo. Este o slogan da apresentação do projeto ao casal Wong Chang. A propriedade permitia expansão. O local escolhido era arborizado, uma trilha quase oculta garantia-lhe acesso, oásis para os profissionais, sossego e privacidade para as horas de descanso. Manoel idealizou e encaminhou a execução: moradias em dois pavimentos, erguidas próximas à murada, sem prejuízo aos encontros sigilosos que continuaram a ocorrer ali. Com quatro meses para conclusão, incluindo os acabamentos, a iniciativa deixou a todos satisfeitos. Dez funcionários foram admitidos como empreiteiros, o enfermeiro a fazer as vezes de mestre de obras, entre ferragens e cimento, mais a equipe especializada em desastres naturais, para garantir segurança à edificação. Quando ocorreu o episódio do senhor da Nossa Senhora, Manoel cogitou cercar a área. O doutor Itaú argumentou que valeria a pena manter o acesso livre. As novidades, as haveria a qualquer momento, com ou sem contenção.
“Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”. [1]
Javier foi o primeiro a montar o lar, que compôs para a família. Mobiliou o ambiente com simplicidade e bom gosto. Amparo retornou da estadia com a irmã e foi surpreendida com a novidade. Tudo perfumado, novo. Ela deu com um quadro seu, de corpo inteiro, roupa típica de Madri, ocupando parte da parede da sala. Para espanto dela mesma, sentiu-se desnudada. Ao saber quem o pintara, ainda mais se acabrunhou.
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